segunda-feira, setembro 29

Sem experimentar raiva nem piedade

Havia uma guerra contra os turcos. O visconde Medardo di Terralba, meu tio, cavalgava pelas planícies da Boêmia rumo ao acampamento dos cristãos. Acompanhava-o um escudeiro chamado Curzio.

As cegonhas voavam baixo, em bandos brancos, atravessando o ar opaco e parado.

— Por que tantas cegonhas? — perguntou Medardo a Curzio —, para onde estão voando?

Meu tio acabava de chegar, se alistara havia pouco, para agradar a alguns duques, nossos vizinhos, empenhados naquela guerra. Munira-se de um cavalo e de um escudeiro no último castelo em mãos cristãs, e ia apresentar-se ao quartel imperial.

— Estão voando para os campos de batalha — disse o escudeiro, sombrio. — Vão nos acompanhar por todo o caminho.

O visconde Medardo ficara sabendo que naquelas terras o voo das cegonhas é sinal de boa sorte; e queria mostrar-se alegre por vê-las. Mas, a contragosto, sentia-se inquieto.

— O que pode atrair as pernaltas aos campos de batalha, Curzio? — perguntou.

— Agora, também elas comem carne humana — respondeu o escudeiro —, desde que a carestia tornou os campos áridos e a estiagem secou os rios. Onde há cadáveres, as cegonhas, os flamingos e os grous substituíram os corvos e os abutres.

Meu tio se achava então na primeira juventude: a idade em que os sentimentos se misturam todos num ímpeto confuso, ainda não separados em bem e mal; a idade em que cada experiência nova, também macabra e desumana, é toda trepidante e efervescente de amor pela vida.

— E os corvos? E os abutres? — perguntou. — E as aves de rapina? Onde foram parar? — Estava pálido, mas seus olhos cintilavam.

O escudeiro era um soldado de pele escura, bigodudo, que nunca erguia os olhos.

— À força de comer as vítimas da peste, a peste os atacou também. — E apontou com a lança certas moitas escuras que a um olhar mais atento se revelavam não de plantas, mas de penas e pés ressecados de aves de rapina.

— Assim, nem dá para saber quem morreu antes, se a ave ou o homem, e quem se lançou sobre o outro para esganá-lo — disse Curzio.

Para fugir da peste que exterminava as populações, famílias inteiras tinham se encaminhado para os campos, e a agonia havia golpeado a todos ali. Em montes de carcaças, espalhadas pela planície árida, viam-se corpos de homens e mulheres, nus, desfigurados pelas marcas da peste e, coisa a princípio inexplicável, penugentos: como se daqueles braços macilentos e costelas tivessem crescido penas pretas e asas. Eram as carcaças de abutres misturadas com as sobras deles.

O terreno já ia mostrando sinais de batalhas. A marcha se tornara mais lenta porque os dois cavalos topavam nos restos e lombadas.

— O que está acontecendo com nossos cavalos? — perguntou Medardo ao escudeiro.

— Senhor — respondeu ele —, nada desagrada tanto aos cavalos quanto o fedor das próprias tripas.

A faixa de planície que atravessavam achava-se de fato cheia de carcaças equinas, algumas para cima, com os cascos voltados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfiado na terra.

— Por que tantos cavalos caídos neste ponto, Curzio? — perguntou Medardo.

— Quando o cavalo sente que está sendo atingido na barriga — explicou Curzio —, trata de segurar as vísceras. Alguns apoiam a pança no chão, outros se viram de costas para que elas não caiam. Mas a morte não tarda a ceifá-los do mesmo jeito.

— Quer dizer que são sobretudo os cavalos que morrem nesta guerra?

— As cimitarras turcas parecem feitas de propósito para rasgar-lhes o ventre com um só golpe. Mais adiante verá os corpos dos homens. Primeiro caem os cavalos e depois os cavaleiros. Pronto, lá está o campo.

Nos limites do horizonte elevavam-se os pináculos das tendas mais altas, os estandartes do exército imperial e a fumaça.

Continuando a galopar, viram que os caídos da última batalha tinham sido quase todos removidos e enterrados. Só se viam alguns membros dispersos, especialmente dedos, apoiados nos restolhos.

— De vez em quando há um dedo indicando o caminho — disse meu tio Medardo. — Que significa?

— Deus os perdoe: os vivos cortam os dedos dos mortos para arrancar-lhes os anéis.

— Quem vem lá? — disse uma sentinela com capote coberto de mofo e musgo como a casca de uma árvore exposta à tramontana.

— Viva a sagrada coroa imperial! — gritou Curzio.

