segunda-feira, outubro 27

Escolhendo o almoço

Estava jogando milho às galinhas. Ainda não tinha escolhido a que lhe serviria de almoço, mas as duas que se mostravam mais alegres e famintas fizeram seu estômago se alvoroçar agradavelmente.

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Fazia já uma hora que o escritor estava morto, mas de sua boca entreaberta ainda saíam palavras grandes, médias e pequenas, que se entrelaçavam, se juntavam, se contorciam como vermes. Quando o padre pronunciou algumas frases em latim, elas se imobilizaram por alguns instantes. Em seguida, foram se dirigindo ao dicionário, na estante, e, sem tumulto, cada uma voltou ao seu lugar, enquanto a boca do escritor, também apaziguada, se fechava.

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Criou ojeriza a músicas melosas, ao som do violino, às flores da primavera, às folhas do outono e aos poemas de amor. Viveu para fulminar com sua ira qualquer coisa que lhe parecesse manifestação de sensibilidade ou sentimento. Um dia, criou ojeriza às suas ojerizas e sentiu que não tinha mais por que viver.

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Caminhando pelo parque, esteve em dúvida: falaria com a garota de bermuda roxa, a de fita na testa ou aquela que corria com empenho de maratonista? Pesou as possibilidades por meia hora e, quando se decidiu, a que corria como se competisse correu ainda mais e sumiu, a de bermuda roxa repeliu-o com um riso cheio de deboche e a de fita na testa disse-lhe simplesmente que a encontrasse no dia seguinte, não ali, mas no bordel em que certamente a mãe dele deveria estar.

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Márika Voroshenka às vezes parece uma adúltera assustada. Se alguém, principalmente um homem, se aproxima do banco recôndito em que nos sentamos no parque, ela exige que eu a desabrace e finja não conhecê-la. Puxa então da bolsa uma revista que eu simulo ler. Hoje aconteceu isso. Um senhor com seu cachorro surgiu sorridente na trilha e eu, olhando por cima da revista, fiquei a observá-lo enquanto se afastava. Enquanto isso, Márika olhava para o céu, como se fosse uma aprendiz de meteorologista. Quando o homem sumiu de vista, ela, como sempre ocorre em situações assim, pôs de volta meu braço nela, e puxou meus dedos para o seu seio.

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Quando comecei a escrever, diziam que eu tinha certo jeito para a poesia. Creio não ter perdido esse certo jeito, mas há muito tempo imagino que ele não seja o jeito certo.
Raul Drewnick

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