terça-feira, junho 10

O Cisne

Lá fora, no meio do primeiro dia de agosto, entrando no carro naquele momento estava Bill Forrester, que gritou que ia ao centro da cidade para um sorvete extraordinário, e quem queria ir com ele? Assim, menos de cinco minutos depois, agitado e com um humor melhor, Douglas se viu andando nas calçadas ardentes, passando pela gruta de ar com cheiro de refrigerante, com o frescor de baunilha da lanchonete, e sentando-se ao balcão de mármore alvíssimo com Bill Forrester. Eles, então, pediram uma enumeração dos sorvetes mais incomuns, e, quando o atendente disse: Sorvete de baunilha e lima à moda antiga…

— É esse! — disse Bill Forrester.

— Sim, senhor! — disse Douglas.

E, enquanto esperavam, eles rodaram devagar nos bancos giratórios. As torneiras de prata, os espelhos cintilantes, os ventiladores de teto rodando em silêncio, os tons de verde sobre as pequenas janelas, as cadeiras de ferro feito harpas passaram sob seu olhar em movimento. Eles pararam de rodar. Seus olhos se detiveram na face e na forma da srta. Helen Loomis, 95, a colher de sorvete na mão, o sorvete na boca.

— Jovem — disse ela a Bill Forrester —, você é uma pessoa de gosto e imaginação. Além disso, tem a força de vontade de dez homens. Caso contrário, não se atreveria a deixar de lado os sabores comuns listados no cardápio e não pediria, diretamente, sem discussão ou reservas, uma coisa tão fora do comum como sorvete de baunilha e lima.

Ele baixou a cabeça em sinal de reverência para ela.

— Venham se sentar comigo, os dois — disse ela. — Vamos conversar sobre sorvetes estranhos e coisas desse tipo, pelas quais parecemos ter predileção. Não tenham medo. Eu pagarei a conta.

Sorrindo, eles levaram seus pratos para a mesa dela e se sentaram.

— Você parece um Spaulding — disse ela ao menino. — Tem a cabeça de seu avô. E você, você é William Forrester. Escreve para o Chronicle… Uma coluna bem boa. Ouvi falar mais de você do que poderia contar.

— Eu a conheço — disse Bill Forrester. — A senhora é Helen Loomis. — Ele hesitou, depois continuou. — Antigamente, eu era apaixonado pela Senhora.

— Mas é assim que eu gosto que uma conversa comece. — Ela cavou em silêncio o sorvete. — Cria as bases para outro encontro. Não… Não me diga onde, quando ou como esteve apaixonado por mim. Vamos poupar para a próxima vez. Você tira meu apetite com sua conversa. Olhe só! Bem, tenho que ir para casa mesmo. Como você é um repórter, venha tomar um chá amanhã entre as três e as quatro horas. É possível que eu possa lhe esboçar a história desta cidade desde que era um posto comercial. E, como nós dois temos algo para alimentar nossa curiosidade, sr. Forrester, você me lembra um cavalheiro com quem saí setenta, sim, setenta anos atrás.

Ela estava sentada de frente para eles, e era como falar com uma mariposa trêmula, cinza e perdida. A voz vinha de longe, de dentro do encanecimento e da velhice, envolvida em pós de flores pressionadas e borboletas antigas.

— Bem. — Ela se levantou. — Você irá amanhã?

— Certamente irei — disse Bill Forrester.

E ela partiu para a cidade a negócios, deixando o jovem e o menino ali, olhando para ela, terminando devagar seus sorvetes.

William Forrester passou a manhã seguinte verificando algumas notícias locais para o jornal, teve tempo depois do almoço para pescar um pouco no rio nos arredores da cidade, pegou só um peixinho, que atirou de volta, feliz, e, sem pensar nisso, ou pelo menos sem perceber que tinha pensado nisso, às três horas se deu conta de que seu carro o levava por certa rua. Ele observou com interesse suas mãos virarem o volante e o conduzirem a um amplo caminho circular para veículos, onde parou sob uma entrada coberta de hera. Deixando-se sair, ele ficou ciente do fato de que seu carro era como seu cachimbo — velho, mastigado, desleixado neste imenso jardim verde junto à recém-pintada casa vitoriana de três andares.