— E que morra o sultão! — replicou a sentinela. — Mas, por favor, quando chegarem ao comando, digam-lhes para mudar logo o turno, pois começo a deitar raízes!

Agora os cavalos corriam para escapar da nuvem de moscas que circundava o campo, zumbindo pelas montanhas de excrementos.

— De muitos valentes — observou Curzio — o esterco de ontem ainda está no chão, e eles já chegaram ao céu. — E benzeu-se.

Na entrada do acampamento, costearam uma fila de baldaquins, sob os quais mulheres de cabelos encaracolados e corpulentas, com longos vestidos de brocado e os seios nus, acolheram-nos com gritos e risadas.

— São os pavilhões das cortesãs — disse Curzio. — Nenhum exército possui outras tão lindas.

Meu tio já cavalgava com o rosto virado para trás, observando-as.

— Cuidado, senhor — acrescentou o escudeiro —, andam tão sujas e empestadas que nem os turcos as aceitariam como presas de um saque. Além de carregadas de chatos, percevejos e carrapatos, agora até os escorpiões e os lagartos fazem ninhos sobre elas.

Passaram diante das baterias do campo. À noite, os artilheiros cozinhavam o rancho de água e nabos no bronze das espingardas e dos canhões, abrasado dos intensos disparos da jornada.

Chegavam carroças cheias de terra e os artilheiros a peneiravam.

— A pólvora está ficando escassa — explicou Curzio —, mas a terra onde as batalhas aconteceram está tão impregnada que, insistindo-se, dá para recuperar algumas cargas.

Depois vinham as instalações da cavalaria, onde, entre as moscas, os veterinários trabalhavam sem parar remendando a pele dos quadrúpedes com costuras, faixas e emplastos de alcatrão fervente, todos relinchando e escoiceando, inclusive os doutores.

As tendas da infantaria seguiam-se por um grande trecho. O sol se punha e diante de cada tenda os soldados estavam sentados com os pés imersos em tinas de água morna. Sendo comuns os alarmes repentinos de dia e de noite, mesmo na hora do pedilúvio continuavam a segurar o capacete e a lança. Em tendas mais altas e montadas em forma de quiosque, os oficiais punham talco nas axilas e se refrescavam com leques de rendas.

— Não fazem isso por frescura — disse Curzio —, ao contrário: querem mostrar que se acham completamente à vontade em meio à dureza da vida militar.

O visconde de Terralba foi logo conduzido à presença do imperador. Em seu pavilhão cheio de tapeçarias e troféus, o soberano estudava nos mapas os planos de futuras batalhas. As mesas estavam cobertas de mapas abertos, e o imperador espetava neles alfinetes, retirando-os de uma almofada própria que um dos marechais lhe estendia. Os mapas já estavam tão carregados de alfinetes que não se entendia mais nada, e para ler alguma coisa precisavam tirar os alfinetes e voltar a recolocá-los. Nesse tira e põe, para ficar com as mãos livres, tanto o imperador quanto os marechais mantinham os alfinetes entre os lábios e só podiam falar por meio de ganidos.

Ao ver o jovem que se inclinava diante dele, o soberano emitiu um ganido interrogativo e tirou depressa os alfinetes da boca.

— Um cavaleiro recém-chegado da Itália, majestade — apresentaram-no —, o visconde de Terralba, de uma das mais nobres famílias da região de Gênova.

— Que seja logo nomeado tenente.

Meu tio bateu as esporas, ficando em sentido, enquanto o imperador fazia um amplo gesto real e todos os mapas se enrolavam sobre si mesmos e caíam.

Naquela noite, embora cansado, Medardo tardou a dormir. Andava para a frente e para trás perto da tenda, e ouvia os apelos das sentinelas, os cavalos relinchando e a fala entrecortada de soldados durante o sono. Observava no céu as estrelas da Boêmia, pensava na nova patente, na batalha do dia seguinte e na pátria distante, na música dos caniços dentro d’água. No coração não guardava nem nostalgia, nem dúvidas, nem apreensão. Para ele as coisas ainda eram inteiras e indiscutíveis, e assim era ele próprio. Se tivesse podido prever a terrível sorte que o aguardava, talvez também a tivesse considerado natural e acabada, mesmo em toda a sua dor. Estendia o olhar até o limite do horizonte noturno, onde sabia que se localizava o campo dos inimigos, e com os braços cruzados apertava as costas com as mãos, contente por ter certeza ao mesmo tempo de realidades longínquas e diferentes, e da própria presença no meio delas. Sentia o sangue daquela guerra cruel, disseminado por mil córregos sobre a terra, chegar até ele; e se deixava tocar, sem experimentar raiva nem piedade.
Ítalo Calvino, "O visconde partido ao meio" 

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