sexta-feira, junho 20

A livraria

Parecia mesmo um lugar estranho para encontrar uma livraria. Todas as outras empresas comerciais da rua destinavam-se a provar as necessidades mínimas da movimentação de escória do bairro. Nessa rua, a principal via de circulação, havia um brilho e uma vida especial, produzida pela rápida passagem do tráfego. Era quase arejada, quase alegre. Mas por toda a volta grandes trechos de favela pululavam em sua umidade clausura. Os habitantes fizeram todas as suas compras na rua principal; passando com mãos pedaços de carne que parecem viscosas mesmo através do embrulho de papel; pechinchavam linóleo em portas de estofadores; mulheres, de chapéu e xale pretos, passandom arrastando os pés em direção ao mercado com sacolas surradas de palha tecida. Como é que essas pessoas podiam, me queriam, comprar livros? E no entanto aí estava ela, uma loja minúscula; e as vitrinas tinham prateleiras, e havia as lombadas marrons dos livros. À direita um grande empório inundava a rua com sua mobília fabulosamente barata; à esquerda as vitrinas discretas e cobertas de cortinas de um restaurante anunciavam em descascadas letras brancas os méritos das refeições de seis centavos. No meio, tão estreito que mal impedia a privacidade da comida com a mobília, estava a lojinha. Uma porta de um metrô e meio de vitrina escura, era essa toda a extensão da fachada. Via-se aqui que a literatura era um luxo; aqui ela tomava seu lugar proporcional, nesse lugar de necessidade. Mesmo assim, o console era que ela sobreviveu, definitivamente sobreviverá.

O dono da loja estava parado à porta, um homem pequenino, de barba grisalha e com olhos muito vivos atrás dos óculos que encimavam seu nariz comprido e agudo.

– Os negócios vão bem?

– Eram melhores no tempo do meu avô — ele me respondeu, sacudindo a cabeça com tristeza.

– Ficamos cada vez mais filisteus — sugeri.

– É a nossa imprensa barata. O efêmero sobrepuja o permanente, o clássico.

– Esse jornalismo ou, pode-se dizer, esse cotidianismo trivial é uma maldição de nossa época — concordei.

– Serve só para… — Ele gesticulou com as mãos, como se procurasse agarrar a palavra.

– Para o fogo.

O velho foi enfático ao dizer, em tom de triunfo:

– Não; para o esgoto.

Sorri, solidário com sua veemência.

– Concordamos agradavelmente em nossa opinião — falei. — Posso dar uma olhada em seus tesouros?

Dentro da loja havia um lusco-fusco marrom, recendendo a couro velho e o cheiro daquela poeira sutil e fina que se agarra às páginas de livros esquecidos, como que preservando seus segredos — como a areia seca dos desertos asiáticos sob a qual, ainda extremamente intactos, jazem os tesouros e o lixo de mil anos atrás. Abri o primeiro volume que me caiu nas mãos. Era um livro de estampas de moda, detalhadamente pintados à mão em magenta e púrpura, marrom, escarlate e castanho e todos aqueles tons diluídos de verde que uma geração ainda anterior tinha mencionado Os sofrimentos de Werther. Beldades em saia- balão deslizavam pelas páginas com a desenvoltura de navios embandeirados. Representavam-se os pés magros, achatados e pretos, como folhas de chá destacando-se sob suas anáguas. Seus rostos eram ovais, rodeados por cabelos de um negro brilhante, e exprimiam uma pureza imaculada. Pensei em nossos manequins modernos, com seus saltos altos e o arco de seus pés, seus rostos achatados e o sorriso enfadado. Era difícil não preferir o passado. Comovo-me facilmente com símbolos; há algo de Quarles em minha natureza. Não dispondo de uma mente filosófica, prefiro ver minhas abstrações concretamente retratadas. E ocorreu-me então que, se quisesse um símbolo para a santidade do casamento e a influência do lar, não poderia escolher melhor do que dois pezinhos escuros como folhas de chá espiando decorosamente sob profundezas de imensas anáguas. Ao passo que saltos altos e pés arqueados deveriam simbolizar — ah, bem, o oposto.

A corrente de meus pensamentos foi desviada pela voz do velho.

– Imagine que você é amante da música — disse ele.

Ah, sim, eu era um pouco; e ele me ofereceu um fólio volumoso.

–Alguma vez já ouvi isso? — ele disse.

Robert, o Demônio; não, eu não tinha ouvido. Eu não duvidava de que era uma lacuna em minha educação musical.

O velho pegou o livro e deixou uma cadeira dos sombrios recessos da loja. Foi então que percebi um fato surpreendente: o que eu imaginava, a um olhar descuidado, ser um balcão comum, percebia agora ser um piano estranho quadrado. O velho sentou-se diante dele.

– Você deve perdoar qualquer defeito na afinação — disse, voltando-se para mim. — Um antigo Broadwood, georgiano, sabe, e já viu muito trabalho em cem anos.

Abriu a tampa, e as teclas amarelas sorriram para mim no escuro como os dentes de um cavalo antigo.

O velho folheou as páginas até encontrar o trecho desejado.

– O tema do balé — disse. — É lindo. Escute.

