Agora o azul está indolentemente belo. Tem quase uma irônica serenidade. E o azul intenso, frio, triunfante. Tem a luz, a beleza, a força, a inefabilidade. Agora a luz enternecida dos campos arrasta-se pelas grandes águas quietas e pálidas, onde o vento revolve e espalha a agonia das folhas.
Quando voltava, vi uma casa pequena, esbranquiçada, escondida entre as bênçãos indolentes das árvores. Tinha a serena quietação de quem tem ouvido segredos extáticos e era triste e religiosa como a entrada amarelecida de um convento católico. Havia uma corrente de água delgada que fazia claras murmurações, e era como o acompanhamento, natural e melódico, de uma écloga latina. Entre as árvores estava um banco solitário onde o musgo se dependurava. Nas plantas, nas clematites, nas trepadeiras que o cercavam, havia um murmúrio como de vozes distantes que contam felicidades perdidas. A pedra escura e molhada do banco tinha a tristeza das pedras do cemitério à luz consoladora, purificadora e branca que cai dos céus outonais.
Agora, ali sobre aquele banco dorme estirada a grande luz do Sol, e à noite o luar, porque já não há naquela casa namorados contemplativos, que venham de noite ou à sesta despertar para se poderem sentar — aqueles dormentes de luz.
Aquela casa abandonada faz lembrar amores místicos: e quando se vê à luz dolente do escurecer, faz subir do coração como um sabor de beijos antigos e esquecidos.
As árvores erguiam em atitudes violentas e proféticas os seus braços nus, engelhados, suplicantes para o frio azul, esperando no entorpecimento a fermentação violenta das seivas. Os ramos frios e nítidos deixavam passar indiferentes, sem as suspender, sem as acariciar, as moles nudezas das nuvens.
Toda a Natureza no tempo dos frios está impassível e sonolenta.
Passei por um cemitério. Andava um coveiro abrindo covas. Tinha um rosto inerte e animal. A luz dissipava-se. E uma estrela, que se chama Vênus, luzia metálica, ardente, desejosa, lancinante, num fundo sinistro de ramagens.
O coveiro é um semeador. Semeia corpos. Somente não tem esperança nem o amor das colheitas. Quem ceifará aquela plantação crescida? Quem sabe se os corpos que se atiram a vala, sementes fúnebres, se abrem, lá em cima, em searas divinas de que nós apenas vemos a ponta das raízes que são as estrelas? Mas não. A alma morre. O corpo revive e dissipa-se na matéria enorme.
E na alma que estão as más vontades, os negros remorsos, as lacerações do mal: o corpo desce livre, novo e são para as uberdades limosas das covas.
Quando chega o último frio, ódios, amores, tristezas, invejas, melancolias, desejos, todos cansados das lutas e da vida, dizem à Natureza como gladiadores vencidos: “Os que vão morrer saúdam- te!” E morrem. A vida e o seu suplício é absorvida na insensibilidade da Natureza, no silêncio perpétuo, na força fatal e cega. E a matéria vai pelos ares, pelas planícies, amolece-se nas sombras, vivifica-se nos raios claros, e rochedo, floresta, torrente, fluido, vapor, ruído, movimento, estremecimento confuso do corpo de Cibele: e a matéria sente a vida universal, a palpitação do átomo debaixo da forma, sente-se banhada pelas claridades suaves e pelos cheiros dos fenos, sente-se impelida para a luz magnética dos astros e dilacerada nos ásperos movimentos da terra. A matéria tem a consciência augusta da sua vitalidade. E assim, sob a tua impassibilidade, há uma angústia imensa, uma vida ardente, impiedosa, uma alma terrível, ó formidável Natureza!
A noite descia: caía de cima uma claridade láctea: pesava um austero e lento silêncio: a larga brancura celeste era gloriosa; os pastores desciam com os rebanhos lentos, balando; havia pelo ar uma bondade indefinida, uma virtude fluida: eu lembrava-me dos Elísios olímpicos e mitológicos onde, na claridade, passam as sombras heroicas, serenas, brancas, leves, levadas por um vento divino. Claridades sem sol!
Eu ia, escutando os passos da doce noite que vinha caminhando. Ia- me afundando no tédio como um navio roto numa maré do equinócio. Enchiam-me a alma crepúsculos brancos. Entrei no grande arvoredo negro. Àquelas horas, os linfáticos, os inocentes, os místicos, encontram nos arvoredos languidezas e elevações ascéticas. Mas eu tremia entre a ramaria inquieta como um mar, misteriosa como um firmamento — tremia como um homem medroso que visse erguer-se um mono. Toda aquela negra decoração de ramos torcidos, de folhagens lívidas, de silêncios, enchia-me de um terror profundo e trivial. A luz dissipada e transfiguradora do ocaso dava aos troncos um estranho aspecto de lutadores, vindos do sangue e dos incêndios: os sinos distantes eram como vozes indefinidas de miséria e de dor.
