“Roça” é um lugar que a esperança abandonou. Havia os que “iam” à roça. Eram os fazendeiros proprietários que moravam na cidade e lá apareciam para ver o seu gado. Para esses havia esperança. Havia também os raros amigos que visitavam aos domingos. Para eles “roça” era piquenique. Mas havia os que “pertenciam” à roça, que estavam plantados nela, companheiros do gado, das matas, dos pastos. Para esses não havia esperança. Quem era da roça morria nela. “Roça” era limbo de onde não se podia sair. Meu pai não era da roça. A roça foi o seu degredo.
Para sobreviver era preciso lutar com a natureza. A natureza é bonita quando a gente a contempla de longe. De longe é um cenário bom de se fotografar. Ou quando ela foi domesticada e transformada em parque ou jardim. Mas a natureza em si, do jeito como nasceu, bruta, a gente dentro dela, é fera que mata sem piedade. Um amigo que morou menino na roça me disse: “Hoje todo mundo fala mal dos pioneiros que cortaram as florestas a machado. Acusam-nos de assassinos da natureza. Mas não havia outro jeito. A mata estava ali, cobra verde de boca aberta, à espreita, sorrateira, se arrastando, se aproximando, pronta a dar o bote. A mata era inimiga. Era preciso matá-la como se mata cobra. Ou nós ou ela... Para se construir uma casa e viver em paz era preciso acabar com a mata. Bom não era o verde. Bom era o ‘terreiro’ bem limpo, apisoado, varridinho, sem nem um capim crescendo nele, garantia de que as aranhas, os escorpiões e as cobras ficariam longe”.
Era no terreiro que as crianças brincavam sem perigo. Quando o Jeca Tatuzinho se curou dos vermes e do amarelão e ganhou saúde, pegou no machado e pôs-se a cortar árvores. Assim escreveu Monteiro Lobato, o desenho do Jeca Tatuzinho cortando árvore, o que indica que até mesmo ele aprovava o que o Jeca fazia.
Lembro-me do meu pai trabalhando com a foice, corpo coberto de suor. Era preciso roçar os pastos para o gado ter o que comer. Batia a exaustão. Exaustão maior para quem não estava acostumado. Depois ele me contou que, quando a sede apertava, ele, de propósito, não bebia água. Esperava que a sede crescesse até ficar insuportável. Aí então ele ia até a mina. A mina estava escondida numa loca coberta de vegetação. Dentro era a sombra. A água borbulhava de mansinho, cristalina. A cuia cortada ao meio estava pendurada num gancho, à sombra. Ele pegava a cuia, enchia-a de água, olhava para a água agradecido, e bebia. Aí ele sentia que valia a pena viver. Não é preciso acreditar em Deus para sentir gratidão. Basta uma cuia d’água...
Tudo o que eu disse sobre a “roça” como lugar que a esperança abandonou só valia para os grandes. Eu era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E eu não tinha com que comparar. Bachelard observou que “a infância conhece a infelicidade através dos homens” (A poética do devaneio). Ainda não havia aprendido com os adultos a arte maldita da comparação.
Esperança é coisa de gente grande, que vive no tempo, o passado, o presente, o futuro. Esperança é uma fantasia do futuro que alegra o presente. Criança não tem esperança. Não precisa. Se alegra no presente. Criança está fora do tempo. Mora na eternidade. Na eternidade não há tempo, não há passado, não há futuro, só o presente. Criança vive o momento. Eu só vivia o presente. Não tinha ansiedades. Meu irmão Ismael me contou que um dia a mãe lhe disse: “O que nos resta para viver são 800 mil-réis de um carro de bois que o seu pai vendeu...” . Minha mãe e meu irmão estavam ansiosos pelo futuro. Eu não. Sem o saber vivia a sabedoria evangélica que dizia que é inútil se preocupar com o amanhã. Jesus sabia que a cura para nossas doideiras é ficar criança de novo.
Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"
Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"

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