sexta-feira, dezembro 12

É a bike do livro passando!

 


Festa

Fabiano, Sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na cidade. Eram três horas, fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das árvores amarelas nuvens de poeira e folhas secas.

Tinham fechado a casa, atravessado o pátio, descido a ladeira, e pezunhavam nos seixos como bois doentes dos cascos. Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por Sinha Terta, com chapéu de beata, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinha Vitória,enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua – e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa sempre usavam camisinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja e incumbira Sinha Terta de arranjar farpelas para ele e para os filhos. Sinha Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano se mostrara desentendido, certo de que a velha pretendia furtar-lhe os retalhos. Em consequência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas.
Fabiano tentava não perceber essas desvantagens. Marchava direito, a barriga para fora, as costas aprumadas, olhando a serra distante. De ordinário olhava o chão, evitando as pedras, os tocos, os buracos e as cobras. A posição forçada cansou-o. E ao pisar a areia do rio, notou que assim não poderia vencer as três léguas que o separavam da cidade. Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paletó, a gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitória decidiu imitá-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou no lenço. Os meninos puseram as chinelinhas debaixo do braço e sentiram-se à vontade.

A cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo. Se ela tivesse chegado antes provavelmente Fabiano a teria enxotado. E Baleia passaria a festa junto às cabras que sujavam o copiar. Mas com a gravata e o colarinho machucados no bolso, o paletó no ombro e as botinas enfiadas num pau, o vaqueiro achou-se perto dela e acolheu-a.


Retomou a posição natural: andou cambaio, a cabeça inclinada. Sinha Vitória, os dois meninos e Baleia acompanharam-no. A tarde foi comida facilmente e ao cair da noite estavam na beira do riacho, à entrada da rua.

Aí Fabiano parou, sentou-se, lavou os pés duros, procurando retirar das gretas fundas o barro que lá havia. Sem se enxugar, tentou calçar-se - e foi uma dificuldade: os calcanhares das meias de algodão formaram bolos nos peitos dos pés e as botinas de vaqueta resistiram como virgens. Sinha Vitória levantou a saia, sentou-se no chão e limpou-se também. Os dois meninos entraram no riacho, esfregaram os pés, saíram, calçaram as chinelinhas e ficaram espiando os movimentos dos pais. Sinha Vitória aprontava-se e erguia-se, mas Fabiano soprava arreliado. Tinha vencido a obstinação de uma daquelas amaldiçoadas botinas; a outra emperrava, e ele, com os dedos nas alças, fazia esforços inúteis. Sinha Vitória dava palpites que irritavam o marido. Não havia meio de introduzir o diabo do calcanhar no tacão. A um arranco mais forte, a alça de trás rebentou-se, e o vaqueiro meteu as mãos pela borracha, energicamente. Nada conseguindo, levantou-se resolvido a entrar na rua assim mesmo, coxeando, uma perna mais comprida que a outra. Com raiva excessiva, a que se misturava alguma esperança, deu uma patada violenta no chão. A carne comprimiu-se, os ossos estalaram, a meia molhada rasgou-se e o pé amarrotado se encaixou entre as paredes de vaqueta. Fabiano soltou um suspiro largo de satisfação e dor. Em seguida tentou prender o colarinho duro ao pescoço, mas os dedos trêmulos não realizaram a tarefa. Sinha Vitória auxiliou-o: o botão entrou na casa estreita e a gravata amarrou-se. As mãos sujas, suadas, deixaram no colarinho manchas escuras.

– Está certo, grunhiu Fabiano.

Atravessaram a pinguela e alcançaram a rilã. Sinha Vitória caminhava aos tombos, por causa dos saltos dos sapatos, e conservava o guarda-chuva suspenso, com o castão para baixo e a biqueira para cima, enrolada no lenço. Impossível dizer porque Sinha Vitória levava o guarda-chuva com biqueira para cima e o castão para baixo. Ela própria não saberia explicar- se, mas sempre vira as outras matutas procederem assim e adotava o costume.

Fabiano marchava teso. Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os, homens iriam brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as barracas? Estavam acostumados a aguentar cascudos e puxões de orelhas. Talvez as criaturas desconhecidas não se comportassem como Sinha Vitória, mas os pequenos retraíam-se, encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de rumores estranhos.

Chegaram à igreja, entraram. Baleia ficou passeando na calçada, olhando a rua, inquieta. Na opinião dela, tudo devia estar no escuro, porque era noite, e a gente que andava no quadro precisava deitar-se. Levantou o focinho, sentiu um cheiro que lhe deu vontade de tossir. Gritavam demais ali perto e havia luzes em abundância, mas o que a incomodava era aquele cheiro de fumaça.

Os meninos também se espantavam. No mundo, subitamente alargado, viam Fabiano e Sinha Vitória muito reduzidos, menores que as figuras dos altares. Não conheciam altares, mas presumiam que aqueles objetos deviam ser preciosos. As luzes e os cantos extasiavam-nos. De luz havia, na fazenda, o fogo entre as pedras da cozinha e o candeeiro de querosene pendurado pela asa numa vara que saía da taipa; de canto, o bendito de Sinha Vitória e o aboio de Fabiano. O aboio era triste, uma cantiga monótona e sem palavras que entorpecia o gado. Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoço esticado, pisando, em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se, estava amarrado. Lentamente conseguiu abrir caminho no povaréu, esgueirou-se até junto da pia de água benta, onde se deteve, receoso de perder de vista a mulher e os filhos. Ergueu-se nas pontas dos pés, mas isto lhe arrancou um grunhido: os calcanhares esfolados começavam a afligi-lo. Distinguiu o cocó de Sinha Vitória, que se escondia atrás de uma coluna. Provavelmente os meninos estavam com ela. A igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa de algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano.

E sempre vira, desde que se entendera, roupas de festa assim: calça e paletó engomados, batinas de elástico, chapéu de baeta, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava aprumar-se. Mas a disposição esmorecia: o espinhaço vergava, naturalmente, os braços mexiam-se desengonçados.

Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por Sinha Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto.

– Preguiçosos, ladrões, faladores, mofinos.

Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. Mordeu os beiços. Não poderia dizer semelhante coisa. Por falta menor aguentara facão e dormira na cadeia. Ora, o soldado amarelo... Sacudiu a cabeça, livrou-se da recordação desagradável e procurou uma cara amiga na multidão. Se encontrasse um conhecido, iria chamá-lo para a calçada, abraçá-lo, sorrir, bater palmas.

Depois falaria sobre gado. Estremeceu, tentou ver o cocó de Sinha Vitória.

Precisava ter cuidado para não se distanciar da mulher e dos filhos. Aproximou-se deles, alcançou-os no momento em que a igreja começava a esvaziar-se.

Saíram aos encontrões, desceram os degraus. Empurrado, machucado, Fabiano tornou a pensar no soldado amarelo. No quadro, ao passar pelo jatobá, – virou o rosto. Sem motivo nenhum, o desgraçado tinha ido provocá-lo, pisar-lhe o pé. Ele se desviara, com bons modos. Como o outro insistisse, perdera a paciência, tivera um rompante. Conseqüência: facão no lombo e uma noite de cadeia.

Convidou a mulher e os filhos para os cavalinhos, arrumou-os, distraiu-se um pouco vendo-os rodar. Em seguida encaminhou-os as barracas de jogo. Coçou-se, puxou o lenço, desatou-o, contou o dinheiro, com a tentação de arriscá-lo no bozó. Se fosse feliz, poderia comprar a cama de couro cru, a sonho de Sinha Vitória. Foi beber cachaça numa tolda, voltou, pôs-se a rondar indeciso, pedindo com os olhos a opinião da mulher. Sinha Vitória fez um gesto de reprovação, e Fabiano retirou-se, lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu Inácio, com o soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora roubado. Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaça. Pouca a pouco ficou sem-vergonha.

– Festa é festa.

Bebeu ainda uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas desafiando-as. Estava resolvido a fazer uma asneira. Se topasse o soldado amarelo, esbodegava-se com ele. Andou entre as barracas, emproado, atirando coices no chão, insensível às esfoladuras dos pés. Queria era desgraçar-se, dar um pano de amostra àquele safado. Não ligava importância à mulher e aos filhos, que o seguiam.

– Apareça um homem! berrou.