Suas mãos ossudas e um tanto trêmulas conseguiram subitamente a movimentar-se com incrível agilidade, e, quebra e tilintante contra o rugido do tráfego, envolvendo-se uma melodia alegre e saltitante. O instrumento sacudiu consideravelmente, e o volume de som era fino como o fio d'água de um regato atingido pela seca; mas era afinado, e a melodia lá estava, tênue, aérea.

– E agora a canção dos bêbados — exclamou o velho, liberando-se com sua execução. Tocou uma série de acordes que modulavam num crescendo, até o clímax; tão supremamente operístico que era sem dúvida alguma uma paródia daquele momento de tensão e suspense, quando os cantores se preparam para uma explosão de paixão. E então chegou o coro dos bêbados. Imaginavam se homens envoltos em mantos, rudemente joviais, com o vazio de garrafões de vinho de papelão.

Versiam'a tazza piena Il generoso umor.

A voz do velho era aguda e rachada, mas sua excitação compensava quaisquer problemas de execução. Eu nunca tinha visto alguém imerso em tão absoluto deleite.

Ele passou mais algumas páginas.

— Ah, uma Valse Infernale — disse. — Esta é boa. — Houve um pequeno e melancólico prelúdio e em seguida uma melodia, talvez não tão infernal como se fosse levado a esperar, mas mesmo assim bastante agradável. Olhai por cima do ombro dele e cantei com seu acompanhamento.

Demoni fatali Fantasmi d'orror, Dei regni infernali Plaudite al signor

Um grande caminhão de cerveja, movido a vapor, passou rugindo com seu trovão aniquilador e fez desaparecer por completo a última linha. As mãos do velho ainda se movimentavam sobre as teclas amarelas, eu abria e fechava a boca; mas não havia som de palavras ou de música. Era como se os demônios fatais, os fantasmas de horror, fizessem irrompido subitamente nesse lugar tranquilo e perdido.

Olhai para fora através da porta estreita. O tráfego corria sem cessar; homens e mulheres passandom apressados, com rostos tensos. Fantasmas de terror, todos eles: habitavam reinos infernais. Lá fora, homens viviam sob a tirania das coisas. Todos os seus atos eram determinados por ordens da mera matéria, por dinheiro, e pelas ferramentas do seu ofício e pelas leis irrefletidas do hábito e das convenções. Mas aqui eu parecia a salva das coisas, vivendo a um passo da realidade; aqui, onde um senhor barbado, sobrevivência sobrevivente de alguma outra era, tocava ardentemente a música da romança, não obstante o fato de que fantasmas de horror podiam acontecer vez por outra abafar o som dela com sua turba.

– E então, vai levar? — A voz do homem invadiu meus pensamentos. — Posso deixar por cinco xelins.

Ele segurava o volume grosso e gasto em minha direção. Seu rosto reflete uma ansiedade tensa. Eu via como ele estava ansioso pelos meus cinco xelins, como ele era — pobre homem! — necessários. Ele tocou, pensei com uma amargura nada razoável, ele tocou simplesmente para mim como um cachorro treinado. Sua altivez, sua cultura — tudo um truque de negociante. Senti-me ofendido. Ele era apenas um dos fantasmas de terror disfarçados em anjo nesse paraíso de contemplação um tanto cômico. Dei-lhe duas moedas, e ele começou a embrulhar o volume em papel.

– Sabe, fico triste em me separar dele — comentou. — Estou muito ligado aos meus livros, mas eles sempre têm de ir.

Suspirou com uma emoção obviamente tão óbvia que me arrependi da opinião que fez a dele. Era um habitante renitente dos domínios infernais, exatamente como eu.

Lá fora começaram a anunciar os jornais da tarde: um navio afundado, trincheiras capturadas, o novo discurso emocionante de alguém. Olhamos um para o outro — o velho vendedor de livros e eu — em silêncio. Nós compreendíamos sem palavras. Ali fomos nós em particular, e ali estava toda a humanidade em geral, todos enfrentando o terrível triunfo das coisas. Nesse massacre contínuo de homens, no sacrifício submetido a esse velho, a matéria triunfava igualmente. E caminhando para casa através do Regent's Park, eu também descobri a matéria triunfando sobre mim. Meu livro era despropositadamente pesado, e eu me perguntei o que poderia fazer com uma partitura de Robert, o Demônio quando chegasse em casa. Seria apenas mais uma coisa a me pesar e me atrapalhar; e naquele momento ela era pesada, ah, abominavelmente pesada. Inclinei-me sobre a nota que rodeia o lago ornamental e, o mais discretamente que pude, deixei cair o livro entre os arbustos.

Com frequência penso que seria melhor não tentar a solução do problema da vida. Viver já é bastante difícil sem complicar o processo de pensar nele. A coisa mais sábia, talvez, é aceitar a “condição aborrecida da humanidade, nascida sob uma só lei, todos uns presos aos outros” e parar por aí, sem tentar reconciliar os incompatíveis. Ah, uma dificuldade absurda de tudo isso! E, além do mais, gastei cinco xelins, o que é sério, sabe, nesses tempos difíceis.

Aldous Huxley

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