segunda-feira, agosto 18

Vai uma selfie?

 


Não pare!

A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
Fernando Birri, "Las palabras andantes?" de Eduardo Galeano

Úmido

Úmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.
Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,

— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.
A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,

— sozinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.
Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.
Cecília Meireles

Milton Hatoum agora é imortal – e dai?

O Milton Hatoum, manauara da gema, vai levar para aquela casa de fardões verdes, um pedaço da Amazônia que não se encontra nos guias turísticos. Ele escreve de um jeito que a gente quase sente o cheiro do tucupi e ouve o barulho do barco no porto. É o tipo de literatura que faz a pessoa viajar sem precisar comprar passagem — e sem sofrer com fila no check-in.

Sabe aquele amigo que nunca perde a piada, mesmo no meio de um assunto sério? Pois é, a eleição do Milton Hatoum para a Academia Brasileira de Letras é dessas notícias que dão pano pra manga numa mesa de bar.

“Imortal”, disse o Ratinho, o nosso garçom, pousando a cerveja. “Quer dizer que o homem não morre mais?” É aquele mesmo Milton do Tucunaré, Clube de Campo? Aquele que jogava bola “CUNNÓS”? eu lembro que ele era muito bom de tênis de mesa. Tinha até mesa na casa dele. Ele e o tio jogavam e cortavam como poucos. Depois da bola sempre tinha um bom banho de igarapé nas águas vermelhas do Mindú. Eita banho bom! Aquela água limpa e gelada só Jesus para trazê-la de volta.


A gente explicou, ainda comemorando, que não é bem assim. Imortal, no caso, significa que o nome dele vai ficar para sempre na lista da ABL, junto com Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado. A alma sobrevive nos livros, mas o corpo… bem, continua pagando conta de água, luz e telefone como todo mundo. Agora, o Milton, toda vez que entrar na ABL, nós estaremos entrando com ele e tomando conta da cadeira do Machado.

No meio da prosa, alguém perguntou: “Mas o que se faz lá na Academia? É tipo um clube?”

Mais ou menos. É um clube, sim, mas onde o que se troca não é figurinha de Copa, e sim histórias, ideias e votos para escolher novos imortais. Um lugar onde a fofoca é literária e o café provavelmente vem com citações.

Com livros como Dois Irmãos e Cinzas do Norte, o Milton Hatoum já era imortal para quem lê de verdade. Agora, tem a cadeira oficial, com placa e tudo. E convenhamos: se cadeira fosse critério de imortalidade, bar também faria seus campeões — tem freguês que passa tanto tempo sentado que já devia ter número fixo.

No fim das contas, a eleição dele é mais do que apenas uma boa notícia: é um acontecimento que merece ser celebrado com tacacá e bolinhos de piracuí. A Academia Brasileira de Letras, com sua história centenária e suas cadeiras cobiçadas, ganha agora uma dose generosa de literatura amazônica, recheada de memórias de rios largos, cheiros de mata e vozes que ecoam desde a beira do igarapé até os centros urbanos. O Amazonas, por sua vez, vê-se representado num dos endereços mais tradicionais e simbólicos do país, algo que, por si só, já é motivo de orgulho para qualquer conterrâneo.

Nós, que acompanhamos à distância, como espectadores de uma peça cuidadosamente ensaiada, também ganhamos um motivo para brindar — e não apenas com um gole de café ou um copo de vinho de buriti, mas com a satisfação de saber que a cultura regional encontrou ainda mais espaço no cenário nacional.

Estamos certos de uma coisa: quando o Milton, com seu traje de Imortal — resistente tanto à kriptonita verde quanto ao curare dos velhos contos amazônicos — erguer a voz, poderá reivindicar para as novas gerações, em um gesto concreto: a recuperação do seu querido Grupo Escolar Barão do Rio Branco e do nosso Colégio Estadual do Amazonas, hoje quase caindo, na Avenida 7 de Setembro, a principal Avenida de Manaus. Essas duas casas são muito mais que prédios: são símbolos de memória, de Ensino e aprendizado. Celebrar esse Imortal é também plantar sementes para que surjam outros.

“Então vamos fazer um brinde ao Imortal!”, gritou o Ratinho garçom, já servindo mais uma.

E lá fomos nós, levantando os copos, porque se a eternidade existe, talvez ela comece assim: numa boa história contada entre goles do legítimo guaraná de Maués, buriti, açaí, tacacá e muitas risadas.

O Milton é um pai d´égua!

As páginas da terra

Durante toda a noite dormi um sonho, com sabores de autêntico. Enquanto adormecia mil perguntas me continuavam a agitar. E se não tivessem assassinado Farida, através da mão suja de Antoninho? Se o moço se tivesse realmente arriscado para a salvar? Nunca mais eu saberia o certo. No dia seguinte eu estaria de retorno à minha aldeia. Há quanto tempo eu tinha saído? O que acontecera, entretanto, a minha mãe, grávida de um impossível filho? E Junhito: será que cocoricava ainda pelos prados?

Agora era como se esses fantasmas trabalhassem em minha cabeça para me transmitirem seus segredos, revelações de um outro mundo. Vou relatar o último sonho a ver se me livro do peso de terríveis lembranças. Não quero que tais pensamentos me regressem. Preciso dormir, totalmente dormir, me emigrar deste corpo cheio de esperas e sofrências. Preciso descansar de suspeitas, esfriar meu desejo de vingança. Amanhã apanho o autocarro para regressar a minha aldeia. Não quero lembrar nada, nem Farida, nem Carolinda, nem Quintino, nem ninguém. O que queria mesmo era ir mar adentro, como Assma, empurrado num barquinho sem destino. Ou fazer como minha mãe me ensinou: ser a mais delicada sombra. É isso que desejo: me apagar, perder voz, desexistir. Ainda bem que escrevi, passo por passo, esta minha viagem. Assim escritas estas lembranças ficam presas no papel, bem longe de mim. Este é o último caderno. Depois, arrumo tudo na mala que me deu Surendra. No final, Surendra é o único de quem eu aceito companhia. O indiano mais sua nação sonhada: o oceano sem nenhum fim.

Me falta, pois, trazer o que essa noite viajou em minha cabeça. Me falta soltar o último peso que me impede ser sombra. Ponho o sonho, em sua selvagem desordem: eu estava descendo um vale molhado de tanta de luz, cheio de manhã. Aquela parecia a primeira madrugada do mundo. A luz se espantava de sua própria estreia, experimentando sua grandeza ao iluminar as mais pequenas coisas. As cores, de tanto serem novas, se cambiavam incessantemente. Foi então que vi avançar um enorme grupo de pessoas, pobres, embrulhadas em cascas e fiapos. Eram centenas de centenas. Foram-me enchendo o sono. À frente seguia o feiticeiro da minha aldeia. Envergava uma sarapilheira encardida, cujos farrapos poeiravam pelo chão. O adivinho olhou a terra como se dele dependesse o destino do universo. Pesava nos seus olhos a gravíssima decisão de criar um outro dia.

— É aqui mesmo!, disse.

Escolhia o caminho parecendo procurar o centro de uma invisível paisagem. Atrás dele se arrastava a multidão, rastejando como se suas vidas se alimentassem das pegadas de seu guia. O feiticeiro subiu a um morro de muchém e contemplou a planície. Ajeitou o chapéu feito de penas e enroscou melhor a sarapilheira como se aquele calor lhe esfriasse os ossos. Então, levantando o seu cajado sentenciou:

— Que morram as estradas, se apaguem os caminhos e desabem as pontes!

Depois, começou o discurso, desfiando palavras lentas, rasgando a voz de encontro ao vento:

— Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é a vossa única alma.

Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos. Será mil vezes pior que o passado pois não vereis o rosto dos novos donos e esses patrões se servirão de vossos irmãos para vos dar castigo. Ao invés de combaterem os inimigos, os melhores guerreiros afiarão as lanças nos ventres das suas próprias mulheres. E aqueles que vos deveriam comandar estarão entretidos a regatear migalhas no banquete da vossa própria destruição. E até os miseráveis serão donos do vosso medo pois vivereis no reino da brutalidade. Terão que esperar que os assassinos sejam mortos por suas próprias mãos pois em todos haverá medo da justiça. A terra se revolverá e os enterrados assomarão à superfície para virem buscar as orelhas que lhes foram decepadas. Outros procurarão seus narizes no vómito das hienas e escavarão nas lixeiras para resgatarem seus antigos órgãos. E há-de vir um vento que arrastará os astros pelos céus e a noite se tornará pequena para tantas luzes explodindo sobre as vossas cabeças. As areias se voltearão em remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão extenuados e ocorrerão desastres que não têm nome, as machambas serão convertidas em cemitérios e das plantas, secas e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. As mulheres mastigarão areia e serão tantas e tão esfaimadas que um buraco imenso tornará a terra oca e desventrada. No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa voz nos dará a força de um novo princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu.

O feiticeiro se calou, extenuado. A sarapilheira estava ensopada de suor. Voltando a levantar o cajado sobre a cabeça ele ainda voltou a falar. Mas se pronunciou em palavras de nenhuma língua. As gentes seguiam o restante discurso à cata de alguma compreensão. Então, o nganga se calou, ergueu uma cabaça e verteu um líquido sobre os ombros. Depois, desceu o morro e fez pingar a cabaça sobre cada um dos presentes. Então se deu o mais extraordinário dos fenómenos e todos os presentes tombaram no chão, agitando-se em espasmos e berros, e se seguiu uma orgia de convulsões, babas e espumas e, um por um, todos foram perdendo as humanas dimensões. Penugens e escamas, garras e bicos, caudas e cristas se espalharam pelos corpos e todo aquele plenário de gente se transfigurou em bicharada. A fala foi a última coisa a ser convertida e, durante um tempo, se escutaram espantos e gritos humanos proferidos pelas mais irracionais bestas. Aos poucos, porém, também o verbo se perdeu e a bicharada, em desordem, se espalhou pelos matos.