No barulho que enchia a praça ninguém notou a provocação. E Fabiano foi esconder-se por detrás das barracas, para lá dos tabuleiros de doces. Estava disposto a esbagaçar-se, mas havia nele um resto de prudência. Ali podia irritar-se, dirigir ameaças e desaforos a inimigos invisíveis. Impelido por forças acautelava-se. Sabia que aquela explosão era perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse de repente, viesse plantar-lhe no pé a reiúna. O soldado amarelo, falto de substância, ganhava fumaça na companhia dos parceiros. Era bom evitá-lo. Mas a lembrança dele tornava-se às vezes horrível. E Fabiano estava tirando uma desforra. Estimulado pela cachaça, fortalecia-se: – Cadê o valente? Quem é que tem coragem de dizer que eu sou feio? Apareça um homem.
Lançava o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio de ser ouvido. Ninguém apareceu. E Fabiano roncou alto, gritou que eram todos uns frouxos, uns capados, sim senhor. Depois de muitos berros, supôs que havia ali perto homens escondidos, com medo dele. Insultou-os: - Cambada de...

Parou agoniado, suando frio, a boca cheia de água, sem atinar com a palavra. Cambada de quê? Tinha o nome debaixo da língua., E a língua engrossava, perra, Fabiano cuspia, fixava na mulher e nos filhos uns olhos vidrados. Recuou alguns passos, entrou a engulhar. Em seguida aproximou-se – figura novamente das luzes, capengando, foi sentar-se na calçada de uma loja. Estava desanimado, bambo; o entusiasmo arrefecera. Cambada de que? Repetia a pergunta sem saber o que procurava. Olhou de perto a cara da mulher, não conseguiu distinguir-lhe os traços. Sinha Vitória perceberia a atrapalhação dele? opostas, expunha-se e Havia ali outros matutos conversando, e Fabiano enjoou-os. Se não estivesse tão ansiado, arrotando, suando, brigaria com eles. A interrogação que lhe aperreava o espírito confuso juntou-se a ideia de que aquelas pessoas não tinham o direito de sentar-se na calçada. Queria que. o deixassem com a mulher, os filhos e a cachorrinha. Cambada de quê? Soltou um grito áspero, bateu palmas: – Cambada de cachorros.

Descoberta a expressão teimosa, alegrou-se. Cambada de cachorros.

Evidentemente os matutos como ele não passavam de cachorros. Procurou com as mãos a mulher e os filhos, certificou-se de que eles estavam acomodados. Uma contração violenta no pescoço entortou-lhe o rosto, a boca encheu-se novamente de saliva. Pôs-se a cuspir. Serenou, respirou com força, passou os dedos por um fio de baba que lhe pendia de beiço. Estava era tonto, com uma zoada infeliz nos ouvidos. Ia jurar que mostrara valentia e correra perigo. Achava ao mesmo tempo que havia cometido uma falta. Agora estava pesado e com sono. Enquanto andara fazendo espalhafato, a cabeça cheia de aguardente, desprezara as esfoladuras dos pés. Mas esfriava, e as botinas de vaqueta magoavam-nos em demasia. Arrancou-as, tirou as meias, libertou-se do colarinho, da gravata e do paletó, enrolou tudo, fez um travesseiro, estirou-se no cimento, puxou para os olhos o chapéu de baeta.

E adormeceu, com o estômago embrulhado. Sinha Vitória achava-se em dificuldade: torcia-se para satisfazer uma precisão e não sabia como se desembaraçar. Podia esconder-se no fundo do quadro, por detrás das barracas, para lá dos tamboretes das doceiras. Ergueu-se meio decidida, tornou a acocorar-se. Abandonar os meninos, o marido naquele estado? Apertou-se e observou os quatro cantos com desespero, que a precisão era grande. Escapuliu-se disfarçadamente, chegou a esquina da loja, onde havia um magote de mulheres agachadas. E, olhando as frontarias das casas e as lanternas de papel, molhou o chão e os pés das outras matutas. Arrastou-se para junto da família, tirou do bolso o cachimbo de barro, atochou-o, acendeu-o, largou algumas baforadas longas de satisfação. Livre da necessidade, viu com interesse o formigueiro que circulava na praça, a mesa do leilão, as listas luminosas dos foguetes. Realmente a vida não era má. Pensou com um arrepio na seca, na viagem medonha que fizera em caminhos abrasados, vendo ossos e garranchos. Afastou a lembrança ruim, atentou naquelas belezas. O burburinho da multidão era doce, o realejo fanhoso dos cavalinhos não descansava. Para a vida ser boa, só faltava à Sinha Vitória uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Suspirou, pensando na cama de varas em que dormia. Ficou ali de cócoras, cachimbando, os olhos e os ouvidos muito abertos para não perder a festa. Os meninos trocavam impressões cochichando, aflitos com o desaparecimento da cachorra. Puxaram a manga da mãe. Que fim teria levado Baleia? Sinha Vitória levantou o braço num gesto mole e indicou vagamente dois pontos cardeais com o canudo do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde estaria a cachorrinha? Indiferentes à igreja, às lanternas de papel, aos bazares, às mesas de jogo e aos foguetes, só se importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha, andava por aí perdida aguentando pontapés.

De repente Baleia apareceu. Trepou-se na calçada, mergulhou entre as saias das mulheres, passou por cima de Fabiano e chegou-se aos amigos, manifestando com a língua e com o rabo um vivo contentamento. O menino mais velho agarrou-a. Estava segura. Tentaram explicar-lhe que tinham tido susto enorme por causa dela, mas Baleia não ligou importância à explicação. Achava é que perdiam tempo num lugar esquisito, cheio de odores desconhecidos. Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos.

A opinião dos meninos assemelhava-se à dela. Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada.

Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem.

Baleia cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia o focinho. A cidade se enchera de suores que a desconcertavam.

Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira, uma cama de verdade.

Fabiano roncava de papo para cima, as abas do chapéu cobrindo-lhe os olhos, o quengo sobre as botinas de vaqueta. Sonhava, agoniado, e Baleia percebia nele um cheiro que o tornava irreconhecível. Fabiano se agitava, soprando. M Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes reiúnas e ameaçavam-no com facões terríveis.
Graciliano Ramos, "Vidas Secas"

“Ficção de que começa alguma coisa!”

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento

Fernando Pessoa

O herói do conto

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, tem hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.

Seu pai, também Calisto, era cavaleiro fidalgo com filhamento, e décimo sexto varão dos Barbudas da Agra. Sua mãe, D. Basilissa Escolástica, procedia dos Silos, altas dignidades da Igreja, comendatários, sangue limpo, já bom sangue no tempo do Sr. rei D. Afonso I, fundador de Miranda.

Fez seus estudos de latinidade no seminário bracarense o filho único do morgado da Agra de Freimas, destinando‑se a doutoramento in utroque jure. Porém, como quer que o pai lhe falecesse, e a mãe contrariasse a projectada formatura, em razão de ficar sozinha no solar de Caçarelhos, Calisto, como bom filho, renunciou à carreira das letras, deu‑se ao governo do casal algum tanto, e muito à leitura de copiosa livraria, parte de seus avós paternos, e a maior dos doutores em cânones, cónegos, desembargadores do eclesiástico, catedráticos, chantres, arcediagos e bispos, parentela ilustríssima de sua mãe.

Casou o morgado, ao tocar pelos vinte anos, com sua segunda prima D. Teodora Barbuda de Figueiroa, morgada de Travanca, senhora de raro aviso, muito apontada em amanho de casa, ignorante mais que o necessário para ter juízo. Unidos os dois morgadios, ficou sendo a casa de Calisto a maior da comarca; e, com o rodar de dez anos, prosperou a olho, tendo grande parte neste incremento a parcimónia a que o morgado circunscreveu seus prazeres, e, por sobre isto, o génio cainho e apertado de D. Teodora. Remenda teu pano, chegar‑te‑á ao ano, dizia a morgada de Travanca; e, aferrada ao seu adágio predilecto, remendava sempre, e cerzia com perfeição justamente admirada entre a família, e falada como exemplo na área de quatro léguas, ou mais.

Enquanto ela recortava o fundilho ou apanhava a malha rota da peúga, o marido lia até noite velha, e adormecia sobre os infólios, e acordava a pedir contas à memória das riquezas confiadas.

Os livros de Calisto Elói eram cronicões, histórias eclesiásticas, biografias de varões preclaros, corografias, legislação antiga, forais, memórias da Academia Real da História Portuguesa, catálogos de reis, numismática, genealogias, anais, poemas de cunho velho, etc.

Respeito a idiomas estranhos, dos vivos conhecia o francês mui‑ to pela rama; porém, o latim falava‑o como língua própria, e interpretava correntemente o grego. Memória pronta, e cultivada com aturado e indigesto estudo, não podia sair‑se com menos de um erudito em história antiga, e repositório de notícias miúdas sobre factos e pessoas de Portugal.

Consultavam‑no os sábios transmontanos como juiz indeclinável em decifrar cipos e inscrições, em restabelecer épocas e sucessos controvertidos por autores contraditórios.