Ele viu um leve movimento como que de um fantasma no outro extremo do jardim, ouviu um grito abafado e viu que a sra. Loomis estava ali, retirada no tempo e na distância, sentada sozinha, o serviço de chá cintilando sua superfície de prata suave, esperando por ele.

— Esta é a primeira vez que uma mulher está pronta a me esperar — disse ele, aproximando-se. — Também é — admitiu ele — a primeira vez na minha vida que cheguei no horário de um compromisso.

— Por que é assim? — perguntou ela, recostando-se na cadeira de vime.

— Não sei — admitiu ele.

— Bem. — Ela começou a servir o chá. — Para começar, o que você pensa do mundo?

— Não sei nada.

— O princípio da sabedoria, como dizem. Quando você tem 17 anos, sabe tudo. Quando tem 27, se ainda souber tudo, ainda tem 17.

— Parece ter aprendido muito com o passar dos anos.

— É privilégio dos velhos dar a impressão de saberem de tudo. Mas é uma encenação, uma máscara, como todas as outras encenações e máscaras. Entre nós, os velhos, piscamos para o outro e sorrimos, dizendo: Você gosta de minha máscara, minha encenação, minha certeza? A vida não é uma peça? Eu não a interpreto bem?

Os dois riram baixinho. Ele se recostou e deixou que o riso saísse naturalmente de sua boca pela primeira vez em muitos meses. Quando eles se silenciaram, ela segurou a xícara de chá com as duas mãos e olhou dentro dela.

— Sabe de uma coisa… É uma sorte nos conhecermos tão tarde. Eu não ia querer que me conhecesse quando eu tinha 21 anos e era cheia de tolices.

— Existem leis especiais para mulheres bonitas de 21 anos.

— Então, você acha que eu era bonita?

Ele assentiu, de bom humor.

— Mas como pode dizer isso? — perguntou ela. — Quando você conhece o dragão que devorou um cisne, tira conclusões pelas poucas penas que lhe restam na boca? É bem assim… Um corpo como este é um dragão, todo escamas e dobras. Então, o dragão devorou o cisne branco. Eu não o vejo há anos. Nem consigo me lembrar de como era. Mas eu o sinto. Ele está seguro lá dentro, ainda vivo. O cisne de minha essência não mudou nem sequer uma pena. Sabe, existem algumas manhãs na primavera ou no outono em que acordo e penso: Vou correr através dos campos, para os bosques e colher morangos silvestres! Ou vou nadar no lago, ou vou dançar a noite toda até o amanhecer! E, então, furiosa, descubro que estou neste dragão velho e arruinado. Sou a princesa na torre em ruínas, sem saída, esperando pelo Príncipe Encantado.

— A senhora deveria ter escrito livros.

— Meu caro rapaz, eu escrevi. O que mais há para uma velha solteirona? Até os 30 anos, eu era uma criatura louca, com a cabeça cheia de lantejoulas de carnaval. Depois, o único homem de quem realmente gostei parou de esperar e se casou com outra. Então, apesar disso, com raiva de mim, eu disse comigo mesma que merecia meu destino por não ter me casado quando houve a melhor oportunidade. Comecei a viajar. Minha bagagem foi coberta por nevascas de adesivos de turismo. Estive sozinha em Paris, sozinha no Vietnã, sozinha em Londres, o que, no fim, é muito parecido com ficar sozinha em Green Town, Illinois. É, em essência, estar sozinha. Ah, você tem muito tempo para pensar, melhorar suas maneiras, estimular suas conversas. Mas, às vezes, penso que podia muito bem trocar um tempo verbal ou uma mesura por uma companhia que fique para um fim de semana de trinta anos.

Eles tomaram o chá.

— Ah, mas que profusão de autopiedade — disse ela, de bom humor. — Agora, falemos de você. Você tem 31 anos e ainda não se casou?

— Deixe-me colocar desta forma — disse ele. — As mulheres que agem e pensam e falam como a senhora são raras.

— Meu Deus! — disse ela, séria. — Não deve esperar que uma jovem fale como eu. Isso vem com o tempo. Elas são jovens demais, em primeiro lugar. E, em segundo lugar, o homem mediano cria caso no momento em que descobre um cérebro em uma mulher. Você deve ter conhecido muitas inteligentes que lhe esconderam isso com muito sucesso. Terá que vasculhar por aí um pouco para encontrar uma excêntrica. Terá que cavar mais fundo.