Tombado de joelhos perante tais visões, eu olhei as próprias mãos para me confirmar humano. Retirei as vestes e apalpei minhas velhas formas. Com cautela, tossiquei para me certificar da voz. A medo fui emitindo palavras simples, depois frases sem nexo. Não havia dúvida: eu me mantinha completamente gente, habitando o corpo que sempre fora o meu.

Então, por entre as brumas do sonhado, vi um galo se aproximando. Era Junhito, quase eu ia jurar. Porque no inverso dos outros, ele se humanizava, lhe caíam penas, cristas e esporões. Me olhou ainda semibicho. Seus olhos me pediam qualquer coisa, nem eu adivinhava. Que ajuda lhe podia dar, eu, simples sonhador? O que sucedeu, seguidamente, foi que surgiram o colono Romão Pinto junto com o administrador Estêvão, Shetani, Assane, Antoninho e milicianos.

Vinham armados e se dirigiram para Junhito, com ganas de lhe depenar o pescoço. Cercaram o manito, dizendo:
— Teu pai tinha razão: sempre te viemos buscar.

Então, Junhito me chamou. Eu me olhei, sem confiança. Mas o que em mim vi foi de dar surpresa, mesmo em sonho: porque em meus braços se exibiam lenços e enfeites. Minhas mãos seguravam uma zagaia. Me certifiquei: eu era um naparama! Ao me verem, em minha nova figura, aqueles que maltratavam o meu irmão se extinguiram num fechar de olhos. Mas Junhito ainda lutava para se desbichar, desembaraçar-se da condenação. Me veio à ideia que ele precisava de um pouco de infância e cantei os embalos de nossa mãe, sua última ponte com a família. Enquanto eu cantava ele se foi vertendo todo gente, completamente Junhito. A seu lado, como se chamada por meu canto, minha mãe apareceu segurando uma criança em seu colo. Lhes chamei mas eles nem me pareciam ouvir. Junhito colocou a mão aberta sobre o peito e depois fechou as duas mãos em concha. Me agradecia. Acenei uma despedida e ele, segurando minha mãe pelo braço, desapareceu nas infinitas folhagens.

Eu sentia que a noite chegava ao fim. Qualquer coisa me dizia que me devia apressar antes que aquele sonho se extinguisse. Porque me surgiam agora alucinadas visões de uma estrada por onde eu seguia. Mas aquela era uma muito estranha picada: não estava imóvel, esperando a viagem dos homens. Ela se deslocava, seguindo de paisagem em paisagem. A estrada me descaminhou. O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego? Fui sendo levado sem conta nem tempo. Até que meu coração se apertou em sombrio sobressalto. Me surgiu um machimbombo queimado. Estava derreado numa berma, a dianteira espalmada de encontro a uma árvore. De repente, a cabeça me estala em surdo baque. Parecia que o mundo inteiro rebentava, fios de sangue se desalinhavam num fundo de luz muitíssimo branca. Vacilo, vencido por súbito desfalecimento. Me apetece deitar, me anichar na terra morna. Deixo cair ali a mala onde trago os cadernos. Uma voz interior me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá força. Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra.
Mia Couto, "Terra Sonâmbula"

sábado, agosto 16

Dias de descanso

 


Dias e noites de frio

Em Jogo da Amarelinha, Cortázar cria um personagem que, na hora da sesta, passa o tempo desentortando pregos. Fui quase ele, num desses intervalos da rotina, quando resolvi remontar pregadores de roupa que haviam se desfeito. Feri os dedos encaixando as duas partes na mola, mas senti uma paz imensa naquela tarefa tão única e particular. O mesmo sol que banhava o personagem me tocava os ombros e, como ele, parece que dei uma pausa no tempo, rodeada de silêncio. Cortázar sempre me faz bem.


Ando com saudades das cigarras, das sandálias, de deixar o ventilador ligado o dia inteiro. Há muito não tínhamos um inverno tão rigoroso e ele parece encolher tudo, dos músculos às vontades. Um amigo diz que “o frio civiliza”, mas o preço a pagar é alto para quem tem alma tropical. Acordo e durmo tensa, sofro com a água fria da pia, reduzo as idas à rua, fugindo do vento gelado. Outro efeito colateral: à noite, sob a montanha de cobertas, penso nos que estão lá fora sem qualquer proteção a não ser fogueiras improvisadas, álcool goela abaixo, folhas de jornal, papelões. E fico mal, a consciência doendo mais que cãibra.

Para relaxar, busco na memória lembranças amenas. Ainda menina, a família de uma coleguinha nos levou a passar uns dias em Ribeirão Pires, nas férias de julho. Andando pela cidade, usávamos short e me lembro até hoje do frio. Bom mesmo era quando brincávamos dentro de casa. A tia mais nova permitia que usássemos suas roupas, bijuterias e sapatos de salto, e nos tornávamos princesas de um reino só nosso, onde a friagem não nos atingia.

Também me recordo de noites da adolescência, onde nos divertíamos com o hálito branco que escapava de nossas bocas. Como os preceitos ecológicos eram inexistentes, desfilávamos com nossos gorros de pelo animal e, nas colunas sociais, as mulheres abastadas exibiam estolas de pele. As feitas com o sacrifício de raposas costumavam incluir o corpo inteiro do pobre animal, da cauda à cabeça, de um gosto desde então duvidoso.

Agosto me fez tirar velhos agasalhos do baú e agilizar o estoque de meias. Também estreei o edredom de pelo de carneiro que garante o sono. Às refeições, sempre que posso, substituo o suco de laranja pelo vinho. Mas confesso que conto os dias para a chegada do verão. Antes de ser civilizada, sou praiana de nascença e preciso do calor do sol para ser feliz.

Lembrança alada

Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.
Mia Couto

Que frescor de prosa!

Em algum momento peguei na estante um livro de Pablo Neruda e o depositei sobre a mesa de centro na sala de jantar. Agora, quando cozinho à noite ou nos fins de semana, à espera de que uma comida fique pronta no forno ou da água ferver para a pasta, sento alguns minutos na sala de jantar e abro o livro. É um presente que me dou.

Vou logo dizendo, a poesia de Neruda não é das minhas favoritas. Sobretudo não gosto dos famosos poemas de amor. Acho muito derramados, emplumados, excessivos. E, eventualmente, insinceros. Tenho a sensação incômoda de ler poemas não endereçados à amada, mas ao amor, Cupido em pessoa, embora disfarçado de mulher. E não me sinto obrigada a gostar deles só porque todo mundo gosta e por ter o autor ganho o Nobel.

Mas o livro em questão não é de poesia, é de prosa. E que prosa colorida, que frescor de prosa tem Neruda!

“Pelas praias do mundo”, edição da Bertrand Brasil, reúne textos escritos em épocas diferentes, com diferentes finalidades - alguns para jornais e revistas, outros para conferências, encontros políticos ou apenas registros de memória. E o melhor, textos escritos em diversos lugares do mundo.

Neruda começou a viajar muito jovem, com pouco mais de vinte anos, diplomata enviado para o Oriente. Tinha pouco a fazer, pouco a receber no fim do mês, tarefa doméstica nenhuma, e uma solidão esmagadora e proveitosa para o ofício da escrita.

Com que riqueza de olhar e pensamento nos leva consigo para a Tailândia, a Indochina, o Ceilão, o Iucatán, a California ou seu querido, seu sempre amado Chile.

“Para escrever me fizeram falta pelo mundo as goteiras. As goteiras foram o piano da minha infância(...) o grande piano das goteiras durava o inverno todo. (...)Minha mãe espalhava então pela casa suas panelas, bacias, jarros para leite( ...) Cada um deles produzia uma nota distinta(....) e suas notas acompanharam-me onde quer que eu tenha vivido, caindo sobre meu coração e sobre a minha poesia.”

A verdade é que nada lhe fez falta para escrever.

De que forma ensolarada fala de Djibuti, mínimo país a beira mar entre a Eritreia – país onde nasci- e a Etiópia! “Os primeiros salmões budistas passam indiferentes pelas últimas trutas sarracenas(...)Djibuti me pertence. Conquistei-a, passeando sob o seu sol nas horas temíveis: o meio-dia, a sesta, cujas patadas de fogo partiram a vida de Arthur Rimbaud, nessa hora em que os camelos diminuem suas corcovas e afastam seus pequenos olhos do lado onde está o deserto”.

Como um pintor descreve as cores da Birmânia: "o colorido apenas designa os trajes. O homem se envolve em saias multicores e leva na cabeça um lenço rosado. Veste uma pequena jaqueta escura, de estilo chinês, sem lapelas, ou seja, franca: da cintura para cima ele é um toureiro mongol. Mas sua saia de lunghi é reluzente e extraordinária ao extremo, é carmesim ou cor de caneta ou azul temperado com cinabre. Nas ruas de Mandalay, nas avenidas, nos bazares de Rangum essas tintas deslumbrantes estão em perpétua ebulição."

