quinta-feira, dezembro 18

Natal na terra das neves

Era noite de Natal, e por isso, fazendo questão de festejar a data sagrada, Mamelute Kid estava preparando uma ponche forte, com uísque e gim. Jim Belden, que por causa dessa noite viera de seu clã, onde havia dois meses não comia senão carne de alce, acompanhava seus movimentos com olhar extático. Como bebida, só tivea durante esse tempo açúcar diluído e fermentado. Imagine-se então com que ansiedade esperava o ponche.

Os outros, em volta, conheciam de viagens e aventuras naquela região, isto é, conheciam de frio, fome, sofrimento, morte… E cada um, falando do que vira ou sofrera, dilatava as pupilas, sonhando com as terras do sul, onde havia sol, relva, flores, luz… Eram oito, de nacionalidades diferentes, exceto Mamelute e o padre Robeau, que eram canadenses. Mas a vida rude região daquela mineira eternamente gelada os irmanara.


Quando os efeitos do ponche começaram a se fazer sentir, cada qual fez um brinde diferente: à Sua Graciosa Majestade, ao Czar de todas as Rússias, à República… ao Pavilhão das Estrelas.

Então Mamelute se atrai e disse gravemente:

— Feliz Natal ao homem que anda esta noite pela pista! Que seus cães conservem seu vigor, que os alimentos sejam suficientes e que seus fósforos não falhem!

Como resposta a esse brinde, pegou-se lá fora o estalar de um chicote, uivos de cães e o rangido de um trem que se aproximava da cabana. A conversa terminou, e todos esperaram em silêncio. Depois alguns murmuraram:

— É um dos antigos. Está tratando dos cães antes de cuidar de si mesmo.

Os ouvidos experientes dos que eram ali distinguiam nitidamente os latidos de seus próprios cães, que o recém-chegado repelia para dar de comer somente aos seus. Depois bateram à porta, e, quando o padre abriu, um vulto entrou e se deteve logo, deslumbrado pela lâmpada. Era um belo tipo de homem e, um despeito do gelo que havia em suas sobrancelhas, via-se bem que era moço e singularmente robusto.

Além de um facão e dois revólveres em seu cinto, usava uma carabina juntamente com o chicote, sob o braço esquerdo. Deu alguns passos, e todos notaram que sua fadiga era esmagadora e total. Indicaram-lhe um lugar à mesa e colocaram um copo de ponche diante dele. Mas ninguém lhe indagou o nome. Foi o homem quem disse:

— Há quanto tempo passou por aqui um trem em forma de cesta, com três homens e oito cães?

— Há dois dias. Está atrás deles?

– Sim. Aquela atrelagem me pertence. Mas já ganhei dois dias sobre ela, e espero apanhá-la na próxima etapa.

— Quandobita de Dansou?

— Ao meio-dia.

— Ontem, naturalmente.

— Não, hoje.

Era meia-noite. Um murmúrio de admiração extrajudicial-se do grupo. Percorrer cento e vinte quilômetros pela pista áspera do rio em doze horas era espantoso! Mas os vapores da ponche já estavam se dissipando naquelas cabeças resistentes e, enquanto o viajante devorava uma refeição rústica, uma conversa contínua sobre os assuntos habituais. Depois, desviou-se enternecida para coisas de família, e cada qual falou nos entes queridos, que tinha ou perdera.

— E você? … Também é casado? — disse Belden ao desconhecido.

Como única resposta, o viajante separou seu relógio da corrente que o prendia ao cinto e, abrindo-o, passou-o a Belden.

Este movido-se da lâmpada e, examinando a tampa do relógio por dentro, deixou escapar uma praga de admiração. E passou o relógio em Louis Savoy. Este, depois de admirá-lo também, com olhos extáticos, passou-o a Príncipe, cujo rosto tomou logo uma expressão de enternecimento. 0 que havia ali era o retrato de uma mulher, ainda moça e bonita, apertando contra o peito uma criança robusta, que devia ter seis meses e sorria. Aqueles homens, que viviam isolados do mundo, apoiando fome, frio, escolta e arriscados à morte súbita na terra ou na água, não podiam ver sem emoção a imagem de uma mulher e uma criança, porque essas duas figuras evocavam em seu espírito o lar, a felicidade de uma vida confortável.