Eles riram de novo.

— Devo ser um solteirão meticuloso — disse ele.

— Não, não, não deve fazer isso. Não seria correto. Não devia sequer estar aqui nesta tarde. Esta é uma rua que termina apenas em uma pirâmide egípcia. As pirâmides são muito bonitas, mas as múmias são péssimas companhias. Aonde gostaria de ir, o que realmente gostaria de fazer de sua vida?

— Conhecer Istambul, Port Said, Nairobi, Budapeste. Escrever um livro. Fumar muitos cigarros. Cair de um penhasco, mas ser salvo por uma árvore no meio do caminho. Ser baleado algumas vezes em um beco escuro em uma meia-noite marroquina. Amar uma bela mulher.

— Bem, não acho que eu possa lhe dar tudo isso — disse ela. — Mas sou viajada e posso lhe contar sobre muitos desses lugares. E, se você se interessar por atravessar meu gramado da frente esta noite, lá pelas onze, e se eu ainda estiver acordada, vou disparar um mosquete da Guerra de Secessão em você. Isso satisfará seu impulso masculino por aventura?

— Seria muito bom.

— Aonde você gostaria de ir primeiro? Posso levá-lo até lá, você sabe. Posso fazer um feitiço. É só falar. Londres? Cairo? O Cairo faz seu semblante se acender como um farol. Então, vamos ao Cairo. Agora apenas relaxe. Coloque um pouco desse ótimo tabaco em seu cachimbo e se recoste na cadeira.

Ele se recostou, acendeu o cachimbo, meio que sorrindo, relaxando, e ouviu o que ela começou a falar.

— O Cairo… — disse ela.

A hora passou em joias e becos e ventos do deserto egípcio. O sol era dourado, e o Nilo estava lodoso onde batia nos deltas, e havia alguém muito jovem e muito vivaz no alto da pirâmide, rindo, chamando por ele, para que subisse o lado indistinto voltado para o sol, e ele estava subindo, ela estendendo a mão para baixo, querendo ajudá-lo no último degrau, e depois eles estavam rindo em cima de um camelo, a galope para a forma extensa e volumosa da Esfinge, e, de madrugada, no bairro nativo, houve o tinir de martelinhos no bronze e na prata, e música vindo de alguns instrumentos de corda desaparecendo cada vez mais longe e mais longe e mais longe…

William Forrester abriu os olhos. A srta. Helen Loomis terminara a aventura, e eles estavam em casa novamente, muito familiarizados um com o outro, entendendo-se perfeitamente no jardim, o chá frio no bule de prata, os biscoitos secos no sol de fim de tarde.

Ele suspirou, espreguiçou-se e suspirou novamente.

— Nunca fiquei tão à vontade em toda a minha vida.

— Nem eu.

— Eu a estou atrasando. Devia ter ido embora uma hora atrás.

— Fique sabendo que estou adorando cada minuto. Mas o que você deveria ver em uma velha tola…

Ele se recostou na cadeira e semicerrou os olhos e a fitou. Ele apertou os olhos para que entrasse o mínimo filamento de luz. William Forrester tombou a cabeça um pouquinho para um lado, depois para o outro.

— O que está fazendo? — perguntou ela, constrangida.

Ele nada disse, mas continuou olhando.

— Se fizer isso da maneira certa — murmurou ele —, poderá ajustar, compensar… —Consigo mesmo, ele pensava que dá para apagar as rugas, ajustar o fator tempo, fazer voltarem os anos.

De repente, ele se sobressaltou.

— O que há de errado? — perguntou ela.

Mas, então, havia passado. Ele abriu os olhos para apreender aquilo. Aquilo foi um erro. Devia ter ficado recostado, espreguiçando, apagando, os olhos tenuemente meio fechados.

— Só por um momento — disse ele —, eu vi.

— Viu o quê?

— O cisne, é claro — pensou ele. Sua boca deve ter feito a pantomima das palavras.

No instante seguinte, ela estava sentada muito empertigada na cadeira. Suas mãos estavam no colo, rígidas. Seus olhos estavam fixos nele e, enquanto ele observava, sentindo-se desamparado, cada um dos olhos dela transformou-se em uma taça e se encheu até a borda.

— Desculpe — disse ele —, eu peço mil desculpas.