Difícil lhe é “deixar Siam, perder para sempre a etérea, murmurante noite de Bancoc, o sonho de seus mil canais cobertos de embarcações, seus lugares altos, cada um com sua gota de mel, sua ruína khmer em escala monumental de grandeza, seu corpo de bailarina em estado de graça.”

E porque é sempre difícil deixar a beleza, tenho deixado queimar comidas no forno e evaporar na fervura a água da pasta.

O destino do capitão Sharkey

Sharkey, o temível Sharkey, que durante dois anos assolara o litoral do Caromandel, voltou a sua existência de pirataria feroz e andava agora ao largo da América Espanhola com um navio gótico, o “Feliz Liberdade”. Pescadores ou comerciantes todos fugiram ao avistar o velame remendado do pirata no mar dos trópicos.

Alguns só foram arriscados pelo oceano, costeando o litoral, os buscadores a buscar refúgio no porto mais próximo e os mais corajosos davam graças a Deus quando punham seu carregamento e seus passageiros sob a proteção de uma cidadela. E não era sem razão esse terror porque de todas as ilhas chegavam quase diariamente notícias de naus incendiadas, corpos exangues, tirados às praias e clarões de mau agouro no horizonte, fingindo inequívocos de que Sharkey recomeçara suas fachadas.

Aquelas águas tranquilas, aquelas ilhas de vegetação maravilhosas eram tradicionais o refúgio dos corsários. O princípio desses saqueadores do mar eram fidalgos aventureiros e bravos, que combatiam pelo patriotismo e só pilhavam os navios de Espanha. Mas essas figuras heroicas desapareceram ao fim de um século e foram remanescentes pelos cucaneiros que eram simplesmente piratas em busca das vítimas mais ricas sem indagar de sua nacionalidade.

No início do século XVIII, o pirata era um inimigo de todos, um ladrão sem pátria nem fé, que vencia pela ferocidade e só tinha um intuito: o saque para enriquecer depressa.

E entre os mais sanguinários daquela época a fama de Sharkey avultava numa auréola de sangue.

Num dos primeiros dias de maio do ano de 1720, o “Feliz Liberdade” esteve a cinco léguas a oeste da Passagem dos Ventos esperando uma presa fácil, uma rica nau de comércios que os bons ventos desviam entregar-lhe sem resistência. Houve, já três dias que ali estava, pequeno ponto negro sinistro na vastidão do oceano. Sharkey irritou-se como tão longa espera e jurou a Ned Gallway, o piloto, que pagaria bem caro essa demora à tripulação do primeiro navio que capturou.

O aposento do Sharkey a bordo do “Feliz Liberdade” era de grande dimensão e decorado com objetos de grande luxo mas com desatino que formava um singular contraste de luxo e desordem. Quadros… tapetes… tudo com manchas de vinho e pólvora.

O capitão e Ned ali estavam jogando cartas. Barbado até os olhos, com uma cabeleira emaranhada e músculos formidáveis, Ned tinha bem o visual do que era um desclassificado de Nova Orleans, brutal, vestido com cores vivas que realçavam suas atitudes de hércules sem lei nem escrúpulos. John Sharkey era bem diferente. Seu rosto magro e zelosamente barbeado tinha uma palidez de cadáver; era quase calvo; apenas umas vagas mechas de cabelo cor de estopa coroavam sua frente alta e estreitas. Os olhos azuis sem brilho apertavam-se junto ao nariz seco; suas mãos ossudas e longas moviam-se constantemente como antenas de um inseto. Seu vestuário era cinzento e muito discreto.

De súbito a porta do aposento se abriu sob um impulso violento e dois homens de aspecto grosseiro entraram rapidamente. Eram Israel Martin, o chefe da tripulação, e Red Folley, o mestre canhoneiro. Sharkey ergue-se com uma pistola em cada mão e um brilho cruel nos olhos.

— O que significa isso, patifes? — exclamou ele. — Positivamente, se eu não abato um de vez em quando, como um cão, vocês acabam por esquecer quem sou. Então entre-se aqui como em uma taverna?

—Capitão — disse Red com ar sombrio. —São essas atitudes que culminaram na situação a que chegamos. E não sei por que temos de arriscar nossa pele defendendo um capitão como o senhor.

Sharkey depôs as pistolas sobre a mesa e, encostando-se na cadeira, disse com voz calma.

— Mas eu estou assim tão necessitado de ser defendido?

— A tribulação está reunida em conselho na proa… Seus interesses não são bons e eles podem aparecer aqui de um momento para outro. Nós viemos preveni-lo e somos recebidos como cães…

O capitão extravasou-se e apanhou a espada, mas não teve tempo para pronunciar uma palavra. A porta se abriu de novo e um marinheiro nasceu bradando:

— Um navio!…

A fisionomia de Sharkey ilumina-se. De há muitos dias já ele notava a satisfação e a má vontade dos marinheiros; sabia que de fato seus comandados tinham propostas de reclamação; mas sabia também que diante de uma vítima a perseguir, trucidar e saquear, tudo desaparecia.

De facto os homens corriam os seus postos e já não foram planejados senão no morticínio e na orgia que se desviam.

Sharkey chegou à convenção e julgou por si a situação. Um grande navio com todas as velas soltas visita lentamente e navega mesmo junto do pirata. Semelhante audácia chegou a inquietar os marinheiros, que receberam a armadilha de uma nau de guerra; mas não. O aspecto do imprudente era pacífico. Sharkey tentou uma manobra. Em poucos minutos o navio desconhecido foi abordado, atravancado e como uma horda de demônios, os piratas saltaram para ele. Meia dúzia de tripulantes em serviço no convés morreram em seus postos. Sharkey rebentou a cabeça do subcomandante, que estava na torre do comando e antes que os demais saíssem de seus leitos ou navio estivessem em seu poder.

Verificou-se então que era o “Porto Bello” que vinha de Londres para a Jamaica com revestimento de tecidos e graus de ferro. O carregamento não tinha importância para os piratas, mas o cofre de bordo trazia mil guinéus e havia entre os passageiros ricos negociantes da Jamaica que traziam as bolsas bem garantidas. Feito o saque amarraram os prisioneiros no convés e, um a um, sob o olhar frio de Sharkey os atiraram ao mar… Por fim restou só, de pé, o capitão Hardy, comandante do “Porto Bello”. Vendo que chegara sua vez, Hardy projeta um braço e disse:

— Antes de morrer quero confiar-lhe um segredo.

— Se é com a esperança de nos enganar perde seu tempo — chasqueou o chefe dos piratas.

— Não tenho essa esperança — retrucou o capitão com um sorriso singular. — Submeto-me à fortuna do mar, mas como vi que revistaram todo o navio sem descobrir o melhor tesouro que ele traz…

— Um tesouro! — bradou Sharkey — aproximando-se. — Se não me revele seu esconderijo…

— Para isso comecei a falar — disse Hardy detendo-o com gesto altivo. Não se trata de dinheiro mas de um tesouro bem mais precioso a meu ver: — uma mulher moça e formosa. Chama-se Ignez Ramirez, tem 18 anos e é do mais nobre sangue espanhol. Vinha a bordo com seu pai, porém, tendo disposto de seu coração sem consentimento de D. Ramirez este tentou-me que a prendesse em uma cabine secreta por traz de meu aposento.

Disse isto é sem esperar que o impelissem, desafiando Sharkey com o olhar, saltou para as ondas.

***

Seu corpo não tinha ainda proposto o fundo de areias movidas e já os piratas arrombavam a machado a porta da cabine indicada, arrancando dali e trazendo arrastada uma mulher muito jovem ainda, de singular beleza e que urrava de pavor.

Shakey espalmou a mão suja de sangue sobre seu rosto e declarou com uma risada sinistra.

— É assim que se marcam as ovelhas entre nós. E voltando-se para suas tentativas controladas. — Levem-na para meu aposento com o devido respeito.

Depois de incendiar o navio aprisionado, os piratas retornaram para sua nau e festejaram a vitória bebendo desregradamente. Dois homens fizeram companhia ao capitão em seu aposento: eram o quartel-mestre e Stable, o cirurgião de bordo, um médico que foi convocado a partir de Charleston, de um dia para outro, por ter apressado a morte de um parente de quem era o único herdeiro. Nessa noite Stable tinha, como os outros, bebido em demasia e foi o primeiro a lembrar a Sharkey a linda prisioneira. O capitão deu ordem ao criado negro que a trouxesse para ali.

Ignez Ramirez veio com passo firme e tranquilo. Pelas palavras de seus guardas ela conhecia agora toda a situação; sabia que seu pai fora massacrado e que sua situação naquele local era mais horrenda do que a morte. Mas com o conhecimento da realidade uma grande calma se fazia em sua alma: mais ainda — houve em seus olhos um brilho cruel como se ela entrevisse desde já uma desforra implacável contra seus algozes.

Entrou no aposento do capitão com ar sereno, convidou Sharkey e sem hesitar foi se sentar sobre seus joelhos.

— Perdão… Perdão — bradou o médico cambaleando. — O artigo sexto do nosso contrato diz que toda vítima de valor pertence a todos.
— Sim — confirmado o quartel-mestre. — O artigo sexto assim o diz.

Mas o capitão lisonjeado com a escolha da prisioneira que lhe enlaçava o pescoço e a acariciava a cabeça sacou do cinto uma pistola, observando:

— Foi a mim que ela preferiu, está se mostrando bem digna de ser uma esposa de um pirata. Meto uma bala no primeiro que pretender arrancá-la de meus braços.