Sobre castas e linhagens, coisa que ele tirasse a limpo não dava pega a dúvida nenhuma. Ia ele desenterrar geração já sepultada há setecentos anos, e provar que, na era de 1201, D. Fuas Mendo casara com a filha de um mesteiral, e D. Dorzia se havia sujado casando mofinamente com um pajem da lança de seu irmão D. Paio Ramires.

Farpeados pela viperina língua dele, os fidalgos provincianos retaliavam quanto podiam a prosápia dos Benevides, propalando que naquela família se gerara um clérigo grande femeeiro, beberrão e lambaz, a quem o santo arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, uma vez, perguntara que nome havia; e, como quer, que o padre respondesse Onofre de Benevides, o arcebispo acudira dizendo: «Melhor vos acertara com o nome, segundo a vida que fazeis, quem vos chamara de Bene bibis e male vivis.» O remoque, talvez por ser de santo, era medianamente engraçado e pouco para afligir; assim mesmo Calisto Elói, à conta desta injúria dos fidalgos comarcãos, tanto lhes esgaravatou nas gerações, que descobriu radicalmente serem quase todas de má casta.

É supérfluo dizer‑se a qual doutrinação política pendia o ânimo do morgado da Agra de Freimas. Estava com a decisão das Cortes de Lamego. Fizera‑se nelas, e cuidava ter assistido, em 1145, àquele congresso mitológico, e ter conclamado com Gonçalo Mendes da Maia, e com Lourenço Viegas, o Espadeiro: Nos liberi sumus, rex noster liber est. Todavia, se assim fossem todos os doutrinários políticos, a gente apodreceria na mais refestelada paz e supina ignorância do andamento da humanidade.

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda queria que se venerasse o passado, a moral antiga como o monumento antigo, as leis de João das Regras e Martim de Océm, como o mosteiro da Batalha, as Ordenações Manuelinas como o convento dos Jerónimos. O mal que de aqui surdia ao género humano, a falar verdade, era nenhum. Este bom fidalgo, se lhe tirassem o sestro de esmiuçar desdouros nas gerações das famílias patrícias, era inofensiva criatura. Deste senão, a causa foi um chamado Livro‑Negro, que herdara de seu tio‑avô Marcos de Barbuda Tenazes de Lacerda Falcão, genealógico vaporoso, o qual gastara sessenta dos oitenta anos vividos a coligir borrões, travessias, mancebias, adultérios, coitos danados e incestos de muitas famílias, naquelas satânicas costaneiras, denominadas Livro‑Negro das Linhagens de Portugal.

Em suma, Calisto era legitimista quieto, calado, e incapaz de empecer a roda do progresso, contanto que o progresso não lhe entrasse em casa, nem o quisesse levar consigo.

Prova cabal de sua tolerância foi ele aceitar em 1840 a presidência municipal de Miranda. Na primeira sessão camarária falou de feitio e jeito, que os ouvintes cuidavam estar escutando um alcaide do século XV levantado do seu jazigo da catedral. Queria ele que se restaurassem as leis do foral dado a Miranda pelo monarca fundador. Este requerimento gelou de espanto os vereadores; destes, os que puderam degelar‑se riram na cara do seu presidente, e emendaram a galhofa dizendo que a humanidade havia já caminhado sete séculos depois que Miranda tivera foral.

— Pois se caminhou, — replicou o presidente — não caminhou direita. Os homens são sempre os mesmos e quejandos; as leis de‑ vem ser sempre as mesmas.

— Mas… — retorquiu a oposição ilustrada — o regímen municipal expirou em 1211, Sr. presidente! V. Ex.a não ignora que há hoje um código de leis comuns de todo o território português, e que desde Afonso II se estatuíram leis gerais. V. Ex.a decerto leu isto…

— Li — atalhou Calisto de Barbuda — mas reprovo!

— Pois seria útil e racional que V. Ex.a aprovasse.

— Útil a quem? — perguntou o presidente.

— Ao município — responderam.

— Aprovem os senhores vereadores, e façam obra por essas leis, que eu despeço‑me disto. Tenho o governo de minha casa, onde sou rei e governo, segundo os forais da antiga honra portuguesa.

Disse; saiu; e nunca mais voltou à Câmara.
Camilo Castelo Branco, "A Queda de um Anjo"

Os tesouros da maior biblioteca de mentiras do mundo

"Conte-me uma mentira", pedi a Earle Havens assim que começamos nossa conversa.

Ele ficou incomodado, mas não porque se sentisse insultado. Afinal, ele é um reconhecido especialista em falácias.

Não só ele dá aulas sobre o tema na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, como também, na qualidade de curador de livros e manuscritos raros do Centro Stern para a História do Livro da universidade, ele supervisiona a Bibliotheca Fictiva de Falsificações Literárias e Históricas.

A biblioteca é uma extensa, excêntrica e excepcional coleção de enganos, falsificações e fraudes escritas que acompanharam nossa história cultural, desde relatos mentirosos de viagens da Grécia Antiga até extraterrestres maias inventados nos anos 1960.

A razão do desconforto de Havens não era por pedir que ele me contasse mentiras, mas sim por pedir apenas uma: "É como me perguntar qual é o meu filho favorito!".

Mas, claro, não era só uma, era uma para começar.

Que tal a dos olhos de testemunhas da queda de Troia?

"Ah, sim, essa é muito antiga, de Dictis Cretense e Dares Frígio."

Pintura de Rafael no Palácio Vaticano retrata a Doação de Constantino, um dos documentos falsos mais famosos.

"O problema era que, por muito tempo, tudo o que se sabia sobre a batalha com Troia era o que Homero contava, e as pessoas queriam saber mais sobre como foi e o que aconteceu com aquelas pessoas que de repente desapareciam do poema.

"Houve coisas que Homero omitiu. Então, existe esse desejo, esse impulso humano de preencher as lacunas."

Isso é algo, acrescenta Havens, que também foi feito para preencher vazios deixados na Bíblia, "em particular com o Novo Testamento".

Uma das coisas que o Novo Testamento não conta é como era Jesus Cristo fisicamente.

"Na Idade Média, decidiram remediar isso criando uma carta falsa de um cônsul romano, governador da Judeia, Públio Lêntulo, ao Senado de Roma, descrevendo Jesus."

"É de estatura alta, mas sem excesso; garboso; (...) seus cabelos são da cor de avelã madura e lisos, ou seja, retos, quase até as orelhas, mas a partir destas um pouco encaracolados, (...) e soltos partidos ao meio da cabeça, segundo o costume dos nazarenos."

"A testa é plana e muito serena, sem a menor ruga no rosto, agraciada por um agradável rubor. Em seu nariz e boca não há imperfeição alguma."

"Tem a barba cheia, mas não longa, (...) os olhos cinzentos...".

Havens lembra que foi "dessa descrição em uma falsificação medieval que provêm incontáveis representações de Jesus, e há mais de 250 manuscritos medievais e renascentistas que possuem cópias manuscritas dessa carta".

Outra dessas lacunas tem a ver com o dia de descanso, comenta o especialista.

"Como se explica que, quando os apóstolos, que eram judeus, se converteram ao cristianismo, de repente o dia de descanso não era o sábado, mas o domingo?

"Pois com uma carta que Jesus decidiu enviar do céu... brilhante!"

"Ele a colocou debaixo de uma rocha com uma pequena inscrição que essencialmente dizia: Levante-me."

"Todos os que passavam por esta rocha na Terra Santa tentavam levantá-la em vão, até que um menino livre de pecado conseguiu."

A celestial carta claramente diz: "Deves terminar a tua labuta todos os sábados à tarde, às 6 em ponto, hora em que se fazem as preparações para o dia de descanso".

Havens conta que "é, além disso, a primeira corrente de carta que conheço na história do mundo, pois diz que quem a reproduzir será abençoado e livre de tempestades e doenças, mas quem a destruir será condenado e atormentado por demônios".

Entusiasmado, ele já nos havia contado três dos milhares de exemplos que guarda em sua memória.

"Adoro falar sobre este assunto, porque posso falar sobre algo que aconteceu há 3 mil anos ou há 400 anos, e posso falar sobre algo que aconteceu ontem."

Com a Bibliotheca Fictiva, "confirmamos que estivemos marinando em falsidades desde a origem da cultura. Isso não é apenas um resultado distópico da tecnologia."

A Universidade Johns Hopkins adquiriu a coleção em 2011 e, naquela época, "o termo 'notícias falsas' nem sequer era conhecido, e tive que explicar ao decano das bibliotecas por que precisávamos gastar uma enorme quantidade de dinheiro em um monte de coisas falsas".

Convencer a universidade a investir em várias centenas de manuscritos, cartas, poemas, iluminuras, documentos, anotações que afirmavam ser o que não eram foi um desafio.