— Não, não peça. — Ela se mantinha empertigada e não tocou o rosto nem os olhos; suas mãos continuavam, uma por cima da outra, sem ceder. — Agora é melhor que vá. Sim, você pode vir amanhã, mas vá agora, por favor, e não diga mais nada.

Ele caminhou pelo jardim, deixando-a junto à mesa, na sombra. Não conseguiu criar coragem para olhar para trás.

Quatro dias, oito dias, doze dias se passaram, e ele foi convidado para chás, jantares, almoços. Eles se sentavam para conversar pelas longas tardes verdejantes. Falavam de arte, de literatura, da vida, da sociedade e de política. Tomavam sorvetes e comiam carne de pombo e bebiam bons vinhos.

— Não me importo com o que alguém diga — disse ela. — E as pessoas estão dizendo coisas, não estão?

Ele se remexeu, inquieto.

— Eu sabia. Uma mulher, mesmo aos 95 anos, jamais está livre da fofoca.

— Eu poderia parar de visitá-la.

— Ah, não — suplicou ela e recuperou-se. Com uma voz mais baixa, disse: — Você sabe que não pode fazer isso. Sabe que não se importa com o que pensam, não sabe? Desde que saibamos que está tudo bem.

— Eu não me importo — disse ele.

— Agora — ela se acomodou novamente —, vamos fazer nosso jogo. Onde será desta vez? Paris? Eu penso em Paris.

— Paris — disse ele, assentindo em silêncio.

— Bem — começou ela —, é o ano de 1885 e estamos embarcando em um navio no porto de Nova York. Ali está nossa bagagem; aqui, nossas passagens; lá, o horizonte. Agora, estamos no mar. Agora, estamos chegando a Marselha…

Lá estava ela em uma ponte, olhando as águas claras do Sena, e ali estava ele, de repente, um momento depois, ao lado dela, olhando o fluxo das marés de verão. Lá estava ela, com um aperitivo nos dedos brancos como talco, e ali estava ele, com uma rapidez surpreendente, curvando-se para ela e brindando. O rosto dele apareceu nas paredes espelhadas de Versalhes, junto a smörgasbörds fumegantes em Estocolmo, e eles contaram os postes que indicavam barbearias nos canais de Veneza. As coisas que ela fizera sozinha, agora faziam juntos.

Em meados de agosto, eles estavam sentados, olhando-se, em um final de tarde.

— Você percebe — disse ele — que eu a tenho visto quase todos os dias há duas semanas e meia?

— Impossível!

— Desfrutei imensamente isso.

— Sim, mas há tantas jovens…

— Você é tudo que elas não são… Gentil, inteligente, espirituosa.

— Que absurdo! A gentileza e a inteligência são prerrogativas da velhice. Ser cruel e irrefletido é muito mais fascinante quando se tem 20 anos. — Ela parou e respirou fundo. — Agora, vou deixá-lo constrangido. Lembra-se daquela primeira tarde em que nos conhecemos na lanchonete e você disse que tinha certo grau de… Devemos dizer de afeto por mim, em certa época? Você deliberadamente escapou com evasivas, sem jamais mencionar isso de novo. Agora, sou obrigada a lhe pedir para explicar toda essa coisa desconfortável.

Ele parecia não saber o que dizer.

— Isso é mesmo constrangedor — protestou ele.

— Desabafe!

— Eu vi sua foto uma vez, anos atrás.

— Nunca deixei que tirassem uma foto minha.

— Era antiga, tirada quando você tinha 20 anos.

— Ah, essa. É uma brincadeira. Toda vez que faço uma doação para caridade ou compareço a um baile, eles desencavam essa foto e a publicam. Todo mundo na cidade ri. Até eu.

— É crueldade do jornal.

— Não. Eu disse a eles: se quiserem uma foto minha, usem aquela tirada em 1853. Que se lembrem de mim dessa forma. Deixem a tampa do caixão fechada, em nome do bom Deus, durante o funeral.

— Vou lhe contar tudo. — Ele cruzou as mãos, olhou-as e parou por um momento. Agora, lembrava-se da foto, que estava muito clara em sua mente. Havia tempo, ali no jardim, para pensar em cada aspecto da fotografia e de Helen Loomis, muito jovem, posando para a foto pela primeira vez, sozinha e linda. Ele pensou em sua face sorridente, tímida e tranquila.