Entretanto, como Ignez continuou a passar as mãos carinhosas e repetidamente pela cabeça, as faces e o pescoço de Shakey o médico deteve-se com os olhos dilatados pela atenção e logo encontrou-se com um grito de horror indizível.

— Suas mãos… suas mãos… — balbuciou ele final com voz entrecortada.

Sharkey olhou para a mão que Ignez passava em seus lábios. Era lívida, com os dedos unidos por uma espécie de pelica amarela e luzente, coberta com um esbranquiçado.

Erguendo-se num salto repeliu a espanhola. Ela, com um grito de triunfo, precipitou-se para o médico que fugiu e se refugiou embaixo da mesa, com urros hediondos.

Foi preciso metê-la num círculo de lançamento para conseguir que ela se recolhesse a uma cabine resistente quando a fechasse.

Então o médico explicou, com os dentes tilintando de medo:

– Uma lepra. O capitão Hardy vingou-se como um “Pele Vermelha”. Deixou-nos essa desgraçada para nos transmitir a lepra!… Ainda bem que ela não me tocou…

— Nem a mim — bradou o quartel-mestre… Mas o capitão…

— Diga-me com franqueza — murmurou Sharkey mais pálido do que nunca e esfregando furiosamente as faces com uma estopa. — julgo que terei esperança de me salvar?…

O deslocamento fez um gesto negativo. — Mentir em caso de tal seria uma infâmia. Quando as escamas da lepra pousam sobre um homem nada mais pode purificar seu corpo.

O capitão deixou-se cair sobre uma cadeira, sem uma palavra, sem um grito.

Só apresentou a cabeça quando viu um grupo de marinheiros cercá-lo com ar resoluto.

— O que você quer? — bradou ele pondo-se de pé com uma pistola em cada mão. — Galloway, Folley Martin! Venham me ajudar a varrer esse canal do meu caminho. Mas os oficiais mantiveram-se à distância, imóveis, silenciosos.

— É inútil resistir, capitão. — Nós não podemos conservá-lo a bordo. É coisa resolvida.

Sharkey disparou uma pistola, um marinheiro caiu; mas a segunda pistola não chegou a ser disparada. Agarrado por dez mãos robustas, o mísero foi atirado no fundo de uma bota.

A mulher ria frenéticamente, o capitão de pé com as mãos amarradas desafia-os com o olhar.

Fez-se uma manobra das velas e o “Feliz Liberdade” demorou-se deixando o pequeno bote abandonado no mar imenso.
Arthur Conan Doyle

sexta-feira, agosto 15

Guarda-chuva protetor

 


As caridades odiosas

Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura.

Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.

– Um doce, moça, compre um doce para mim.


Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: um doce para o menino.

De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você.

Antes de terminar, o menino disse apontando depressa com o dedo: aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

– Que outro doce você quer? perguntei ao menino escuro.

Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha bondade.

– Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

– Afinal, uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.

Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas, como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de. E para isso fora necessário um menino magro e escuro. E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.

E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis. Em vez de tomar um táxi, tomei um ônibus. Sentei-me.

– Os embrulhos estão incomodando? Era uma mulher com uma criança no colo e, aos pés, vários embrulhos de jornal. Ah não, disse-lhes eu. “Dá-dádá”, disse a menina no colo estendendo a mão e agarrando a manga de meu vestido. “Ela gostou da senhora”, disse a mulher rindo. Eu também sorri.

– Estou desde manhã na rua, informou a mulher. Fui procurar umas amizades que não estavam em casa. Uma tinha ido almoçar fora, a outra foi com a família para fora.

– E a menina?

– É menino, corrigiu ela, está com roupa dada de menina mas é menino. O menino comeu por aí mesmo. Eu é que não almocei até agora.

– É seu neto?

– Filho, é filho, tenho mais três. Olhe só como ele está gostando da senhora.
Brinca com a moça, meu filho! Imagine a senhora que moramos numa passagem de corredor e pagamos uma fortuna por mês. O aluguel passado não pagamos ainda. E este mês está vencendo. Ele quer despejar. Mas se Deus quiser, ainda arranjarei os dois mil cruzeiros que faltam. Já tenho o resto.

Mas ele não quer aceitar. Ele pensa que se receber uma parte eu fico descansada dizendo: alguma coisa já paguei e não penso em pagar o resto.

Como a mulher velha estava ciente dos caminhos da desconfiança. Sabia de tudo, só que tinha de agir como se não soubesse – raciocínio de grande banqueiro. Raciocinava como raciocinaria um senhorio desconfiado, e não se irritava.

Mas de repente fiquei fria: tinha entendido. A mulher continuava a falar. Então tirei da bolsa os dois mil cruzeiros e com horror de mim passei-os à mulher. Esta não hesitou um segundo, pegou-os, meteu-os num bolso invisível entre o que me pareceram inúmeras saias, quase derrubando na sua rapidez o menino-menina.

– Deus nosso Senhor lhe favoreça, disse de repente com o automatismo de uma mendiga.

Vermelha, continuei sentada de braços cruzados. A mulher também continuava ao lado.

Só que não nos falávamos mais. Ela era mais digna do que eu havia pensado: conseguido o dinheiro, nada mais quis me contar. E nem eu pude mais fazer festas ao menino vestido de menina. Pois qualquer agrado seria agora de meu direito: eu o havia pago de antemão.

Um laço de mal-estar estabelecera-se agora entre nós duas, entre a mulher e eu, quero dizer.

– Deixe a moça em paz, Zezinho, disse a mulher.

Evitávamos encostar os cotovelos. Nada mais havia a dizer, e a viagem era longa.

Perturbada, olhei-a de través: velha e suja, como se dizem das coisas. E a mulher sabia que eu a olhara.

Então uma ponta de raiva nasceu entre nós duas. Só o pequeno ser híbrido, radiante, enchia a tarde com o seu suave martelar: “dá dá dá.”
Cecília Meireles, "A descoberta do mundo"

Tempo de chuva

Há longo tempo ouço cantar a chuva,
por muitos dias e por muitas noite:
qual se pairasse a murmurar sonhando
envolta em som eternamente igual.

Igual me soava outrora em longes terras
dos chinos a música deslizante:
como um cantar de grilo, intenso e fino,
mas tão prenhe de encanto a cada instante.

Murmúrio de chuva, cantar de chinos,
som de cascata, marulho de mar
- que força é esta com que me atrai sempre
vossa magia pelo mundo afora?

Tendes por alma o som imperecível
que não conhece tempo nem mudança,
cuja pátria evadimos no passado
e o coração nos queima na lembrança.
Hermann Hesse

A máscara da Morte Rubra

Por muito tempo a “Morte Rubra” devastara o país. Jamais pestilência alguma fora tão mortífera ou tão terrível. O sangue era seu avatar e seu sinal — a vermelhidão e o horror do sangue. Surgia com dores agudas, súbitas vertigens; depois, vinha profusa sangueira pelos poros e a decomposição. As manchas vermelhas no corpo, em particular no rosto da vítima, estigmatizavam-na, isolando-a da compaixão e da solidariedade de seus semelhantes. A irrupção, o progresso e o desenlace da moléstia eram coisa de apenas meia hora.


Mas o príncipe Próspero sabia-se feliz, intrépido e sagaz. Quando seus domínios começaram a despovoar-se, chamou à sua presença um milheiro de amigos sadios e frívolos, escolhidos entre os fidalgos e damas da corte, e com eles se encerrou numa de suas abadias fortificadas. Era um edifício vasto e magnífico, criação do gosto excêntrico, posto que majestoso, do próprio príncipe. Forte e alta muralha, com portões de ferro, cercava-o por todos os lados. Uma vez lá dentro, os cortesãos, com auxílio de forjas e pesados martelos, rebitaram os ferrolhos, a fim de cortar todos os meios de ingresso ao desespero dos de fora, e de escape, ao frenesi dos de dentro. A abadia estava amplamente abastecida. Com tais precauções, podiam os cortesãos desafiar o contágio. O mundo externo que se arranjasse. Por enquanto, era loucura pensar nele ou afligir-se por sua causa. O príncipe tomara todas as providências para garantir o divertimento dos hóspedes. Contratara bufões, improvisadores, bailarinos, músicos. Beleza, vinho e segurança estavam dentro da abadia. Além de seus muros, campeava a “Morte Rubra”.
Ao fim do quinto ou sexto mês de reclusão, quando mais furiosamente lavrava a pestilência lá fora, o príncipe Próspero decidiu entreter seus amigos com um baile de máscaras de inédita magnificência.