"A principal coisa que eu disse, e mantenho hoje, foi que somos uma instituição de pesquisa que busca a verdade, e a melhor maneira de entender o que é [a verdade] não é apenas olhando para coisas que são absolutamente reais, mas também compreendendo aquelas que não são: como as pessoas as concebem, como essas ideias são absorvidas pela cultura, como podem até moldar nossas ideias, nossas expectativas, gerar preconceitos e nos guiar em nossas vidas.

"Também salientei que todos nós temos nossos preconceitos; ninguém é completamente objetivo. Então, por que não ter uma coleção de pesquisa que nos ensine sobre tudo isso e com a qual possamos ensinar?"

Os donos da peculiar biblioteca eram Arthur e Janet Freeman, que vinham colecionando mentiras fascinantes desde 1961, quando Arthur estudava teatro elisabetano e se deparou com John Payne Collier, um escritor e pesquisador do século 19.

Collier era uma combinação venenosa de duas coisas: um respeitado erudito e editor de William Shakespeare e um prolífico e descarado falsificador literário.

Desde então, e durante 50 anos, os Freeman se dedicaram a adicionar fraudes à sua coleção, mas chegou o momento em que quiseram que pertencesse a uma biblioteca de pesquisa.

Até então, já tinham joias como poesia supostamente escrita por Martinho Lutero, que não se destacou precisamente por ser poeta, e relatos da Papisa Joana, uma mulher muito culta do século 9 que, disfarçada de homem, foi eleita Papa, apenas para ser descoberta quando deu à luz repentinamente no meio de uma procissão em Roma.

Esse mito só foi firmemente desacreditado no século 17.

Entre as falsificações, destaca Havens, "o documento mais famoso é provavelmente a Doação de Constantino, no qual o imperador Constantino (285-337 d.C.) doava vastos territórios do Império Romano ao Papa Silvestre 1º.

"No Palácio do Vaticano, conserva-se um afresco que a representa como um fato real."

O documento "foi usado para justificar as guerras nas quais César Bórgia e outros tentaram se apoderar de partes da Romanha na Itália, e para engrandecer a riqueza e o poder do Papa."

No entanto, não havia sido criado no século 3, mas sim no 8.

Isso só foi demonstrado no século 15, quando "um brilhante erudito chamado Lorenzo Valla desacreditou totalmente o texto por muitos motivos, mas sobretudo porque utilizava palavras que não existiam na época em que afirmava ter sido escrito".

E aqui, algo a destacar: a biblioteca não guarda apenas falsidades, mas também os escritos daqueles que as revelaram como tais.

Esse foi outro dos argumentos de que Havens se valeu para convencer a universidade: "Eu disse ao decano que podíamos aprender muito com a forma como as pessoas demoliram coisas falsas."

Para Havens, a Bibliotheca Fictiva é "um registro de uma erudição fabulosa": não só aqueles que refutaram as mentiras, mas também muitos dos falsificadores eram pessoas "inteligentes, criativas e até engenhosas".

"À medida que se estuda esta coleção, percebe-se que certos aspectos se repetem, como se os mentirosos aprendessem uns com os outros", diz.

"Um, por exemplo, é a economia."

"Se você vai criar uma mentira, a primeira coisa é gerar interesse e inspirar uma suspensão voluntária da descrença por parte do leitor. Não é necessário que ele acredite que é verdade, você só precisa fazê-lo crer que é possível, nem sequer provável, apenas possível", diz Havens.

"E você não deve dar às pessoas muita informação, porque se acidentalmente der demais, você pode se enforcar com sua própria corda."

"Outro truque é encontrar outra voz ou outra figura que ateste sua afirmação, e incluí-los em sua obra falsa.

"Assim, você vai notando padrões, e também distintas categorias de falácias e notícias falsas", assinala o especialista.

Uma dessas categorias é a que Havens chama de "mitologia patriótica".

"Vimos um pouco disso em todo o mundo e ao longo da história."

Um exemplo ocorreu no Renascimento, quando os italianos eram os reis, mas, com o ressurgimento da cultura greco-romana, havia algo que os incomodava: o fato de terem chegado muito depois dos gregos.

"Existia a ideia de que a cultura mais antiga era a mais sofisticada, influente e com mais autoridade."

O frade dominicano Giovanni Nanni, vulgo Annius de Viterbo (1437-1502), "decidiu 'descobrir' uma série de textos antigos" que corrigiam a história.

Suas fraudes foram numerosas, variadas e, em alguns casos, extremamente elaboradas, assinala a Universidade de Oxford.

Em uma ocasião, organizou uma escavação arqueológica na qual desenterrou, para espanto dos presentes, uma fantástica coleção de estátuas mitológicas, cada peça colocada com esmero para alcançar um efeito dramático.

Tudo para "demonstrar que os italianos possuíam a linhagem mais antiga, e não 'os gregos mentirosos, que se achavam inventores de tudo'", conta Havens.

Sua obra mais importante, o Antiquitatum Variarum, publicada pela primeira vez em 1498, e com grande sucesso editorial nos séculos 16 e 17, contém o que ele afirmava serem textos de autores gregos e latinos... nenhum autêntico.

No entanto, a obra "teve uma enorme influência no pensamento dos europeus entre 1498 e aproximadamente 1750" (Walter Stephens, 1979), e "perverteu as primeiras histórias de todos os países da Europa" (Anthony Grafton, 1990).

Desde que Johns Hopkins adquiriu a Bibliotheca Fictiva, "com quase 2.000 objetos, fizemos centenas de adições adicionais, tornando-a uma 'biblioteca viva'", conta Havens.

Há desde mentiras leves, como a de um romance que talvez você conheça, cujo título completo é:

"A vida e incríveis aventuras de Robinson Crusoé, de York, marinheiro, que viveu vinte e oito anos completamente sozinho numa ilha desabitada nas costas da América, perto da foz do grande rio Orinoco; tendo sido levado à costa após um naufrágio, no qual todos os homens morreram, menos ele. Com uma explicação de como, no final, ele foi incomumente libertado por piratas. Escrito por ele mesmo."Essas últimas 4 palavras geraram um debate sobre se a obra deveria fazer parte da biblioteca, pois é obra do escritor Daniel Defoe.

Para Havens, "não passou de uma afetação literária".

Com as histórias do Barão de Munchausen, em contraste, não houve discussão, pois são baseadas em uma pessoa real, e suas ridículas aventuras foram apresentadas como se fossem autobiográficas em vez de uma obra de ficção de Rudolph Erich Raspe.

Mas ainda estamos nos tons de branco, e quando se trata de mentiras há toda uma gama de cinzas, até chegar a algumas perigosamente escuras.

"Existem alguns enganos muito perniciosos", diz.

"Provavelmente o mais difícil de tratar é o Protocolos dos Sábios de Sião, essencialmente um documento de teoria da conspiração profundamente antissemita que afirmava que os judeus estavam tentando dominar o mundo."

"Foi usado pelos nazistas para justificar o genocídio e continua sendo muito relevante hoje em dia", afirma.

"Esse é um exemplo de um engano horrível, realmente maligno em todos os sentidos."

Desde que Johns Hopkins adquiriu a coleção, Havens e outros professores têm usado seus milhares de exemplos para ensinar aos estudantes sobre alfabetização midiática e desinformação.

Eles ajudam a aprender a detectar pistas e a ser mais cético e mais crítico com tudo o que se cruza em seu caminho, mesmo que venha de uma fonte aparentemente confiável.

Mostram que, além de se perguntar se uma mensagem é verdadeira, também vale a pena refletir sobre por que ela chegou às suas redes sociais, o que ela quer incentivar, explorar, reforçar em você, a quem interessa que você consuma essa informação.

"Recentemente, publicamos um catálogo pela Quaritch em Londres e, além disso, todos os títulos estão disponíveis online, então esta é possivelmente a coleção mais documentada e acessível do mundo."

quinta-feira, dezembro 11

Bom lanche!

 


Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
Mario Quintana

A Legião Estrangeira

Se me perguntassem sobre Ofélia e seus pais, teria respondido com o decoro da honestidade: mal os conheci. Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal me conheço — e para cada cara de jurado diria com o mesmo límpido olhar de quem se hipnotizou para a obediência: mal vos conheço. Mas às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade para o delicado abismo da desordem.


Estou tentando falar sobre aquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim, e de quem me ficara apenas uma imagem esverdeada pela distância. Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em casa um pinto. Veio trazido por mão que queria ter o gosto de me dar coisa nascida. Ao desengradarmos o pinto, sua graça pegou-nos em flagrante. Amanhã é Natal, mas o momento de silêncio que espero o ano inteiro veio um dia antes de Cristo nascer. Coisa piando por si própria desperta a suavíssima curiosidade que junto de uma manjedoura é adoração. Ora, disse meu marido, e essa agora. Sentira-se grande demais. Sujos, de boca aberta, os meninos se aproximaram. Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. O pinto, esse piava. Mas Natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorríamos desamparados, curiosos.