Era a face da primavera, era a face do verão, era o calor do hálito do trevo. Romãs cintilavam em seus lábios; e o céu de meio-dia, em seus olhos. Tocar sua face era sempre a nova experiência de abrir a janela em uma manhã de dezembro, cedo, e colocar a mão para fora, para o primeiro e frio pó de neve que tinha vindo, em silêncio, sem se fazer anunciar, à noite. E, tudo aquilo, aquele hálito quente e a maciez de ameixa, estava para sempre em um milagre de química fotográfica que nenhum bater de relógio poderia alterar em uma hora ou em um segundo. Aquela primeira neve branca e fria jamais derreteria, viveria mil verões.

Aquela era a fotografia. Era assim que ele a conhecia. Agora, ele estava falando novamente, depois de se lembrar e de pensar e de manter a imagem na mente.

— Quando vi aquela foto pela primeira vez… Era uma foto simples, com um penteado simples… Eu não sabia que tinha sido tirada havia muito tempo. A legenda no jornal dizia alguma coisa sobre Helen Loomis organizando o Baile da Cidade naquela noite. Recortei a foto do jornal. Eu a mantive comigo o dia todo. Pretendia ir ao baile. Depois, no final da tarde, alguém me viu olhando a foto e me falou dela. Que a foto da linda moça fora tirada havia muito tempo e era usada todo ano pelo jornal desde então. E me disseram que eu não deveria ir ao Baile da Cidade naquela noite, levando aquela foto, e olhar para você.

Eles ficaram sentados no jardim por um longo minuto. Ele olhou de relance o rosto dela. Ela fitava o muro mais distante do jardim e as rosas em cima do muro. Não havia como dizer o que ela estava pensando. O rosto não revelava nada. Ela se balançou por um tempo na cadeira e, depois, disse delicadamente:

— Vamos tomar mais um chá? Aqui está o seu.
Eles ficaram sentados, bebericando chá. Depois, ela estendeu a mão e afagou o braço dele.

— Obrigada.

— Pelo quê?

— Por querer me encontrar no baile, por recortar minha foto, por tudo. Muito obrigada.

Eles andaram pelos caminhos do jardim.

— E agora — disse ela — é a minha vez. Lembra-se de que mencionei certo jovem que um dia me cortejou, há setenta anos? Ah, ele agora está morto há pelo menos cinquenta, mas, quando era muito novo e muito bonito, ele montava um cavalo veloz durante dias, ou nas noites de verão, pelas campinas que cercam a cidade. Tinha um rosto saudável e bravio, sempre queimado de sol. Suas mãos sempre estavam cortadas. Ele fumava como uma chaminé e andava como se fosse voar. Não ficava em emprego nenhum, deixava-os quando tinha vontade; e, um dia, ele meio que fugiu de mim, porque eu era ainda mais desvairada que ele e não me assentaria, e foi assim. Nunca pensei que um dia o veria vivo de novo. Mas você está muito vivo, você espalha as cinzas como ele fazia, você é, ao mesmo tempo, desajeitado e elegante. Sei de tudo que você vai fazer antes que faça, mas, depois de você fazer, sempre me surpreendo. Para mim, a reencarnação é uma bobagem, mas, outro dia, pensei: Se eu gritasse Robert, Robert, para você na rua, será que William Forrester se viraria?

— Não sei — disse ele.

— Nem eu. É isso que torna a vida interessante.

Agosto estava quase no fim. O primeiro toque frio do outono aproximava-se aos poucos da cidade. Havia uma suavidade e a primeira agitação abrasadora e gradual de cor em cada árvore, um rubor fraco e colorido nas colinas e a cor de leões nos campos de trigo. Agora, o padrão dos dias era familiar e se repetia como um escrivão rabiscando belamente, sem parar, uma série de l’s e w’s e m’s, dia após dia, a linha se repetindo em córregos delicados.

William Forrester andava pelo jardim no início de uma tarde de agosto e encontrou Helen Loomis escrevendo com muito cuidado à mesa do chá.

Ela deixou de lado a pena e a tinta.

— Estava lhe escrevendo uma carta — disse ela.

— Bem, minha presença aqui a poupa do trabalho.

— Não, esta é uma carta especial. Olhe. — Mostrou-lhe o envelope azul, que ela agora selava e apertava. — Lembre-se de como ela é. Quando receber isso pelo correio, saberá que estou morta.