Que cena voluptuosa, essa mascarada! Mas me permitam, primeiramente, falar das salas em que se realizou. Era uma série imperial de sete salões. Na maioria dos palácios, tais séries formam longas perspectivas em linha reta, as portas abrindo-se de par em par, possibilitando a visão de todo o conjunto. Aqui, o caso era diverso, como se devia esperar do gosto bizarro do duque. Os apartamentos estavam dispostos de forma tão irregular que a vista abarcava pouco mais de um por vez. A cada vinte ou trinta metros, havia um cotovelo brusco, proporcionando novas perspectivas. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica abria-se para o corredor fechado que acompanhava as sinuosidades do conjunto. Essas janelas estavam providas de vitrais cuja cor variava de acordo com o tom predominante da decoração da sala para a qual davam. A sala da extremidade oriental, por exemplo, fora decorada em azul, e intensamente azuis eram suas janelas. A segunda sala tinha ornamento e tapeçarias purpúreas; purpúreas eram as vidraças. A terceira fora pintada de verde, sendo também verdes as armações das janelas. A quarta havia sido decorada e iluminada de alaranjado; a quinta, de branco; a sexta, de violeta. O sétimo aposento estava completamente revestido de veludo preto, que, pendendo do teto e ao longo das paredes, caía em dobras pesadas sobre um tapete de mesmo estofo e cor. Nesse aposento, entretanto, a cor das janelas não correspondia à das decorações. Suas vidraças eram vermelhas, de uma escura tonalidade sanguínea. Cumpre notar que em nenhum dos aposentos havia lâmpada ou candelabro pendendo do teto ricamente ornamentado a ouro. Luz alguma emanava de lâmpada ou candelabro em qualquer das salas. Contudo, nos corredores que as acompanhavam, em frente de cada janela, havia um pesado trípode a sustentar um braseiro cuja luz, filtrando-se através dos vitrais, iluminava o aposento, ocasionando uma infinidade de vistosas e fantásticas aparências. Na sala negra, porém, o clarão, infletindo sobre as negras cortinas através dos vitrais sanguíneos, produzia um efeito extremamente lívido e dava aparência tão estranha à fisionomia dos que ali entrassem que poucos tinham coragem de atravessar-lhe o umbral.


Era nesse mesmo aposento que havia, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo ia e vinha num tique-taque lento, pesado, monótono. Quando o ponteiro dos minutos completava a volta do mostrador e a hora estava para soar, saía dos brônzeos pulmões do relógio um som limpo, alto, agudo, extremamente musical, mas de ênfase e timbre tão peculiares que, a cada intervalo de hora, os músicos da orquestra viam-se constrangidos a interromper momentaneamente a execução para ouvi-lo. Nesses momentos, era forçoso que os dançarinos parassem de dançar, e um breve desconcerto se apoderava da alegre companhia. Enquanto vibrava o carrilhão do relógio, os mais afoitos empalideciam, e os mais idosos e sensatos passavam a mão pela fronte, como em sonho ou meditação confusa. Tão logo se esvaíam os ecos, um riso ligeiro percorria a assembleia. Os músicos se entreolhavam, sorrindo da própria nervosidade e loucura, fazendo juras sussurradas, uns aos outros, de que o próximo carrilhonar do relógio não mais produziria neles tal comoção. Todavia, sessenta minutos mais tarde (que abrangem três mil e seiscentos segundos do tempo que voa), quando vinha outro carrilhonar do relógio, de novo se dava o mesmo desconcerto, o mesmo tremor, a mesma meditação de antes.

A despeito de tudo isso, a folia ia alegre e magnífica. Os gostos do duque eram originais. Tinha ele olho esperto para cores e efeitos. Desprezava as maneiras da moda em vigor. Seus projetos eram audazes e vivos; suas concepções esplendiam de um lustro bárbaro. Muitos acreditariam tratar-se de um louco. Seus adeptos, porém, sabiam que não. Era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para assegurar-se de seu juízo perfeito.

Em grande parte, ele comandara pessoalmente a caprichosa decoração das salas para a grande fête; sob sua orientação, haviam sido escolhidas as fantasias. Sem dúvida, elas eram grotescas. Havia muito brilho, muita pompa, muita coisa fantástica, muito daquilo que, desde então, pode-se ver em Hernani. Havia figuras arabescas, com membros e adornos desproporcionados. Havia fantasias delirantes, invenções de louco. Havia muito de belo, de atrevido, de bizarro, algo de terrível, capaz em não pouca medida de provocar aversão. Para lá e para cá, nas sete salas, movimentava-se uma multidão de sonhos. E esses sonhos andavam de um canto a outro, impregnando-se do colorido das salas, fazendo a música extravagante da orquestra soar como o eco de seus passos. Mas logo cantava o relógio de ébano na sala aveludada; por um momento, tudo se fazia imobilidade e silêncio, perturbado apenas por aquela voz. Os sonhos paravam, retesados. Porém, quando os ecos do carrilhão se esvaíam — tinham durado apenas um instante —, um frouxo de riso os acompanhava. E, mais uma vez, a música era reiniciada, os sonhos tornavam a viver e a circular mais alegremente que nunca, banhados pelas cores que a luz dos trípodes, atravessando os vitrais, projetava sobre eles. Entretanto, à última das sete salas, ninguém se aventurava, porque, avançando a noite, a luz filtrada pelas rubras vidraças fazia-se mais sanguínea; e a negrura dos panejamentos causava medo. Aqueles cujos pés pisassem o tapete veludoso ouviriam o som abafado do relógio, e o ouviriam mais solenemente enfático que os convivas dos demais salões.

Esses outros salões estavam cheios de gente; neles, pulsava febril o coração da vida. E a folia continuou, rodopiante, até que o relógio começou a bater meia-noite. A música parou, como já descrevi; acalmou-se o rodopio dos dançarinos; e, como antes, uma constrangida imobilidade tomou conta de todas as coisas. Doze foram as badaladas; por isso, os que meditavam entre os foliões tiveram tempo de meditar mais longa e profundamente. E antes que se esvanecesse o eco da última badalada, muitos dos convivas puderam perceber a presença de um novo mascarado, que, até então, não atraíra as atenções. Entre murmúrios, propagou-se a notícia da nova presença; elevou-se da companhia um zum-zum, um rumor de desaprovação e surpresa, a princípio; de terror, de horror e de náusea, depois.

Numa assembleia de fantasmas, como a que descrevi, era de supor que tal agitação não seria causada por aparição vulgar. Na realidade, a licença carnavalesca da noite fora praticamente ilimitada, mas o novo mascarado excedia em extravagância ao próprio Herodes; ultrapassava, inclusive, os indecisos limites de decoro impostos pelo príncipe. Há fibras no coração dos mais levianos que não podem ser tocadas impunemente. Mesmo para os pervertidos, para quem vida e morte são brinquedos igualmente frívolos, há assuntos sobre os quais não se admitem brincadeiras. Todos os presentes pareciam se dar conta de que, nos trajes e nas atitudes do estranho, nada havia de espirituoso ou de conveniente.

Alto e lívido, vestia uma mortalha que o cobria da cabeça aos pés. A máscara que lhe escondia as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem mesmo a um exame atento se perceberia o engano. E, no entanto, tudo isso seria, se não aprovado, ao menos tolerado pelos presentes, não fora a audácia do mascarado em disfarçar-se de Morte Rubra. Suas vestes estavam salpicadas de sangue; sua ampla fronte, assim como toda a face, fora borrifada com horrendas manchas escarlates.

Quando os olhos do príncipe Próspero caíram sobre aquela figura espectral (que, para melhor representar seu papel, caminhava entre os dançarinos com passos lentos e solenes), viram-no ser tomado de convulsões e arrepios de terror ou asco, no primeiro instante; logo depois, porém, seu rosto congestionou-se de raiva.

— Quem se atreve — perguntou roucamente aos cortesãos que o cercavam —, quem se atreve a insultar-nos com essa brincadeira blasfema? Agarrem-no, desmascarem-no! Assim saberemos quem deverá ser enforcado ao amanhecer!

Essas palavras vieram da sala azul, onde se achava o príncipe quando as pronunciou. Ecoavam pelas sete salas, alta e claramente, porque o príncipe era homem destemido e forte, e a música havia cessado, a um gesto seu.
Vieram da sala azul, onde estava o príncipe, rodeado de cortesãos empalidecidos. No primeiro momento que se seguiu à fala do príncipe, houve um ligeiro movimento de avanço do grupo em direção ao intruso. Este se achava perto e, com passos deliberados e firmes, aproximou-se do anfitrião. Mas, devido ao indefinível terror produzido pelo mascarado no ânimo de todos, ninguém se atreveu a agarrá-lo. Sem empecilho, ele se afastou, passando a um metro do lugar onde estava o príncipe. À sua passagem, toda a vasta assembleia, como que movida pelo mesmo impulso, afastou-se do centro das salas para as paredes, e o mascarado pôde seguir seu caminho com desembaraço, e com os mesmos passos solenes e medidos com que passara da sala azul à vermelha, da vermelha à verde, da verde à alaranjada, desta para a branca, e para a violeta, sem que nenhum dos circunstantes tivesse esboçado um gesto para detê-lo. Foi quando, louco de raiva e vergonha da própria e momentânea covardia, o príncipe Próspero cruzou apressadamente as seis salas, sem ninguém a segui-lo: o terror se apoderara de todos. Brandindo o punhal, avançava impetuosa e rapidamente; já estava a três ou quatro passos do vulto que se retirava, quando este, atingindo a extremidade da sala aveludada, virou-se bruscamente e enfrentou seu perseguidor. Nesse instante ouviu-se um grito agudo, e o punhal caiu cintilante no tapete negro, sobre o qual tombou também, instantaneamente e ferido de morte, o príncipe Próspero. Recorrendo à selvática coragem do desespero, um grupo de foliões correu para a sala negra e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, detiveram-se eles, horrorizados, ao descobrir que a mortalha e a máscara mortuária que tão rudemente haviam agarrado não continham nenhuma forma tangível.

Só então se reconheceu a presença da Morte Rubra. Viera como um ladrão na noite. E, um a um, caíram os foliões nos ensanguentados salões da orgia, e morreram, conservando a mesma desesperada postura da queda. E a vida do relógio de ébano extinguiu-se simultaneamente com a do último dos foliões. E as chamas dos trípodes apagaram-se. E a Escuridão, a Ruína e a Morte Rubra estenderam seu domínio ilimitado sobre tudo.

