Nas férias toda tarde eu via a lesma no quintal. Era a
mesma lesma. Eu via toda tarde a mesma lesma se
despregar de sua concha, no quintal, e subir na pedra.
E ela me parecia viciada. A lesma ficava pregada na
pedra, nua de gosto. Ela possuíra a pedra? Ou seria
possuída? Eu era pervertido naquele espetáculo. E se eu
fosse um voyeur no quintal, sem binóculo? Podia ser.
Mas eu nunca neguei para os meus pais que eu gostava
de ver a lesma se entregar à pedra. (Pode ser que eu
esteja empregando erradamente o verbo entregar, em
vez de subir. Pode ser. Mas ao fim não dará na mesma?)
Nunca escondi aquele meu delírio erótico. Nunca
escondi de meus pais aquele gosto supremo de ver.
Dava a impressão que havia uma troca voraz entre a
lesma e a pedra. Confesso, aliás, que eu gostava muito,
a esse tempo, de todos os seres que andavam a esfregar
as barrigas no chão. Lagartixas fossem muito principais
do que as lesmas nesse ponto. Eram esses pequenos
seres que viviam ao gosto do chão que me davam
fascínio. Eu não via nenhum espetáculo mais edificante
do que pertencer do chão. Para mim esses pequenos
seres tinham o privilégio de ouvir as fontes da Terra.
Manoel de Barros, "Memórias inventadas"

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