O viajante:

— O garoto deve estar com dois anos, e eu ainda não o vi.

Fitou por sua vez a fotografia, depois bateu bruscamente a tampa do relógio, mas não tão depressiva que os outros não vissem lágrimas em seus olhos. Ergueu-se com um suspiro profundo, e Mamelute guiou-o para o mais próximo dos leitos presos à parede.

— Acorde-me às quatro horas em ponto. Não se esqueça. As quatro horas — pediu o homem. Sua fadiga era tal que, apenas pronunciou essas palavras, adormeceu.

— Que camarada resistente! — exclamou Príncipe. Três horas de sono, depois de uma corrida de cento e vinte milhas com os cães, e logo retoma a pista… É um homem! Você o conhece? …

– Sim. É Jack Westondale. Veio para esta região há uns três anos. É conhecido por trabalhar como um cavalo e não ter tido sorte, até hoje.

— É triste… um rapagão esses, com uma esposa tão bonita, ter de vir se metro por anos e anos neste deserto.

— É, coitado… Por duas vezes já fez fortuna, mas perdeu-a — concluiu Mamelute.

A palestra desviou-se para outros casos de enriquecimento e miséria. Mamelute não tomou mais parte nela. Parecia inquieto. De instante a instante, lançava um olhar ao relógio. De súbito, pôs na cabeça o boné de castor, calçou as luvas e, saindo da cabana, foi rebuscar em seu depósito. Quando voltei, ainda faltavam quinze minutos para as quatro; mas, não podendo conter a impaciência, foi sacudido por Jack.

O rapaz desesperado estava tão anquilosado que precisava friccionar-lhe vigorosamente todo o corpo para que pudesse ficar de pé e caminhar. Mas quando saiu da cabana, teve a boa surpresa de encontrar os cães atrelados e tudo pronto para a partida.

Todos desejaram boa viagem; o padre abençoou-o, mas ninguém passou da porta, porque era perigoso enfrentar uma temperatura daquelas com as mãos e as orelhas descobertas. Mamelute, porém, abrigou-se e acompanhou-o até à pista principal. Chegando ali, abrindo você vigorosamente a mão de Jack e ele disse:

— Há quarenta e cinco quilos de ovos de salmão no trem. Isso dará mais vigor aos seus cães do que setenta quilos de peixe. Tomei essas providências porque provavelmente você não poderá renovar as disposições em Pelly. Jack estremeceu, mas limitou-se a fitar atentamente o outro, sem uma palavra. Mamelute contínuo:

— Você não poderá obter nada antes de Five Fingers. Desconfie da água livre e vá pelo atalho que passa acima do lago Le Barge.

— Mas como você poderia adivinhar? —disse Jack. — É impossível que a notícia tenha chegado antes de mim.

— Eu não sei de nada… nem quero saber. Mas o trem atrás do qual você nunca lhe pertence. Sitka Charley vendeu-o na primavera passada. Ele me falou de você como um homem leal, e estou certo de que de fato o é. Raramente me engano, e é bastante olhar para os seus olhos para saber que você é um homem de bem. Vá. Não perca tempo… Vá se encontrar com sua mulher e seu filho. Não… não precisa me agradecer — concluiu Mamelute, vendo lágrimas se gelarem sobre os rostos de Jack. — Não perca um minuto. Se algum cão cair, corte as correias e abandone-o. Você poderá comprar outros em Five Fingers e Hostarhigua. Não hesite em pagar até dez dólares cada um.