Passava um vento incessante e perseguidor. Os mochos voavam, e as águas sonoras eram como vozes vingativas e trágicas. A Lua entorpecida passava por detrás da estacada de ramos. O vento era rouco e lento como um canto católico de ofícios. E o grasnar lento e arrastado dos corvos parecia uma ladainha bárbara de padres. As árvores doentias rangiam ao vento hibernal, o ar estava diáfano, lácteo e mortuário. As estrelas que apareciam tinham o olhar lancinante.
Cheguei à estalagem. Embaixo na lareira um magro fogo lambia as fuligens. A luz do meu quarto tinha a lividez dos círios, e o espelho tinha reflexos pálidos, como de sombras mitológicas que passassem. Ouviam-se os lobos.
Lembravam-me então as outras noites, claras, doces, lentas, em que o céu derrama sonolências; então também eu ia por entre as árvores e ouvia ondas sonoras de cantigas, que o vento fazia retinir através da bruma, entre o acre cheiro das eflorescências.
Aquelas vozes claras eram doces, santas, saídas de cristais, como veladas por um luar.
Eram como claridades sonoras de estrelas. Era uma multidão de formas divinas que assim cantavam, divindades feéricas, willis, nixes, peris, fadas, que passavam ligeiras sem despertar os ramos adormecidos. Aquelas nudezas celestes, filhas do fogo, flores do mal, ondas do ar, entrelaçavam-se, dançando nas obscuridades, que as cintilações estelares franjavam de palidezas. No meio dos nevoeiros humanos elas faziam resplandecer diante dos olhos as visões paradisíacas, as criaturas siderais de lânguidos misticismos. Elas iam naqueles enlaçamentos, brancas e louras, cheias de lirismo, com os pés vermelhos e magoados de terem pisado auroras, iam, pousando nos jacintos, nos mirtos, nas rosas bárbaras cheias de sangue radioso, iam rolando sobre a brancura soluçante dos lírios e a sua voz triste subia por entre o azul lácteo para a Lua chorosa.
Quando assim estava no quarto da estalagem, inerte como uma múmia, pensando nestas coisas, vi repentinamente através das vidraças a Lua aparecer-me.
Mas não era aquela pura e imaculada Lua cor de opala — que derrama brancuras, como se através do azul caíssem lírios. Era uma Lua metálica, fria, hostil, material como uma moeda de ouro nova.
Ela aparecia-me mortuária e lívida como uma sombra finada, que se ergue às grades de um adro. E o seu olhar, lancinante e rápido, estava cheio das minhas agonias…
Ora nessa estalagem encontrei um amigo, antigo camarada, que se tinha feito saltimbanco.
Fez bem. Cansado dos pedantes, dos burgueses, dos ventres mercantis, dos imbecis afogados em gordura, fez-se saltimbanco e vive entre os palhaços. Faz farsas coberto de farrapos luzentes, engole espadas, dança farto de vinho como um Sileno.
Dorme numa capa esfarrapada, com a nuca sobre um tambor, à frescura das estrelas e sob a bondade dos luares.
Às vezes tem frio e fome e gela nuns calções feitos de veludilho e de galões de ouro. Anda errante de vila em vila e a populaça da lama admira-o cingido do seu diadema de metal luzente. Dança sobre a corda, e os seus gestos e as suas musculaturas fazem soluçar de desejos as gitanas e as feiticeiras. Que lhe importam as grandezas e as materialidades felizes?
Ele tem a multidão extática e enlevada nos giros dos seus sapatos, e tem uma bem-amada de tranças tão compridas como os ramos de um chorão e aneladas e fortes como negros penachos de voluptuosidade, e a sua testa tem um reflexo de luar, de mármore e de espelho: e tem um belo seio de formas bárbaras.
Ele pula à noite, no circo aluminado, enquanto as toutinegras cantam nos canaviais. Ele faz girar vinte punhais de cobre em volta da cabeça num círculo puro e sonoro. E a multidão, um dia, vendo aquele diadema terrível e faiscante, e o saltimbanco impassível, grave, enfarinhado sob aquela coroa de luz, tomá-lo-á por um ídolo e fá-lo-á igual aos deuses!
Ele, o meu saltimbaco, tem a alma de ouro e o coração de diamante — e ri-se, ri-se, quando o vento soa como flauta do Inverno, e ao concerto das corujas e das ondas as estrelas dançam.
A miséria anda-lhe cavando a sepultura. Um dia, abandonado da bem-amada, morrerá sem pão, sem luz, sem calor, sem orações e sem sol. E não sofrerá mais. Viu durante a vida todo um povo curvado, aplaudindo, debaixo dos seus borzeguins. Os tambores e os clarinetes tocarão o dia melhor do saltimbanco, o dia em que morrer: tocarão o seu melhor dia os ferrinhos, os timbales, os clarinetes e os tambores!
Todas estas coisas se parecem com sonhos. Mas o que é o sonho? O que são as visões? São as atitudes, fantásticas e desmanchadas, que a sombra dá às verdades. Já pensava assim o poeta Li Tai-Pé, que escrevia sobre as coisas santas da China, entre porcelanas e lacas, ao sopro dos nenúfares, vestido de sedas amarelas, perfumado de charão — doce contemplativo, branco diante de um vaso de margaridas!
Eça de Queiroz

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