Edgar Allan Poe, “A causa secreta e outros contos de horror”

Para Maria da Graça

Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.

Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!". O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou a Alice: "Gostaria de gatos se fosses eu?".

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupes a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos.

O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
Paulo Mendes Campos. "Para gostar de ler - 4"

quinta-feira, agosto 14

Casa


Ato de contrição

Pelo que não fiz, perdão!
Pelo tempo que vi, parado,
correr chamando por mim,
pelos enganos que talvez
poupando me empobreceram,
pelas esperanças que não tive
e os sonhos que somente
sonhando julguei viver,
pelos olhares amortalhados
na cinza de sóis que apaguei
com riscos de quem já sabe,
por todos os desvarios
que nem cheguei a conceber,
pelos risos, pelas lágrimas,
pelos beijos e mais coisas,
que sem dó de mim malogrei

— por tudo, vida, perdão!
Adolfo Casais Monteiro

Peste da insônia

Uma noite, na época em que Rebeca se curou do vício de comer terra e foi levada para dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com eles acordou por acaso e ouviu um estranho ruído intermitente no canto. Sentou-se alarmada, pensando que tinha entrado algum animal no quarto, e então viu Rebeca na cadeira de balanço, chupando o dedo e com os olhos fosforecentes como os de um gato na escuridão. Pasmada de terror, perseguida pela fatalidade do destino, Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença cuja ameaça os havia obrigado, a ela e ao irmão, a se desterrarem para sempre de um reino milenário no qual eram príncipes. Era a peste da insônia.


Cataure, o índio, não amanheceu em casa. Sua irmã ficou, porque o coração fatalista lhe indicava que a doença fatal haveria de persegui-la de todas as maneiras até o último lugar da terra. Ninguém entendeu o pânico de Visitación. “Se a gente não voltar a dormir, melhor”, dizia José Arcadio Buendia, de bom humor. “Assim a vida rende mais”. Mas a índia explicou que o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço nenhum, mas sim a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado. José Arcadio Buendia, morto de rir, considerou que se tratava de mais uma das tantas enfermidades inventadas pela superstição dos indígenas. Mas Úrsula, por via das dúvidas, tomou a precaução de separar Rebeca das outras crianças.

Ao fim de várias semanas, quando o terror de Visitación parecia aplacado, José Arcadio Buendia encontrou-se uma noite rolando na cama sem poder dormir. Úrsula, que também tinha acordado, perguntou-lhe o que estava acontecendo e ele respondeu: “Estou pensando outra vez em Prudencio Aguilar”. Não dormiram um minuto sequer, mas no dia seguinte se sentiam tão descansados que se esqueceram da noite ruim. Aureliano comentou assombrado na hora do almoço que se sentia muito bem, apesar de ter passado a noite no laboratório, dourando um broche que pensava dar a Úrsula no dia do seu aniversário. Não se alarmaram até o terceiro dia, quando na hora de deitar se sentiram sem sono, e deram conta de que estavam há mais de cinqüenta horas sem dormir.

- As crianças também estão acordadas – disse a índia com a sua convicção fatalista. – Uma vez que a peste entra em casa, ninguém escapa.

Quando José Arcadio Buendia percebeu que a peste tinha invadido a povoação, reuniu os chefes de família para explicar-lhes o que sabia sobre a doença da insônia, e estabeleceram medidas para impedir que o flagelo se alastrasse para as outras povoações do pantanal. Foi assim que se tiraram dos cabritos os sininhos que os árabes trocavam por papagaios, e se puseram na entrada do povoado, à disposição dos que desatendiam os conselhos e as súplicas dos sentinelas e que insistiam em visitar a aldeia. Todos os forasteiros que por aquele tempo percorriam as ruas de Macondo tinham que fazer soar o sininho para que os doentes soubessem que estavam sãos. Não se lhes permitia comer nem beber nada durante a sua estada, pois não havia dúvidas de que a doença só se transmitia pela boca, e todas as coisas de comer e de beber estavam contaminadas pela insônia. Desta forma, manteve-se a peste circunscrita ao perímetro do povoado. Tão eficaz foi a quarentena, que chegou o dia em que a situação de emergência passou a ser encarada como coisa natural e se organizou a vida de tal maneira que o trabalho retomou o seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar com o inútil costume de dormir.

Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes de sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.

Na entrada do caminho do pântano, puseram um cartaz que dizia Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o passado nas cartas como antes tinha lido o futuro. Com esse recurso, os insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas do baralho, onde o pai se lembrava de si apenas como o homem moreno que havia chegado no princípio de abril, e a mãe se lembrava de si apenas como a mulher trigueira que usava um anel de ouro na mão esquerda, e onde uma data de nascimento ficava reduzida à última quarta-feira em que cantou a calhandra no loureiro.
Gabriel García Márquez, "Cem anos de solidão"

Com outros olhos

Da ampla janela, aberta sobre o jardinzinho pênsil da casa, via-se, como que pousado no azul vivo da fresca manhã, um ramo de amendoeira florida, e ouvia-se, misturado ao quieto e rouco gotejar do chafariz no meio do jardim, o bimbalhar festivo das igrejas distantes e a garrulice das andorinhas ébrias de ar e de sol.

Ao retirar-se da janela, suspirando, Ana percebeu que o marido, naquela manhã, esquecera-se de decompor a cama, como fazia sempre, para que os criados não notassem que ele não dormira em seu quarto. Pousou então os cotovelos na cama intacta, depois ali se apoiou com o busto todo, dobrando a bela cabeça loura sobre os travesseiros e semicerrando os olhos, como que para saborear, no frescor do linho, os sonos que ali costumava dormir. Um bando de andorinhas tresmalhadas veio rumorejar diante da janela.

— Teria sido melhor que houvesse deitado aqui — murmurou entre si; e levantou-se cansada.

O marido ia partir naquela mesma noite, e ela entrara no quarto dele a fim de preparar-lhe o necessário para a viagem.

Ao abrir o guarda-roupa, ouviu como que um chiado na gaveta interna e logo se afastou, assustada. Apanhou de um canto do quarto uma bengala de cabo recurvo e, mantendo junto às pernas o vestido, pegou a bengala pela ponta e experimentou abrir com ela, assim afastada, a gaveta. Mas, ao puxar, ao invés da gaveta veio para fora, agilmente, da bengala, uma luzidia e perigosa lâmina. Isso ela não esperava; ficou assustada e deixou cair das mãos a bainha do estoque.

Naquele momento, um outro chiado fê-la voltar-se de repente, na dúvida de que também o primeiro tivesse partido de alguma andorinha batendo nas vidraças.

Afastou com o pé a arma desembainhada e puxou para fora, entre as duas portinholas abertas, a gaveta repleta de roupas velhas, ali guardadas pelo marido. Por improvisa curiosidade, passou então a revistá-la e, ao mexer num paletó velho e desbotado, ocorreu-lhe esbarrar nas orlas, sob o forro, como num pedaço de papelão, deslizado para ali do bolso furado; quis ver o que seria aquela carta caída ali, quem sabe há quantos anos, e esquecida; e assim, por acaso, Ana descobriu o retrato da primeira mulher de seu marido.

Empalidecendo, com a vista turva e o coração em suspenso, correu à janela, e ali permaneceu longo tempo, atônita, a contemplar a imagem desconhecida, como que presa de uma sensação de espanto.

O volumoso arranjo do penteado e o vestido de estilo antigo não lhe fizeram notar a princípio a beleza daquele rosto; mas, apenas pôde apanhar-lhe os traços, abstraindo-os dos enfeites, que agora, tantos anos depois, pareciam grotescos, e fixar-lhe especialmente os olhos, sentiu-se quase ofendida, e um ímpeto de ódio lhe saltou do coração ao cérebro: ódio de ciúme póstumo; ódio misto a desprezo, que experimentara por aquela que se enamorara do homem que agora era seu marido, depois de onze anos da tragédia conjugal que destruíra de chofre o primeiro lar dele.

Ana odiara aquela mulher, não sabendo compreender como pudera trair o homem que ela agora adorava e, em segundo lugar, porque seus parentes se haviam oposto ao seu casamento com Brívio, como se este houvesse sido responsável pela infâmia e pela morte violenta da mulher infiel.

Era ela, sim, era, sem dúvida! a primeira mulher de Vittore: aquela que se suicidara!

Teve disso a confirmação pela dedicatória escrita no verso do retrato: Ao meu Vittore, a sua Almira — 11 de novembro de 1873.

Ana tivera notícias muitos vagas a respeito da morta: sabia apenas que o marido, descoberta a traição, obrigara-a, com a impassibilidade de um juiz, a suicidar-se.

Agora, ela evocou com prazer esta condenação do marido, irritada por aquele “meu” e por aquele “sua” da dedicatória, como se a outra houvesse desejado ostentar, assim, estreitamente, o liame que reciprocamente unira ela e Vittore, unicamente para fazer-lhe desaforo.

Ante aquele primeiro relâmpago de ódio, faiscado pela rivalidade para ela agora existente, seguiu-se na alma de Ana a curiosidade feminina de examinar os traços daquele rosto, mas quase contida pela estranha consternação que se experimenta perante um objeto que pertenceu a alguém tragicamente desaparecido; consternação agora mais viva, mas a ela não desconhecida, porque nisso se concentrara todo o seu amor pelo marido, que já pertencera àquela outra mulher.

