Disseram-me isto: que o meu avô abriu uma cova no jardim das traseiras e de seguida a regou com gasolina; depois, atirou-lhe o manuscrito e, com um sorriso, acrescentou ao cozinhado a chama pequena de um fósforo. Com empenho e combustível, até uma pequena chama faz grandes coisas.
Antes, durante anos, escondeu um caderno escrito à mão que teve o efeito de o calar, como se só houvesse histórias naquelas páginas. Assemelhava-se a certos reformados cujo derradeiro interesse, por norma uma genealogia vaga ou uma filatelia desinteressante, os faz sumir da actualidade.
Agora falava pouco do passado, ao contrário do que acontecia na minha adolescência, que ilustrara com as coisas da guerra: havia casacos de ouro, crânios em praias portuguesas, gorilas de dorso de prata atravessando as estradas de Cabinda, um cabo de metal tenso entre duas árvores para decapitar quem por elas passasse, corpos esquecidos em pás de retroescavadoras; e até um tiro de G3 que subiu direitinho pelo olho do cu de um macaco.
Encantava-me de tal maneira ouvi-lo, prendia-me cego numa mentira de amor, como se quem conta e quem ouve dessem as mãos, que eu achava que o avô e o contador de histórias eram a mesma pessoa. A África do avô tinha sempre uma fuga, o contraponto da violência. Uma criança nunca morria sem que o sangue desenhasse uma rosa, nunca uma cidade saqueada surgia sem que alguém tentasse repor um frasco de compota às prateleiras das mercearias. Tudo era violento e delicado na guerra, como tudo parecia violento e delicado no avô.
Afonso Reis Cabral, "O Último Avô"
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