domingo, julho 20

A última visita do cavaleiro enfermo

Todos o chamavam de Cavaleiro Negro, porém ninguém jamais soube seu verdadeiro nome. Depois de seu inopinado desaparecimento, dele não restou nada mais do que a lembrança de seus sorrisos e um retrato pintado por Sebastiano del Piombo que o representava envolvido em uma peliça e com uma das mãos enluvada pendendo suavemente como se estivesse adormecido. Alguns dos que mais ò estimaram (e eu, um dos poucos entre eles) recordam sua cútis amarelo pálido, transparente, a leveza quase feminina de seus passos e a habitual languidez dos olhos.

Na verdade, era um semeador de assombros. Sua presença dava um calor fantástico às coisas mais simples; quando sua mão tocava algum objeto, parecia que este entrava no mundo dos sonhos...

Ninguém lhe perguntou qual era o seu mal e porque não se cuidava.

Caminhava sempre, sem parar, dia e noite. Ninguém soube jamais onde era sua casa ou conheceu seus pais e seus irmãos. Apareceu um dia na cidade, e passados alguns anos, em outro dia, desapareceu.

Na véspera, quando o céu começava a iluminar-se, veio ao meu quarto despertar-me. Senti a carícia de sua luva em minha fronte, e o vi, com seu sorriso que mais parecia a lembrança de um sorriso, tendo os olhos mais distraídos do que de costume. Compreendi que havia passado a noite em claro, aguardando com ansiedade o amanhecer: tremiam-lhe as mãos e todo seu corpo parecia tomado pela febre.

Perguntei a ele se sua doença o fazia sofrer mais do que nos outros dias.

— Crês então, como todos os outros, que eu tenho uma enfermidade? Por que não dizer que eu sou uma enfermidade? Nada me pertence, porém eu sou de alguém e há alguém a quem pertenço.

Acostumado as suas estranhas digressões, nada disse. Acercou-se de minha cama e tocou-me outra vez a fronte com sua luva.

— Não tens o menor sinal de febre e estás perfeitamente são e tranquilo. Talvez isto te espante, mas posso dizer quem sou. E talvez não possa voltar a repeti-lo.
Deixou-se cair em uma poltrona e prosseguiu em voz mais alta: — Não sou um homem real, com ossos e músculos, gerado por homens. Não sou mais do que a figura de um sonho. Há uma imagem de Shakespeare que é, com referência a mim, literal e tragicamente exata: Sou feito da mesma matéria de que são feitos os sonhos! Existo porque há alguém que me sonha; há alguém que dorme e sonha e me vê agir e viver e mover-me, e neste momento sonha que eu digo tudo isto.

Quando começou a sonhar-me, comecei a existir: hoje sou hóspede de suas grandes fantasias noturnas, tão intensas que me tornaram visível àqueles que estão acordados. O mundo da vigília, porém, não é o meu.

Minha verdadeira vida é a que transcorre na alma do meu adormecido criador. Não recorro a enigmas nem a símbolos; o que digo é verdade.

Ser ator de um sonho não é o que mais me atormenta. Há poetas que disseram que a vida dos homens é a sombra de um sonho e há filósofos que sugeriram que a realidade é uma alucinação. Porém, quem é aquele que me sonha? Quem é este ser que me fez surgir e que ao despertar me apagará? Quantas vezes penso nesse meu dono que dorme!... A pergunta me agita desde que descobri de que estou feito.

Compreenderás a importância que este problema tem para mim.

As personagens dos sonhos desfrutam de bastante liberdade; tenho também os meus caprichos. A princípio, me aterrorizava a ideia de despertá-lo, quer dizer, de aniquilar-me. Levei uma vida virtuosa. Até que me cansei da humilhante qualidade de espetáculo e desejei ardentemente o que antes temia: despertá-lo. E não deixei de cometer delitos. Porém aquele que me sonha, não se espantará com o que faz tremer os demais homens? Regozija-se com as visões terríveis, ou não lhes dá importância? Nesta monótona ficção, digo ao meu sonhador que sou um sonho: quero que ele sonhe que está sonhando. Não existem homens que acordam quando se dão conta de que estão sonhando?

Quando, quando conseguirei isso?

O Cavaleiro Enfermo colocava e tirava a luva da mão esquerda; não sei se esperava que, de um momento para outro, algo de atroz acontecesse.

— Acreditas que eu esteja mentindo? Por que eu não posso desaparecer? Console-me; diga algo, tenha piedade deste aborrecido espectro.

Não atinei dizer coisa alguma. Deu-me sua mão, parecendo-se mais alto do que antes, e sua pele era diáfana. Disse algo em voz baixa, saiu do meu quarto, e desde então somente uma pessoa pode vê-lo.
Giovanni Papini, "O trágico cotidiano"

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