Ao examinar-lhe o rosto, Ana percegeu logo quanto se diferenciava do seu; e surgiu-lhe ao mesmo tempo do coração a pergunta: como pudera o marido amar aquela mulher, aquela mocinha, certamente mais bonita para ele, e pudesse depois enamorar-se dela, tão diferente?

Parecia-lhe belo, muito mais belo que o seu também, aquele rosto que, pelo retrato, devia ser moreno. Ei-lo: e aqueles lábios se haviam unido, no beijo, aos dele; mas, por que então, nos cantos da boca, aquela prega dolorosa? E porque tão triste o olhar daqueles olhos profundos? O rosto inteiro transpirava uma intensa mágoa; e Ana sentiu quase raiva da bondade humilde e real que aqueles traços exprimiam, e daí um gesto de repulsa e aversão, parecendo-lhe de súbito descobrir no olhar daqueles olhos a mesma expressão dos seus, quando, ao pensar no marido, se olhava ao espelho, pela manhã, depois de se haver arrumado.

Teve o tempo ainda de pôr no bolso o retrato: o marido apareceu, bufando, à entrada do quarto.

— Que fez você? Como sempre? Arrumou? Oh, pobre de mim! Agora não encontro mais nada!

Ao ver o estoque desembainhado no chão:

— Ah! Você brincou também de esgrima, com as roupas do armário?

E riu com aquele seu riso, que partia somente da garganta, como se alguém lha houvesse beliscado; e, ao rir assim, olhou para a mulher, talvez para perguntar-lhe o porquê de seu próprio riso. E, olhando, batia as pálpebras sem cessar, celerissimamente, sobre os olhinhos agudos, negros, irrequietos.

Vittore Brívio tratava a mulher como a uma menina incapaz de outra coisa a não ser daquele amor ingênuo e quase pueril de que se sentia circundado, às vezes com tédio, e ao qual se propusera prestar atenção somente de vez em quando, mostrando, também então, uma condescendência quase embebida de leve ironia, parecendo dizer-lhe: “Pois bem, que seja! durante algum tempo, serei criança também com você: é preciso mesmo fazer isto, mas não percamos demasiado tempo!”

Ana deixara cair a seus pés o velho paletó, onde encontrara o retrato. Ele ergueu-o, metendo-lhe a ponta do estoque, depois chamou da janela o criado, que se achava no jardim e que servia também de cocheiro e que, no momento, estava atrelando o cavalo ao trole. Assim que o rapaz se apresentou, em mangas de camisa, diante da janela, Brívio atirou-lhe à cara, grosseiramente, o paletó espetado, acompanhando a esmola com um: “Tome, isto é para você!”

— Assim você terá menos para escovar — acrescentou, dirigindo-se à mulher — e também para arrumar, esperemos!

E novamente emitiu aquele seu riso forçado, batendo mais e mais as pálpebras.

Outras vezes, o marido afastara-se da cidade e não por poucos dias apenas, partindo mesmo à noite, como desta vez; mas Ana, ainda sob a impressão da descoberta daquele retrato, experimentou um medo estranho, e disse-o, chorando, ao marido.

Vittore Brívio, apressado, receando sair tarde, e todo absorto no pensamento de seus negócios, recebeu com mau humor aquele pranto insólito da mulher.

— Como! Por quê? Vamos, vamos, criancices!

E saiu a toda pressa, sem sequer despedir-se.

Ana estremeceu ao ruído da porta que se lhe fechou empós, com ímpeto; ficou ali com o lampião na mão, na saleta, e sentiu as lágrimas se lhe regelarem nos olhos. Depois reagiu e voltou rápida para seu quarto, a fim de deitar-se logo.

No aposento já arrumado, ardia a lamparina da noite.

— Vá, pode ir dormir — disse Ana à camareira, que a esperava. — Eu mesma me arranjo. Boa noite.

Apagou a luz, mas, ao invés de pousá-la na mísula, como sempre fazia, sobre o criado-mudo, pressentindo — mesmo contra sua própria vontade — que talvez dela necessitaria mais tarde. Começou a despir-se à pressa, conservando os olhos fixos no chão, diante de si. Quando o vestido lhe caiu aos pés, pensou que o retrato estava lá e, com viva raiva, se sentiu olhada e compadecida por aqueles olhos dolentes, que tanta impressão lhe haviam causado. Curvou-se resolutamente, para apanhar do tapete o vestido, e pousou-o, sem dobrar, sobre a poltrona aos pés da cama, como se o bolso que guardava o retrato e o envoltório do pano devessem e pudessem impedir-lhe de reconstruir a imagem daquela morta.

Mal se deitara, fechou os olhos e se propôs a seguir, com o pensamento, o marido pela estrada que levava à estação ferroviária. Impôs-se isso por uma irada revolta ao sentimento que, durante aquele dia todo, a conservara vigilante, a observar, a estudar o marido. Sabia de onde proviera tal sentimento e queria expulsá-lo de si.

No esforço da vontade, que lhe provocava viva superexcitação nervosa, imaginou ter diante dos olhos, com extraordinária evidência, a comprida rua, deserta na noite, iluminada pêlos lampiões que reverberam sua luz trémula na calçada, que parecia palpitar; e aos pés de cada lampião, um círculo de sombra; as lojas, todas fechadas; e eis a carruagem que conduzia Vittore. Como se a houvesse esperado à passagem, passou a segui-la até à estação; viu o trem lúgubre, sob o telhado de vidro; uma grande confusão de pessoas naquele interior vasto, enfumaçado, mal iluminado, sombriamente sonoro: eis que o trem partia; e, como se realmente o visse afastar-se e desaparecer nas trevas, voltou logo a si, abriu os olhos no quarto silencioso e experimentou uma angustiosa sensação de vácuo, como se algo lhe faltasse dentro.

Sentiu, então, confusamente, desnorteando-se, que, desde três anos, talvez desde o momento em que partira da casa paterna, ela estava mergulhada naquele vácuo, de que só agora começava a ter conhecimento. Não notara antes, porque o havia preenchido somente consigo, com seu amor, aquele vazio; percebia-o agora, porque, durante aquele dia todo, conservara quase suspenso seu amor, para ver, para observar, para julgar.

“Nem sequer se despediu de mim!” pensou; e pôs-se a chorar de novo, como se este pensamento fosse determinadamente a causa do pranto.

Sentou-se na cama: mas logo deteve a mão estendida, ao levantar-se, para apanhar o lenço do vestido. Ora, seria mesmo inútil proibir-se de rever aquele retrato, de observá-lo! Apanhou-o. Reacendeu a luz.

Como imaginara diversamente, aquela mulher! Contemplando-lhe agora a verdadeira efígie, sentia remorsos pêlos sentimentos que a imaginação lhe sugerira. Pensara sempre nela como uma mulher gorda e corada, com os olhos relampejantes e risonhos, inclinada ao riso, a distrações vulgares. E, ao contrário, ei-la: uma jovem, e dos seus puros traços emanava uma alma profunda e atormentada; diferente dela, sim, mas não no sentido inconveniente de antes: ao contrário, até parecia que aquela boca não houvesse nunca sorrido, ao passo que a sua tantas vezes rira alegremente; e, certamente, se moreno aquele rosto (como pelo retrato parecia) era de um ar menos risonho que o seu, louro e róseo.

Por que, por que tão triste?

Um pensamento odioso atravessou-lhe a mente, e logo desprendeu os olhos da imagem daquela mulher, descobrindo-lhe de improviso um perigo não só à sua paz, ao seu amor, que também naquele dia recebera mais de uma ferida, mas também à sua orgulhosa dignidade de mulher honesta, que jamais se permitira nem mesmo o mínimo pensamento contra o marido. Aquela tivera um amante! E por causa deste, ela talvez estivessesse tão triste, por causa daquele amor adúltero, e não pelo marido!

Atirou o retrato sobre o criado-mudo e apagou de novo a luz, esperando adormecer, desta vez, sem mais pensar naquela mulher, com a qual nada podia ter em comum. Mas, fechando as pálpebras, reviu logo, malgrado seu, os olhos da morta, e em vão procurou expulsar aquela visão.

— Não por ele, não por ele! — murmurou, com aflitiva obstinação, como se, injuriando-a, contasse libertar-se dela.

E esforçou-se por trazer de novo à memória quanto sabia sobre o outro, o amante, quase que obrigando o olhar e a tristeza daqueles olhos a se dirigirem não mais a ela mas sim ao antigo amante, do qual conhecia apenas o nome: Artur Valli. Sabia que ele se casara, alguns anos depois, quase para provar que era inocente do crime que lhe queria atribuir Brívio, do qual sempre repelira energicamente o desafio, protestando que jamais se bateria em duelo com um louco assassino. Depois desta recusa, Vittore tinha ameaçado matá-lo onde o encontrasse, até mesmo na igreja; e então ele saíra dali, com a mulher, voltando mais tarde àquela cidade, assim que soubera que Vittore, de novo casado, partira.

Mas da tristeza desses acontecimentos por ela relembrados, pela convardia de Valli e, depois de tantos anos, pelo esquecimento do marido o qual, como se nada fosse, conseguira reabilitar-se na vida e tornar a casar, pela alegria que ela própria sentira ao se tornar sua mulher, por aqueles três anos transcorridos sem jamais se lembrar da outra, inesperadamente, um motivo de compaixão por ela se impôs a Ana espontâneo: reviu-lhe viva a imagem, mas como se estivesse longe, longe, e pareceu-lhe que, com aqueles olhos, de tanta mágoa inundados, ela lhe dissesse, abanando levemente a cabeça:

— Somente eu, porém, morri! Vocês todos vivem!