— Isso não é jeito de falar, é?

— Sente-se e me escute.

Ele se sentou.

— Meu querido William — disse ela, à sombra do guarda-sol —, daqui a alguns dias estarei morta. Não. — Ela ergueu a mão. — Não quero que diga nada. Não tenho medo. Quando se vive tanto quanto eu vivi, perde-se isso também. Jamais gostei de lagosta em minha vida, principalmente porque nunca experimentei. Em meu aniversário de 80 anos, eu provei.

Não posso dizer que sou uma grande entusiasta de lagosta, mas agora não tenho dúvida quanto ao sabor e não tenho medo dela. Atrevo-me a dizer que a morte será também uma lagosta e posso me entender com ela. — Ela fez um gesto com as mãos. — Mas chega disso. O importante é que não devo ver você novamente. Não haverá funeral. Acredito que uma mulher que passou por essa porta em particular tem o direito à privacidade como uma mulher que se recolheu durante a noite.

— Não pode prever a morte — disse ele, por fim.

— Por cinquenta anos, eu vi o relógio de meu avô no corredor, William. Depois de tudo isso, posso prever a hora em que ele vai parar. Os velhos não são diferentes. Eles podem sentir a maquinaria reduzindo o ritmo e os pesos restantes mudando. Ah, por favor, não me olhe assim… Por favor, não.

— Não posso evitar — disse ele.

— Tivemos ótimos momentos, não tivemos? Foi muito especial estar aqui, conversando todo dia. Foi como aquela expressão batida e sobrecarregada que se refere a um encontro de espíritos. — Ela virou o envelope azul nas mãos. — Sempre soube que a faculdade de amar estava no espírito, embora o corpo às vezes se recuse a acreditar nisso. O corpo vive para si mesmo. Vive apenas para se alimentar e esperar pela noite. É essencialmente noturno. Mas, e o espírito que nasce do sol, William, e deve passar milhares de horas de toda uma vida desperto e desperto? Você pode contrabalançar o corpo, essa coisa lamentável e egoísta da noite, contra toda uma vida de sol e intelecto? Não sei. Só sei que havia seu espírito e meu espírito aqui, e as tardes não foram como nenhuma outra de que me lembro. Ainda há muito a falar, mas devemos poupar para outro momento.

— Agora não parece que temos muito tempo.

— Não, mas talvez haja outro tempo no futuro. O tempo é tão estranho, e a vida é duas vezes mais estranha. As engrenagens falham, as rodas giram, e as vidas se entrelaçam cedo demais ou tarde demais. Eu vivi tempo demais para ter certeza. E você nasceu cedo demais ou tarde demais. Foi um senso de oportunidade terrível. Mas talvez eu esteja sendo punida por ser uma mulher tola. De qualquer modo, no próximo giro, a roda pode voltar a funcionar corretamente. Enquanto isso, você deve encontrar uma boa moça, casar-se e ser feliz. Mas deve me prometer uma coisa.

— Qualquer coisa.

— Deve me prometer que não viverá para ser velho demais, William. Se for conveniente, morra antes dos 50. Pode ser necessário um bocado de ação. Mas o aconselho a isso simplesmente porque não há como saber quando nascerá outra Helen Loomis. Seria pavoroso, não seria?, se você vivesse até ficar muito, muito velho e, numa tarde de 1999, estivesse andando pela rua principal e me visse parada ali, aos 21 anos, e a coisa toda se desequilibrasse novamente? Não acho que possamos passar por mais tardes como essas que tivemos, por mais agradáveis que tenham sido, não acha? Cerca de 4 mil litros de chá e quinhentos biscoitos são o bastante para uma amizade. Portanto, você deve ter uma crise de pneumonia em algum momento daqui a uns vinte anos. Porque não sei quanto tempo vão deixá-lo permanecer no outro lado. Talvez o mandem de volta imediatamente. Mas preciso fazer o melhor que posso, William, realmente preciso. E, se tudo estiver certo e equilibrado, sabe o que pode acontecer?

— Conte-me.

