quarta-feira, agosto 23

Refresco

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No exato momento em que eu entrava no botequim para comprar cigarros, ouvi a voz do homem perguntar por trás de mim:


— Tem refresco de cajá?

O outro, por trás do balcão, olhou espantado:

— De caju?

— Não senhor, de cajá mesmo.

Não tinha. Não tinha e ainda ficou danado. Ora essa, por que razão havia de ter refresco de cajá? Ainda se fosse de caju, vá lá. É verdade que refresco de caju também não havia, mas, de qualquer modo, era mais viável ter de caju do que de cajá, fruta difícil, que só de raro em raro se encontra e, assim mesmo, por um preço exorbitante.

E ainda irritado, disse:

— Por que não pergunta na Colombo? Aposto que lá também não vendem refresco de cajá. E o senhor sabe disso, o senhor está pedindo aqui para desmoralizar o estabelecimento.

Não era de briga e nem estava querendo desmoralizar ninguém. De repente — ao entrar ali para tomar café — sentira cheiro de cajá e, como na sua terra havia muito daquela fruta, ficara
com vontade de tomar um refresco.

O que servia caiu em si, esqueceu o seu complexo de trabalhar no café fuleiro e não na Colombo. Depois desculpou-se com um  sorriso de poucos dentes e perguntou se não queria uma laranjada.
Uma laranjada sempre se pode arranjar.

O outro recusou com um abano de cabeça e saiu encabulado, talvez por ter revelado em público um tão puro sentimento íntimo — a saudade de sua terra.

Paguei os cigarros e saí atrás dele. Também eu, depois que assistira à cena, senti cheiro de cajá.

Há dez anos — pensei — eu poderia satisfazer a sua vontade. Era só andar aquele quarteirão, entrar à esquerda e procurar o número 53. Era a nossa casa. Ali nasci eu, nasceram meus irmãos e nasciam cajás todos os anos.

Fui caminhando e, por um momento, admiti que, se naquele tempo houvesse liquidificadores, o refresco seria mais gostoso. Depois sorri desse pensamento inconsequente e senti a injustiça que
fazia. Afinal, as mãos sábias de Ana faziam refrescos saborosíssimos.

Instintivamente dobrei à esquerda, atravessei a rua e olhei para o enorme edifício do 53. Por causa daquele monstrengo arquitetônico fora-se a linda árvore, a sua sombra, a casa, a varanda, a sombra da varanda. Nunca mais papai dirá orgulhoso, referindo-se ao quintal:

— Vai quase até a rua Copacabana! 

O “quase” era a casa de Wilminha, tão bonita, que tomava banho de janela aberta. Pobre Wilminha que a mãe não deixava usar batom. Não fosse a morte da velha e mais a do noivo aviador e ela
não estaria se pintando tanto, como faz agora.

A casa de Wilminha também virou edifício, como a nossa. É verdade que, no 53, não morrera ninguém, graças a Deus. Mas havia uma hipoteca para pagar e urgia liquidá-la, senão perderíamos
tudo, inclusive o apartamento do quinto andar, onde mora o americano, e que é tudo que nos sobrou da incorporação.

Recordo os vizinhos de então. Foram-se todos, escondidos pelas sombras dos prédios grandes. A rua, de sua, conserva somente o nome. Perdeu aquele encanto que todas as ruas de bairro devem
ter. Sua história, o dia em que a asfaltaram, ou o outro, quando plantaram as árvores.

A saudade foi crescendo. De repente aquela vontade de tomar um refresco de cajá. Virei-me rápido, procurando com os olhos o homem que há pouco eu vira no café.

Ia lá longe, triste, de cabeça baixa.
(Manchete, 26/06/1954)

2 comentários:

  1. Um texto da minha infância. Toda vez que tomo refresco de cajá, me lembro.

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  2. Me lembro desse texto na minha adolescência e me deu vontade de rele-lo. Mas que o escreveu?

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