Mas sentimentos são água de um instante. Em breve — como a mesma água já é outra quando o sol a deixa muito leve, e já outra quando se enerva tentando morder uma pedra, e outra ainda no pé que mergulha — em breve já não tínhamos no rosto apenas aura e iluminação. Em torno do pinto aflito, estávamos bons e ansiosos. A meu marido, a bondade deixa ríspido e severo, ao que já nos habituamos; ele se crucifica um pouco. Nos meninos, que são mais graves, a bondade é um ardor. A mim, a bondade me intimida. Daí a pouco a mesma água era outra, e olhávamos contrafeitos, enredados na falta de habilidade de sermos bons. E, a água já outra, pouco a pouco tínhamos no rosto a responsabilidade de uma aspiração, o coração pesado de um amor que já não era mais livre. Também nos desajeitava o medo que o pinto tinha de nós; ali estávamos, e nenhum merecia comparecer a um pinto; a cada piar, ele nos espargia para fora. A cada piar, reduzia-nos a não fazer nada. A constância de seu pavor acusava-nos de uma alegria leviana que a essa hora nem alegria mais era, era amolação. Passara o instante do pinto, e ele, cada vez mais urgente, expulsava-nos sem nos largar. Nós, os adultos, já teríamos encerrado o sentimento. Mas nos meninos havia uma indignação silenciosa, e a acusação deles é que nada fazíamos pelo pinto ou pela humanidade. A nós, pai e mãe, o piar cada vez mais ininterrupto já nos levara a uma resignação constrangida: as coisas são assim mesmo. Só que nunca tínhamos contado isso aos meninos, tínhamos vergonha; e adiávamos indefinidamente o momento de chamá-los e falar claro que as coisas são assim. Cada vez ficava mais difícil, o silêncio crescia, e eles empurravam um pouco o afã com que queríamos lhes dar, em troca, amor. Se nunca havíamos conversado sobre as coisas, muito mais tivemos naquele instante que esconder deles o sorriso que terminou nos vindo com o piar desesperado daquele bico, um sorriso como se a nós coubesse abençoar o fato de as coisas serem assim mesmo, e tivéssemos acabado de abençoá-las.

O pinto, esse piava. Sobre a mesa envernizada ele não ousava um passo, um movimento, ele piava para dentro. Eu não sabia sequer onde cabia tanto terror numa coisa que era só penas. Penas encobrindo o quê? meia dúzia de ossos que se haviam reunido fracos para o quê? para o piar de um terror. Em silêncio, em respeito à impossibilidade de nos compreendermos, em respeito à revolta dos meninos contra nós, em silêncio olhávamos sem muita paciência. Era impossível dar-lhe a palavra asseguradora que o fizesse não ter medo, consolar coisa que por ter nascido se espanta. Como prometer-lhe o hábito? Pai e mãe, sabíamos quão breve seria a vida do pinto. Também este sabia, do modo como as coisas vivas sabem: através do susto profundo.

E enquanto isso, o pinto cheio de graça, coisa breve e amarela. Eu queria que também ele sentisse a graça de sua vida, assim como já pediram de nós, ele que era a alegria dos outros, não a própria. Que sentisse que era gratuito, nem sequer necessário — um dos pintos tem que ser inútil — só nascera para a glória de Deus, então fosse a alegria dos homens. Mas era amar o nosso amor querer que o pinto fosse feliz somente porque o amávamos. Eu sabia também que só mãe resolve o nascimento, e o nosso era amor de quem se compraz em amar: eu me revolvia na graça de me ser dado amar, sinos, sinos repicavam porque sei adorar. Mas o pinto tremia, coisa de terror, não de beleza.

O menino menor não suportou mais:

— Você quer ser a mãe dele?

Eu disse que sim, em sobressalto. Eu era a enviada junto àquela coisa que não compreendia a minha única linguagem: eu estava amando sem ser amada. A missão era falível, e os olhos de quatro meninos aguardavam com a intransigência da esperança o meu primeiro gesto de amor eficaz. Recuei um pouco, sorrindo toda solitária, olhei para minha família, queria que eles sorrissem. Um homem e quatro meninos me fitavam, incrédulos e confiantes. Eu era a mulher da casa, o celeiro. Por que a impassibilidade dos cinco, não entendi. Quantas vezes teria eu falhado para que, na minha hora de timidez, eles me olhassem. Tentei isolar-me do desafio dos cinco homens para também eu esperar de mim e lembrar-me de como é o amor. Abri a boca, ia dizer-lhes a verdade: não sei como.

Mas se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o filho. E dissesse: cure meu filho. Eu diria: como é que se faz? Ela responderia: cure meu filho. Eu diria: também não sei. Ela responderia: cure meu filho. Então — então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é de noite — então estendo a mão e salvo uma criança. Porque é de noite, porque estou sozinha na noite de outra pessoa, porque este silêncio é muito grande para mim, porque tenho duas mãos para sacrificar a melhor delas e porque não tenho escolha.

Então estendi a mão e peguei o pinto.

Foi nesse instante que revi Ofélia. E nesse instante lembrei-me de que fora a testemunha de uma menina. Mais tarde lembrei-me de como a vizinha, mãe de Ofélia, era trigueira como uma hindu. Tinha olheiras arroxeadas que a embelezavam muito e davam-lhe um ar fatigado que fazia os homens a olharem uma segunda vez. Um dia, no banco da praça, enquanto as crianças brincavam, ela me dissera com aquela sua cabeça obstinada de quem olha para o deserto: "Sempre quis tirar um curso de enfeitar bolos". Lembrei-me de que o marido — trigueiro também, como se se tivessem escolhido pela secura da cor — queria subir na vida através de seu ramo de negócios: gerência de hotéis ou dono mesmo, nunca entendi bem. O que lhe dava uma dura polidez. Quando éramos forçados no elevador a contato mais prolongado, ele aceitava a troca de palavras num tom de arrogância que trazia de lutas maiores. Até chegarmos ao décimo andar, a humildade a que sua frieza me forçara já o amansara um pouco; talvez chegasse em casa mais bem servido. Quanto à mãe de Ofélia, ela temia que à força de morarmos no mesmo andar houvesse intimidade e, sem saber que também eu me resguardava, evitava-me. A única intimidade fora a do banco do jardim, onde, com olheiras e boca fina, falara sobre enfeitar bolos. Eu não soubera o que retrucar e terminara dizendo, para que soubesse que eu gostava dela, que o curso dos bolos me agradaria. Esse único momento mútuo afastara-nos ainda mais, por receio de um abuso de compreensão. A mãe de Ofélia chegara mesmo a ser grosseira no elevador: no dia seguinte eu estava com um dos meninos pela mão, o elevador descia devagar, e eu, opressa pelo silêncio que, à outra, fortificava — dissera num tom de agrado que no mesmo instante também a mim repugnara:

— Estamos indo para a casa da avó dele. E ela, para meu espanto:

— Não perguntei nada, nunca me meto na vida dos vizinhos.

— Ora, disse eu baixo.

O que, ali mesmo no elevador, me fizera pensar que eu estava pagando por ter sido sua confidente de um minuto no banco do jardim. O que, por sua vez, me fizera pensar que ela talvez julgasse me ter confiado mais do que na realidade confiara. O que, por sua vez, me fizera pensar se na verdade ela não me dissera mais do que nós duas percebêramos. Enquanto o elevador continuava a descer e parar, eu reconstituíra seu ar insistente e sonhador no banco do jardim — e olhara com olhos novos para a beleza altaneira da mãe de Ofélia. "Não contarei a ninguém que você quer enfeitar bolos", pensei olhando-a rapidamente.

O pai agressivo, a mãe se guardando. Família soberba. Tratavam-me como se eu já morasse no futuro hotel deles e ofendesse-os com o pagamento que exigiam. Sobretudo tratavam-me como se nem eu acreditasse, nem eles pudessem provar quem eles eram. E quem eram eles? indagava-me às vezes. Por que a bofetada que estava impressa no rosto deles, por que a dinastia exilada? E tanto não me perdoavam que eu agia não perdoada: se os encontrava na rua, fora do setor que me era circunscrito, sobressaltava-me, surpreendida em delito: recuava para eles passarem, dava-lhes a vez — os três trigueiros e bem-vestidos passavam como se fossem à missa, aquela família que vivia sob o signo de um orgulho ou de um martírio oculto, arroxeados como flores da Paixão.

Família antiga, aquela.