— Em uma tarde de 1985 ou 1990, um jovem chamado Tom Smith ou John Green, ou seja lá que nome for, estará andando para o centro da cidade, irá parar na lanchonete e pedirá, apropriadamente, um sorvete inusitado. Uma jovem da mesma idade estará sentada ali, e, quando ela ouvir o nome do tal sorvete, algo vai acontecer. Não posso dizer o que ou como. Ela não vai saber por que ou como, sem dúvida. Nem o jovem saberá. Simplesmente, o nome do sorvete será uma coisa muito boa para os dois. Eles vão conversar. E, mais tarde, quando souberem seus nomes, sairão da lanchonete juntos.

Ela sorriu para ele.

— Tudo isso é muito bonito, mas perdoe uma idosa por embrulhar as coisas em pacotes primorosos. Isso é uma tola ninharia para deixar para você. Agora vamos falar de outra coisa.

Do que vamos conversar? Há algum lugar no mundo a que ainda não tenhamos ido? Já fomos a Estocolmo?

— Sim, uma ótima cidade.

— Glasgow? Sim? Onde, então?

— Por que não Green Town, Illinois? — disse ele. — Aqui. Não visitamos nossa própria cidade juntos.

Ela se recostou, ele também, e ela falou.

— Vou lhe contar como era, então, quando eu tinha apenas 19 anos, nesta cidade, muito tempo atrás…

Era uma noite de inverno, e ela estava patinando levemente em um lago de gelo branco e enluarado, sua imagem deslizando e sussurrando abaixo dela. Era uma noite de verão na cidade, de fogo no ar, nas bochechas, no coração, em seus olhos cheios da cor brilhante e piscante de vaga-lumes. Era uma noite sussurrante de outubro, e lá estava ela, esticando puxa-puxa de um gancho na cozinha, cantando, e lá estava ela, correndo no musgo à margem do rio, e nadando no poço de granito nos arredores da cidade em uma noite de primavera, nas águas suaves, tépidas e profundas, e agora era o 4 de julho com fogos de artifício estourando no céu e cada varanda cheia de rostos ora vermelho-fogo, ora azul-fogo, ora branco-fogo, o rosto dela deslumbrante em meio aos demais, enquanto o último fogo de artifício se apagava.

— Pode ver todas essas coisas? — perguntou Helen Loomis. — Pode me ver fazendo-as e estando nelas?

— Sim — disse William Forrester, de olhos fechados. — Posso ver você.

— E então — disse ela —, e então…

Sua voz continuava enquanto a tarde caía e o crepúsculo se intensificava rapidamente, mas sua voz movia-se pelo jardim, e qualquer um que passasse na rua, a uma boa distância, poderia ouvir seu som de mariposa, fraquinho, fraquinho…

Dois dias depois, William Forrester estava à escrivaninha, em seu quarto, quando a carta chegou. Douglas a levou ao segundo andar e a entregou a Bill, olhando-o como se soubesse o que havia nela.

William Forrester reconheceu o envelope azul, mas não o abriu. Simplesmente, colocou-o no bolso da camisa, fitou o menino por um momento e disse:

— Vamos, Doug. É por minha conta.

Eles desceram a escada, falando muito pouco, Douglas preservando o silêncio que sentira ser necessário. O outono, que ameaçara por algum tempo, se fora. O verão estava a todo o vapor, fervendo as nuvens e polindo o céu de metal. Eles entraram na lanchonete e se sentaram ao balcão de mármore. William Forrester tirou a carta e a colocou diante de si, mas não a abriu ainda.

Ele olhou para fora, para a luz solar amarela no concreto e para os toldos verdes e cintilantes das letras douradas das placas do outro lado da rua. Olhou o calendário na parede. Vinte e sete de agosto de 1928. Ele olhou o relógio de pulso e sentiu o coração bater devagar, viu o ponteiro dos segundos do relógio movendo-se e movendo-se sem pressa nenhuma, viu o calendário congelado ali, com seu único dia parecendo eterno, o sol cravado no céu, imóvel, para um poente qualquer. O ar quente se espalhava sob os ventiladores, que suspiravam acima de sua cabeça. Várias mulheres riam junto à porta aberta e desapareciam em sua visão, que estava focalizada além delas, na cidade e no relógio alto do tribunal. Ele abriu a carta e começou a ler.

Ele rodava lentamente na cadeira giratória. Ensaiou as palavras repetidas vezes, em silêncio, em sua língua, e, por fim, as pronunciou em voz alta e as repetiu.

— Um sorvete de baunilha e lima — disse ele. — Um sorvete de baunilha e lima.
Ray Bradbury

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