Tinham-se passado apenas quinze minutos, quando o som de guizos anunciou um novo viajante. Dessa vez foi um tenente da Polícia Montada, acompanhado por dois mestiços, encarregados dos cães. Como Jack vinham armados até os dentes, mas o tenente, ainda um pouco habituado à pista, estava evidentemente extenuado. Somente o amor próprio e a tenacidade peculiar à sua raça permitiriam manter-se de pé.

— Jack Westondale passou por aqui, não é verdade? — Disse ele. A indagação foi inútil porque os vestígios de sua passagem ainda eram muito visíveis na neve. Mamelute piscou um olho para os companheiros, e Belden, a quem o tenente se dirigiu, limitou-se a fazer um gesto evasivo.

— Respondeu — insistiu o tenente — Ele roubou quarenta mil dólares de Henry MacFarland e trocou-os pela PB Steel por um cheque contra Scottle. Preciso alcançá-lo para que não o receba.

Todos ficaram em silêncio. Mamelute era o chefe, todos confiavam em sua experiência, e seu sinal fora o bastante para ditar sua conduta. O policial, impaciente, supostamente-se ao padre, que, sendo sacerdote, não podia mentir.

— Há quanto tempo?

— Há um quarto de hora, depois de ter dormido umas três horas.

O tenente constru-se:

— Um quarto de hora de avanço… e descansou! Maldição! Mas vou agarrá-lo. Posso me emprestar cinco cães?

Mamelute fez com a cabeça um movimento negativo.

— Compro-os. Dou-lhe um cheque contra o capitão Constantin. A mesma recusa silenciosa.

— Nesse caso, requisito-os para o serviço do rei.

Mamelute, com um sorriso zombeteiro, pousou as mãos nos revólveres que tinham no cinto. O inglês, compreendendo que nada obteria pela violência, dispôs-se a sair, e como os mestiços protestaram, alegando fadiga, insultou-os, chamando-os de mulheres e cães.

— Pois vamos — disse um dos mestiços. — Quer continuar? Pois continuamos. Vamos caminhar até que ele caia nas pernas. Quando não puder mais, teremos prazer em deixá-lo na neve.

— Está bem — disse o jovem oficial. E, com uma energia que projeta toda a sua força de vontade, caminhou para a porta.

Todos apreciaram sua orgulhosa coragem e acompanharam com atenção os esforços dos mestiços para obrigar os cães extenuados a partirem de novo. Mas quando o ruído do trem se perdeu à distância, os companheiros de Mamelute não mais ocultaram sua indignação.

— Isso não se faz! Você nos fez prestar auxílio a um ladrão.

Estavam certamente furiosos, não só porque Jack os iludira como porque ele violara a moral de Northland, onde a honestidade é aplicada acima de tudo. Mamelute pediu silêncio com um gesto largo e começou:

— Nunca um homem mais leal como eu em nossa mesa e partilhou nossas cobertas. No outono passado, ele entregou a Joe Castrell tudo o que poderia arrancar da terra com trabalho infernal: quarenta mil dólares, carregando-o de comprar terras do domínio. Se Castrell o tivesse feito, hoje Jack estaria milionário.

“Mas, enquanto Jack estava em Cald City para não abandonar seu sócio atacado de escorbuto, que fez Castrell? Foi ao bar de MacFarland, jogou todo o dinheiro de Jack e perdeu-o. É verdade que estava bêbado. MacFarland teve o cuidado de começar por embriagá-lo. Quando recuperou o juízo, Castrell estourou a cabeça com um tiro. Agora Jack não fez mais do que se vingar e vingar o amigo leviano. E nota que tirou da gaveta do barman apenas informa que ele foi roubado.” O narrador se calou. Todos os olhos cintilaram em torno dele, todas as cabeças acenaram sua aprovação.

Mamelute atraiu o copo e disse gravemente:

— Feliz Natal ao homem que vai esta noite pela pista! Que seus cães conservem seu vigor e que seus fósforos não falhem!

Todos ergueram o copo, e Belden acrescentou:

— E demônios levem a Polícia Montada, que não sabe compreender as coisas.

Jack London

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