Mas o contato se fez através da filha. Era uma menina belíssima, com longos cachos duros, Ofélia, com olheiras iguais às da mãe, as mesmas gengivas um pouco roxas, a mesma boca fina de quem se cortou. Mas essa, a boca, falava. Deu para aparecer em casa. Tocava a campainha, eu abria a portinhola, não via nada, ouvia uma voz decidida:

— Sou eu, Ofélia Maria dos Santos Aguiar.

Desanimada, eu abria a porta. Ofélia entrava. A visita era para mim, meus dois meninos daquele tempo eram pequenos demais para sua sabedoria pausada. Eu era grande e ocupada, mas era para mim a visita: com uma atenção toda interior, como se para tudo houvesse um tempo, levantava com cuidado a saia de babados, sentava-se, ajeitava os babados — e só então me olhava. Eu, que então copiava o arquivo do escritório, eu trabalhava e ouvia. Ofélia, ela dava-me conselhos. Tinha opinião formada a respeito de tudo. Tudo o que eu fazia era um pouco errado, na sua opinião. Dizia "na minha opinião" em tom ressentido, como se eu lhe devesse ter pedido conselhos e, já que eu não pedia, ela dava. Com seus oito anos altivos e bem vividos, dizia que na sua opinião eu não criava bem os meninos; pois meninos quando se dá a mão querem subir na cabeça. Banana não se mistura com leite. Mata. Mas é claro a senhora faz o que quiser; cada um sabe de si. Não era mais hora de estar de robe; sua mãe mudava de roupa logo que saía da cama, mas cada um termina levando a vida que quer.

Se eu explicava que era porque ainda não tomara banho, Ofélia ficava quieta, olhando-me atenta. Com alguma suavidade, então, com alguma paciência, acrescentava que não era hora de ainda não ter tomado banho. Nunca era minha a última palavra. Que última palavra poderia eu dar quando ela me dizia: empada de legume não tem tampa. Uma tarde numa padaria vi-me inesperadamente diante da verdade inútil: lá estava sem tampa uma fila de empadas de legumes. "Mas eu lhe avisei", ouvi-a como se ela estivesse presente. Com seus cachos e babados, com sua delicadeza firme, era uma visitação na sala ainda desarrumada. O que valia é que dizia muita tolice também, o que, no meu desalento, me fazia sorrir desesperada.

A pior parte da visitação era a do silêncio. Eu erguia os olhos da máquina, e não saberia há quanto tempo Ofélia me olhava em silêncio. O que em mim pode atrair essa menina? exasperava-me eu. Uma vez, depois de seu longo silêncio, dissera-me tranquila: a senhora é esquisita. E eu, atingida em cheio no rosto sem cobertura — logo no rosto que sendo o nosso avesso é coisa tão sensível — eu, atingida em cheio, pensara com raiva: pois vai ver que é esse esquisito mesmo que você procura. Ela que estava toda coberta, e tinha mãe coberta, e pai coberto.

Eu ainda preferia, pois, conselho e crítica. Já menos tolerável era o seu hábito de usar a palavra portanto com que ligava as frases numa concatenação que não falhava. Dissera-me que eu comprara legumes demais na feira — portanto — não iam caber na geladeira pequena e — portanto — murchariam antes da próxima feira. Dias depois eu olhava os legumes murchos. Portanto, sim. Outra vez vira menos legumes espalhados pela mesa da cozinha, eu que disfarçadamente obedecera. Ofélia olhara, olhara. Parecia prestes a não dizer nada. Eu esperava de pé, agressiva, muda. Ofélia dissera sem nenhuma ênfase:

— É pouco até a feira que vem.

Os legumes acabaram pelo meio da semana. Como é que ela sabe? perguntava-me eu curiosa. "Portanto" seria a resposta talvez. Por que eu nunca, nunca sabia? Por que sabia ela de tudo, por que era a terra tão familiar a ela, e eu sem cobertura? Portanto? Portanto.

Uma vez Ofélia errou. Geografia — disse sentada defronte a mim com os dedos cruzados no colo — é um modo de estudar. Não chegava a ser erro, era mais um leve estrabismo de pensamento — mas para mim teve a graça de uma queda, e antes que o instante passasse, eu por dentro lhe disse: é assim mesmo que se faz, isso! vá devagar assim, e um dia vai ser mais fácil ou mais difícil para você, mas é assim, vá errando, bem, bem devagar.

Uma manhã, no meio de sua conversa, avisou-me autoritária: "Vou em casa ver uma coisa mas volto logo." Arrisquei: "Se você está muito ocupada, não precisa voltar." Ofélia olhou-me muda, inquisitiva. "Existe uma menina muito antipática", pensei bem claro para que ela visse a frase toda exposta no meu rosto. Ela sustentou o olhar. O olhar onde — com surpresa e desolação — vi fidelidade, paciente confiança em mim e o silêncio de quem nunca falou. Quando é que eu lhe jogara um osso para que ela me seguisse muda pelo resto da vida?

Desviei os olhos. Ela suspirou tranquila. E disse com maior decisão ainda: "Volto logo." Que é que ela quer? — agitei-me — por que atraio pessoas que nem sequer gostam de mim?

Uma vez, quando Ofélia estava sentada, tocaram a campainha. Fui abrir e deparei com a mãe de Ofélia.

Vinha protetora, exigente:

— Por acaso Ofélia Maria está aí?

— Está, escusei-me como se a tivesse raptado.

— Não faça mais isso, disse ela para Ofélia num tom que me era dirigido; depois voltou-se para mim e, subitamente ofendida: — Desculpe o incômodo.

— Nem pense nisso, essa menina é tão inteligente.

A mãe olhou-me em leve surpresa — mas a suspeita passou-lhe pelos olhos. E neles eu li: que é que você quer dela?

— Já proibi Ofélia Maria de incomodar a senhora, disse agora em desconfiança aberta. E segurando firme a mão da menina para levá-la, parecia defendê-la contra mim. Com uma sensação de decadência, espiei pela portinhola entreaberta sem ruídos: lá iam as duas pelo corredor que levava ao apartamento delas, a mãe abrigando a filha com murmúrios de repreensão amorosa, a filha impassível a fremir cachos e babados. Ao fechar a portinhola percebi que ainda não mudara de roupa e, portanto, assim fora vista pela mãe que mudava de roupa ao sair da cama. Pensei com alguma desenvoltura: bem, agora a mãe me despreza, portanto estou livre de a menina voltar.

Mas voltava, sim. Eu era atraente demais para aquela criança. Tinha defeitos bastante para seus conselhos, era terreno para o desenvolvimento de sua severidade, já me tornara o domínio daquela minha escrava: ela voltava, sim, levantava os babados, sentava-se.

Por essa ocasião, sendo perto da Páscoa, a feira estava cheia de pintos, e eu trouxe um para os meninos.

Brincamos, depois ele ficou pela cozinha, os meninos pela rua. Mais tarde Ofélia aparecia para a visita. Eu batia à máquina, de vez em quando aquiescia distraída. A voz igual da menina, voz de quem fala de cor, me entontecia um pouco, entrava por entre as palavras escritas; ela dizia, ela dizia.

Foi quando me pareceu que de repente tudo parara. Sentindo falta do suplício, olhei-a enevoada. Ofélia Maria estava de cabeça a prumo, com os cachos inteiramente imobilizados.

— Que é isso, disse.

— Isso o quê?

— Isso! disse inflexível.

— Isso?

Ficaríamos indefinidamente numa roda de "isso?" e "isso!", não fosse a força excepcional daquela criança, que, sem uma palavra, apenas com a extrema autoridade do olhar, me obrigasse a ouvir o que ela própria ouvia. No silêncio da atenção a que ela me forçara, ouvi finalmente o fraco piar do pinto na cozinha.

— É o pinto.

— Pinto? disse desconfiadíssima.

— Comprei um pinto, respondi resignada.

— Pinto! repetiu como se eu a tivesse insultado.

— Pinto.

E nisso ficaríamos. Não fosse certa coisa que vi e que antes nunca vira.