Viu-se, sentiu-se sozinha em casa; teve medo. Vivia, sim, ela; mas fazia três anos, desde o dia de seu casamento, não mais vira, nem uma só vez, seus pais, sua irmã. Ela, que os adorava, e que sempre tinha sido para com eles dócil e confiante, pudera rebelar-se à sua vontade, aos seus conselhos, por amor àquele homem; por amor àquele homem adoecera mortalmente e teria morrido, se os médicos não houvessem induzido seus pais a condescender no casamento. O pai cedera, não consentindo, porém, e até jurando que ela para ele, para sua casa, depois daquele casamento, deixaria de existir. Além da diferença de idade, dos dezoito anos que o marido tinha mais que ela, obstáculo mais grave para o pai tinha sido a posição financeira do marido, sujeita a rápidas mudanças devido a negócios arriscados a que costumava atirar-se, com temerária confiança em si mesmo e na sorte.

Em três anos de casamento, Ana, rodeada de conforto, pudera considerar injustas ou ditadas por contrárias prevenções as considerações da prudência paterna, quanto à fortuna do marido, na qual, de resto, ela, ignara, depositava a mesma confiança que ele em si próprio; quanto então à diferença de idade, até agora nenhum manifesto argumento de desilusão para ela ou de admiração para os outros, porque, dos anos, Brívio não sentia o mínimo prejuízo nem no corpo vivacíssimo e nervoso, nem muito menos no ânimo, dotado de infatigável energia, de irrequieta alacridade.

De bem outra coisa, agora, pela primeira vez, olhando (sem sequer desconfiar) para sua vida com os olhos da morta, encontrava motivo para queixar-se do marido. Sim, era verdade: da indiferença quase altiva dele ela se sentira ferir já outras vezes: porém, nunca como naquele dia; e agora, pela primeira vez, se sentia tão angustiosamente só, separada dos parentes, os quais, lhe parecia naquele momento, a houvessem abandonado ali, quase que, ao casar com Brívio, tivesse já algo em comum com aquela morta e não fosse mais digna de outra companhia. E o marido, que deveria consolá-la, o próprio marido parecia não dar-lhe mérito algum quanto ao sacrifício que ela fizera de seu amor filial e fraternal, como se a ela nada tivesse custado, como se àquele sacrifício ele tivesse direito, e por isso agora nenhum dever tinha para consolá-la ou compensá-la. Direito, sim, mas porque ela se enamorara tão perdidamente por ele, àquele tempo; então ele tinha agora o dever de compensá-la. E ao invés…

— Sempre assim! — pareceu a Ana que os lábios da morta suspirassem.

Reacendeu a luz e de novo, contemplando a imagem, foi atraída pela expressão daqueles olhos. Também ela, então, deveras, sofrera por ele? Também ela, também ela, ao perceber que não era amada, experimentara aquele angustioso vazio?

— Sim? sim? — perguntou Ana, sufocada pelo pranto, à imagem.

E pareceu-lhe, então, que aqueles olhos bondosos, repletos de paixão, se compadecessem dela por sua vez, tivessem pena dela por aquele abandono, pelo sacrifício não recompensado, pelo amor que lhe ficava preso no seio, qual tesouro no escrínio, do qual ele possuísse as chaves, mas nunca dele se servira, tal como o avarento.
Luigi Pirandello

Vídeo-tape da insônia

Da casa em que nasci não me lembro nada. Contam que via o demônio e o apontava na parede, alvoroçadamente, como se fora um anjo. Minha vida começa em Saúde, arraial de minha infância, de onde me surgem as estampas essenciais: brincando com Íris no jardim; Íris no caixão sobre a mesa escura; a notícia do assassinato de meu tio Arquimedes, chegada cautelosamente no serão familiar; seu Rodolfo Caçador com sua perna de pau (derrubou o cacho de cocos com um tiro); minha mão de revólver procurando ladrão no quintal; o leproso dos Correios que comia ovos cozidos; meu encontro com a morte do tuberculoso na casa desconhecida; o guizo da mula sem cabeça tilintando na várzea.

Sempre parti sem pena. Ainda hoje é a mesma emoção, uma alegria doloridamente física, uma névoa infantil nos olhos, imitando as lágrimas. Da infância não trouxe no coração uma saudade direta, e tive terror dos mascarados e do batuque noturno dos tambores.


Em Belo Horizonte, ao grito de “avião! avião!”, corria para a rua numa agitação de fim de mundo. Quantas tristezas de sexo precoce eu tive, sentindo, como um alarme, a violência do corpo.

As primeiras letras. Meu ódio à disciplina. O mistério do pátio das meninas. Minha primeira paixão chamava-se Maria e usava tranças. Minha segunda paixão era Maria e tinha olhos bonitos. As fitas em série aos domingos: O grande guerreiro! Bob Steele! Buck Jones!Ruas de Nova Iorque! Tempestade sobre a Ásia! A importância de retirar um livro da biblioteca pública!

Quando veio a Revolução de 30, estava de braço quebrado. As negras se arrastavam da Barroca até a Serra e aí chegavam famintas, esfarrapadas, apavoradas. Meu pai comprava e distribuía alimentos no armazém. Da caixa-d’água vi um avião bombardear o quartel.

Nossas molecagens! Nossas maldades! As brigas da nossa quadrilha! As árvores não cresciam em nossas ruas, a grama não pegava nos jardins, as lâmpadas não ficavam acesas nos postes. A mão imensa e brutal do padre alemão.

Aos onze anos, fugi de casa. Em companhia de Georges e Aristeu, demandei Goiás para viver com os índios. A primeira sede violenta. O desconhecido amedrontando e tentando. Cardoso, velho lenheiro, nos deu em sua choupana cama de palha, café com broa e conselhos mansos: “Acho que vocês vão dar uma estopada, meninos: o mundo é grande e mau”.

Reprovado no primeiro ano ginasial, fui mandado para o colégio interno. Lágrimas convulsas na primeira noite. Conheço a pusilanimidade, a traição, a delação, a covardia, a bofetada de um padre. Feroz é coração da infância. Um pátio com uma paineira e um retângulo de estrelas. A saudade à hora do crepúsculo estragou-me os outros crepúsculos. Dramas do sexo e da afeição tiveram apenas o testemunho irreal dos professores. Rebeldia, medo do inferno, sensibilidade ― tudo me fez a vida até hoje infeliz. No segundo ano, segundo a linguagem salesiana, comecei a ficar tíbio; participava da Société Impieté.

Não esqueço as férias e o esperar por elas, quando a primeira horda de bichinhos de luz invadia o estudo da noite. Não esqueço nada que haja escapado à vigilância, nenhuma rebeldia, alunos que desafiavam professores, os que fugiam e levavam nossos votos de boa sorte, o ridículo, a oratória besta, a vaidade, a crueldade, a raposice dos pedagogos. Não esquecerei nada. Seu João Maria me chamava de Laplace: não me puniu quando me viu roubar laranja. Obrigado, João Maria. Seu Vicente era manso e consolava os que choram. Seu Gilberto era um ótimo sujeito. Era suave o perfume do eucalipto, suave era o ar, doces eram as ameixas, ásperos e belos eram os caminhos da montanha. Coisas da natureza, obrigado. Obrigado, amigos meus. Que contentamento deixar Dom Bosco e seus fantasmas! Ah! Se pudesse levar comigo o aroma das resinas! Que contentamento tomar o trem na antiga Hargreaves e voltar! Que alvoroço de abelhas voltar! As férias vão terminar como sempre e o pórtico negro que me espera é ainda mais negro do que o outro.


Em São João del-Rei conheci sadios holandeses franciscanos e várias liberdades desconhecidas. Os primeiros amigos mortos a desfiar um rosário de tristezas minhas. Aplicação e desprezo pelos estudos, uma adivinhação de poesia nos florilégios estúpidos, frustradas inquietações políticas e patrióticas. A voz grossa e rápida de Frei Rufino, a vaguidão de Frei Lau querendo escrever com o charuto, o irrepreensível Frei Noberto, coisas inocentes que gelam dentro de mim um bloco irremovível.

Em dez meses de estudos bélicos, de marchas, ordem unida, maneabilidade, manobrando fuzis e metralhadoras, não descobri dentro de mim o soldado. Fui definitivamente um paisano.

Elza era delicada e ia ser dentista. Uma judia guardei como lembrança de perfeição adolescente. E as decaídas inesquecíveis: são ásperas e conservam purezas intratáveis.

A adolescência é um tribunal inesperado: o julgamento do pai pelo filho, o julgamento do filho pelo pai. Nesse conflito de culpas, apreensões e incertezas está o mistério dos caminhos da vida, sempre errados. Toda a perplexidade do homem cabe no encontro do pai e do filho, quando se encaram com um rancor de acusados à luz da madrugada. Cabe às mulheres a melhor parte do amor e do sofrimento porque as mães não podem julgar, e este é o mais linear dos mistérios.
Folha morta, déçà délà, fui arrastado pelas ruas da madrugada. Havia um poder suicida em cada coisa.

Já não entendo teu clamor, ó confusa adolescência. Morreu contigo o sol denso da tragédia. Morreu contigo o pássaro rubro amigo de meu ombro. Morreu contigo meu inconformismo cruel, minha dignidade na desgraça. Contigo a parte de mim mais infeliz e fiel.
Paulo Mendes Campos