O que era? Mas, o que fosse, não estava mais ali. Um pinto faiscara um segundo em seus olhos e neles submergira para nunca ter existido. E a sombra se fizera. Uma sombra profunda cobrindo a terra. Do instante em que involuntariamente sua boca estremecendo quase pensara "eu também quero", desse instante a escuridão se adensara no fundo dos olhos num desejo retrátil que, se tocassem, mais se fecharia como folha de dormideira. E que recuava diante do impossível, o impossível que se aproximara e, em tentação, fora quase dela: o escuro dos olhos vacilou como um ouro. Uma astúcia passou-lhe então pelo rosto — se eu não estivesse ali, por astúcia, ela roubaria qualquer coisa. Nos olhos que pestanejaram à dissimulada sagacidade, nos olhos a grande tendência à rapina. Olhou-me rápida, e era a inveja, você tem tudo, e a censura, porque não somos a mesma e eu terei um pinto, e a cobiça — ela me queria para ela. Devagar fui me reclinando no espaldar da cadeira, sua inveja que desnudava minha pobreza, e deixava minha pobreza pensativa; não estivesse eu ali, e ela roubava minha pobreza também; ela queria tudo. Depois que o tremor da cobiça passou, o escuro dos olhos sofreu todo: não era somente a um rosto sem cobertura que eu a expunha, agora eu a expusera ao melhor do mundo: a um pinto. Sem me verem, seus olhos quentes me fitavam numa abstração intensa que se punha em íntimo contato com minha intimidade. Alguma coisa acontecia que eu não conseguia entender a olho nu. E de novo o desejo voltou. Dessa vez os olhos se angustiaram como se nada pudessem fazer com o resto do corpo que se desprendia independente. E mais se alargavam, espantados com o esforço físico da decomposição que dentro dela se fazia. A boca delicada ficou um pouco infantil, de um roxo pisado. Olhou para o teto — as olheiras davam-lhe um ar de martírio supremo. Sem me mexer, eu a olhava. Eu sabia de grande incidência de mortalidade infantil. Nela a grande pergunta me envolvia: vale a pena? Não sei, disse-lhe minha quietude cada vez maior, mas é assim. Ali, diante de meu silêncio, ela estava se dando ao processo, e se me perguntava a grande pergunta, tinha que ficar sem resposta. Tinha que se dar — por nada. Teria que ser. E por nada. Ela se agarrava em si, não querendo. Mas eu esperava. Eu sabia que nós somos aquilo que tem de acontecer. Eu só podia servir-lhe de silêncio. E, deslumbrada de desentendimento, ouvia bater dentro de mim um coração que não era o meu. Diante de meus olhos fascinados, ali diante de mim, como um ectoplasma, ela estava se transformando em criança.

Não sem dor. Em silêncio eu via a dor de sua alegria difícil. A lenta cólica de um caracol. Ela passou devagar a língua pelos lábios finos. (Me ajuda, disse seu corpo na bipartição penosa. Estou ajudando, respondeu minha imobilidade.) A agonia lenta. Ela estava engrossando toda, a deformar-se com lentidão. Por momentos os olhos tornavam-se puros cílios, numa avidez de ovo. E a boca de uma fome trêmula. Quase sorria então, como se estendida numa mesa de operação dissesse que não estava doendo tanto. Ela não me perdia de vista: havia marcas de pés que ela não via, por ali alguém já tinha andado, e ela adivinhava que eu tinha andado muito. Mais e mais se deformava, quase idêntica a si mesma. Arrisco? deixo eu sentir?, perguntava-se nela. Sim, respondeu-se por mim.

E o meu primeiro sim embriagou-me. Sim, repetiu meu silêncio para o dela, sim. Como na hora de meu filho nascer eu lhe dissera: sim. Eu tinha a ousadia de dizer sim a Ofélia, eu que sabia que também se morre em criança sem ninguém perceber. Sim, repeti embriagada, porque o perigo maior não existe: quando se vai, se vai junto, você mesma sempre estará; isso, isso você levará consigo para o que for ser.

A agonia de seu nascimento. Até então eu nunca vira a coragem. A coragem de ser o outro que se é, a de nascer do próprio parto, e de largar no chão o corpo antigo. E sem lhe terem respondido se valia a pena. "Eu", tentava dizer seu corpo molhado pelas águas. Suas núpcias consigo mesma.

Ofélia perguntou devagar, com recato pelo que lhe acontecia:

— É um pinto?

Não olhei para ela.

— É um pinto, sim.

Da cozinha vinha o fraco piar. Ficamos em silêncio como se Jesus tivesse nascido. Ofélia respirava, respirava.

— Um pintinho? certificou-se em dúvida.

— Um pintinho, sim, disse eu guiando-a com cuidado para a vida.

— Ah, um pintinho, disse meditando.

— Um pintinho, disse eu sem brutalizá-la.

Já há alguns minutos eu me achava diante de uma criança. Fizera-se a metamorfose.

— Ele está na cozinha.

— Na cozinha? repetiu fazendo-se de desentendida.

— Na cozinha, repeti pela primeira vez autoritária, sem acrescentar mais nada.

— Ah, na cozinha, disse Ofélia muito fingida, e olhou para o teto.

Mas ela sofria. Com alguma vergonha notei afinal que estava me vingando. A outra sofria, fingia, olhava para o teto. A boca, as olheiras.

— Você pode ir pra cozinha brincar com o pintinho.

— Eu...? perguntou sonsa.

— Mas só se você quiser.

Sei que deveria ter mandado, para não expô-la à humilhação de querer tanto. Sei que não lhe deveria ter dado a escolha, e então ela teria a desculpa de que fora obrigada a obedecer. Mas naquele momento não era por vingança que eu lhe dava o tormento da liberdade. É que aquele passo, também aquele passo ela deveria dar sozinha. Sozinha e agora. Ela é que teria de ir à montanha. Por que — confundia-me eu — por que estou tentando soprar minha vida na sua boca roxa? por que estou lhe dando uma respiração? como ouso respirar dentro dela, se eu mesma... — somente para que ela ande, estou lhe dando os passos penosos? sopro-lhe minha vida só para que um dia, exausta, ela por um instante sinta como se a montanha tivesse caminhado até ela?

Teria eu o direito. Mas não tinha escolha. Era uma emergência como se os lábios da menina estivessem cada vez mais roxos.

— Só vá ver o pintinho se você quiser, repeti então com a extrema dureza de quem salva.

Ficamos nos defrontando, dessemelhantes, corpo separado de corpo; somente a hostilidade nos unia. Eu estava seca e inerte na cadeira para que a menina se fizesse por dentro de outro ser, firme para que ela lutasse dentro de mim; cada vez mais forte à medida que Ofélia precisasse me odiar e precisasse que eu resistisse ao sofrimento de seu ódio. Não posso viver isso por você — disse-lhe minha frieza. Sua luta se fazia cada vez mais próxima e em mim, como se aquele indivíduo que nascera extraordinariamente dotado de força estivesse bebendo de minha fraqueza. Ao me usar ela me machucava com sua força; ela me arranhava ao tentar agarrar-se às minhas paredes lisas. Afinal sua voz soou em baixa e lenta raiva:

— Pois vou ver o pinto na cozinha.

— Vá sim, disse eu devagar.

Retirou-se pausada, procurava manter a dignidade das costas.

Da cozinha voltou imediatamente — estava espantada, sem pudor, mostrando na mão o pinto, e numa perplexidade que me indagava toda com os olhos:

— É um pintinho! disse.

Olhou-o na mão que se estendia, olhou-me, olhou de novo a mão — e de súbito encheu-se de um nervoso e de uma preocupação que me envolveram automaticamente em nervoso e preocupação.

— Mas é um pintinho! disse, e imediatamente a censura passou-lhe pelos olhos como se eu não lhe tivesse dito quem piava.

Ri. Ofélia olhou-me, ultrajada. E de repente — de repente riu. Ambas então rimos, um pouco agudas.

Depois que rimos, Ofélia pôs o pinto no chão para andar. Se ele corria, ela ia atrás, parecia só deixá-lo autônomo para sentir saudade; mas se ele se encolhia, pressurosa ela o protegia, com pena de ele estar sob o seu domínio, "coitado dele, ele é meu"; e quando o segurava, era com mão torta pela delicadeza — era o amor, sim, o tortuoso amor. Ele é muito pequeno, portanto precisa é de muito trato, a gente não pode fazer carinho porque tem os perigos mesmo; não deixe pegarem nele à toa, a senhora faz o que quiser, mas milho é grande demais para o biquinho aberto dele; porque ele é molezinho, coitado, tão novo, portanto a senhora não pode deixar seus filhos fazerem carinho nele; só eu sei que carinho ele gosta; ele escorrega à toa, portanto chão de cozinha não é lugar para pintinho.

Há muito tempo eu tentava de novo bater à máquina procurando recuperar o tempo perdido e Ofélia me embalando, e aos poucos falando só para o pintinho, e amando de amor. Pela primeira vez me largara, ela não era mais eu. Olhei-a, toda de ouro que ela estava, e o pinto todo de ouro, e os dois zumbiam como roca e fuso. Também minha liberdade afinal, e sem ruptura; adeus, e eu sorria de saudade.

Muito depois percebi que era comigo que Ofélia falava.

— Acho — acho que vou botar ele na cozinha.

— Pois vá.

Não vi quando foi, não vi quando voltou. Em algum momento, por acaso e distraída, senti há quanto tempo havia silêncio. Olhei-a um instante. Estava sentada, de dedos cruzados no colo. Sem saber exatamente por quê, olhei-a uma segunda vez:

— Que é?

— Eu...?

— Está sentindo alguma coisa?

— Eu...?

— Quer ir no banheiro?

— Eu...?

Desisti, voltei à máquina. Algum tempo depois ouvi a voz:

— Vou ter que ir para casa.

— Está certo.

— Se a senhora deixar. Olhei-a em surpresa:

— Ora, se você quiser...

— Então, disse, então eu vou.

Foi andando devagar, cerrou a porta sem ruído. Fiquei olhando a porta fechada. Esquisita é você, pensei.

Voltei ao trabalho.

Mas não conseguia sair da mesma frase. Bem — pensei impaciente olhando o relógio — e agora o que é?

Fiquei me indagando sem gosto, procurando em mim mesma o que poderia estar me interrompendo. Quando já desistia, revi uma cara extremamente quieta: Ofélia. Menos que uma ideia passou-me então pela cabeça e, ao inesperado, esta se inclinou para ouvir melhor o que eu sentia. Devagar empurrei a máquina. Relutante fui afastando devagar as cadeiras do caminho. Até parar devagar à porta da cozinha. No chão estava o pinto morto. Ofélia! chamei num impulso pela menina fugida.

A uma distância infinita eu via o chão. Ofélia, tentei eu inutilmente atingir à distância o coração da menina calada. Oh, não se assuste muito! às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro! a gente não ama bem, ouça, repeti como se pudesse alcançá-la antes que, desistindo de servir ao verdadeiro, ela fosse altivamente servir ao nada. Eu que não me lembrara de lhe avisar que sem o medo havia o mundo. Mas juro que isso é a respiração. Eu estava muito cansada, sentei-me no banco da cozinha.

Onde agora estou, batendo devagar o bolo de amanhã. Sentada, como se durante todos esses anos eu tivesse com paciência esperado na cozinha. Embaixo da mesa, estremece o pinto de hoje. O amarelo é o mesmo, o bico é o mesmo. Como na Páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava.

Clarice Lispector

Crianças que leem nas férias têm melhor desempenho escolar

Embora os adultos geralmente agarrem a chance de atualizar a leitura durante as férias, muitas crianças e adolescentes, especialmente em famílias de baixa renda, que já leem pouco durante o ano, quase não leem nas férias de verão.

Pode até parecer natural, que o sol do verão nos chame incessantemente para as praias, banhos de sol, brincadeiras ao ar livre e que férias sejam encaradas como tempo livre. Mas ler pode não ser trabalho. Ler também pode ser divertimento. Fora isso o tempo seria livre do que? De pensamentos? De ideias? O preço de manter livros fechados é alto demais para que pensemos assim É preço alto para as crianças, para os pais e certamente para a sociedade. Ao fechar do verão no hemisfério norte, diversos estudos documentaram um “declínio de verão” na leitura. Esse lapso da leitura é maior entre alunos de baixa renda. Por não lerem, por não serem expostos a novas ideia, a que perdem o equivalente a dois meses de escola em cada verão, segundo a National Summer Learning Association, um grupo de apoio à educação. E a perda se acumula a cada ano.

Agora, uma nova pesquisa oferece uma solução surpreendentemente simples e barata para o declínio de leitura no verão. Num estudo de três anos, pesquisadores da Universidade do Tennessee, em Knoxville, descobriram que simplesmente dar acesso a livros às crianças de baixa renda nas feiras da primavera – e permitir que elas escolham livros que mais as interessem – surtiu um efeito significativo na lacuna de leitura do verão.

O estudo, financiado pelo Departamento Federal de Educação dos EUA, acompanhou os hábitos de leitura e as notas de mais de 1.300 alunos da Flórida, vindos de 17 escolas de baixa renda. A maioria das crianças era pobre o bastante para receber almoços escolares grátis ou com desconto.

Os pesquisadores queriam ver se proporcionar livros às crianças durante as férias de verão afetaria seu desempenho ao longo dos anos. No início do estudo, 852 alunos da primeira e da segunda série, selecionados aleatoriamente, compareceram a uma feira escolar de livros na primavera, onde puderam escolher entre 600 títulos.

Era oferecida uma variedade de livros, desde aqueles sobre celebridades como Britney Spears e “The Rock“, até histórias de personagens ficcionais como o corajoso criador de casos Junie B. Jones. As crianças também podiam escolher livros culturalmente relevantes, com personagens afro-americanos, assim como livros em espanhol.

As crianças escolheram 12 livros. Os pesquisadores também selecionaram aleatoriamente um grupo de controle de 478 crianças que não receberam nenhum livro. A essas crianças, ofereceram atividades livres e livros de quebra-cabeças.

As feiras e distribuições de livros continuaram por três verões, até que os participantes do estudo chegaram à quarta e quinta séries. Então, os pesquisadores compararam as notas de testes de leitura para os dois grupos.

As crianças que haviam recebido os livros grátis atingiram notas significativamente mais altas que aquelas com livros de atividades. O efeito, correspondente a 1/16 do desvio padrão em notas de testes, foi equivalente a uma criança fazer três anos de cursos de verão, segundo o relatório a ser publicado em setembro no jornal “Reading Psychology“. A diferença nas notas foi duas vezes maior entre as crianças mais pobres do estudo.

As descobertas chegam num momento em que muitos distritos escolares consideram cortar os programas de verão para economizar verbas, de acordo com uma recente pesquisa pela Associação Americana de Administradores de Escolas. O estudo mostrou que oferecer livros gratuitamente, por um custo de US$50 por criança, é uma maneira muito mais econômica de estimular a leitura de verão, afirmou uma co autora do estudo, Anne McGill-Franzen, professora e diretora do centro de leitura da Universidade do Tennessee, em Knoxville.

Uma das descobertas mais notáveis foi que as crianças aprimoraram sua leitura mesmo sem escolher os livros do currículo escolar, ou os clássicos normalmente indicados pelos professores como leitura de verão. Essa conclusão confirma outros estudos sugerindo que as crianças aprendem melhor quando podem escolher seus próprios livros.

Surpreendentemente, o livro mais popular durante o primeiro ano do estudo na Flórida foi uma biografia da cantora Britney Spears.

“O que isso significa para mim é que existe uma cultura e uma mídia jovens que transcendem o que achamos que as crianças deveriam ler”, disse a Dra. McGill-Franzen. “Eu não acho que a maioria dessas crianças lia qualquer coisa durante o verão, mas a oportunidade de escolher seus próprios livros e discutir o que sabem sobre ‘The Rock’ ou Hannah Montana era algo motivador para eles”.

Ellen Galinsky, presidente do Families and Work Institute e autora de um novo livro sobre o aprendizado infantil, “Mind in the Making”, disse esperar que as descobertas estimulem pais e professores a deixar que as crianças escolham seu próprio material de leitura.

“Os interesses de uma criança são uma porta para a sala de leitura”, afirmou Galinsky, acrescentando que seu próprio filho virava as costas aos livros durante a graduação. Como ele gostava de música, ela o encorajou a ler revistas de música ou livros sobre músicos. Seu filho acabou ganhando interesse na leitura e hoje possui um Ph.D.

“Se o seu filho não gosta de leitura, fazê-lo ler qualquer coisa é melhor do que nada”, explicou ela.

Porém, dar às crianças a escolha dos livros que leem é uma mensagem a que muitos pais ainda resistem.

Recentemente, numa livraria, a Dra. McGill-Franzen disse ter testemunhado uma conversa entre algumas mães estimulando suas filhas, da quinta e sexta séries, a ler biografias de figuras históricas, quando as meninas queriam escolher livros sobre Hannah Montana – uma personagem interpretada pela estrela adolescente Miley Cyrus.

“Se esses livros os fizerem ler, isso gera ótimas repercussões no sentido de deixá-los mais inteligentes”, disse a Dra. McGill-Franzen. “Professores e pais de classe média subestimam as preferências das crianças, mas eu acho que precisamos deixar de ser tão rígidos com suas escolhas em relação a livros”.

New York Times 

Morte de um pássaro

(Réquiem para Federico Garcia Lorca)

Ele estava pálido e suas mãos tremiam. Sim, ele estava com medo porque era tudo tão inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis a balbuciar preces matinais no céu deliquescente. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos que nunca, compreendeu a razão de ser de tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para cantar. Aquela madrugada que raiava para presenciar sua morte, não tinha sido ela sempre a sua grande amiga? Não ficara ela tantas vezes a escutar suas canções de silêncio? Por que o haviam arrancado a seu sono povoado de aves brancas e feito marchar em meio a outros homens de barba rude e olhar escuro?

Pensou em fugir, em correr doidamente para a aurora, em bater asas inexistentes até voar. Escaparia assim à fria sanha daqueles caçadores maus que o confundiam com o milhafre, ele cuja única missão era cantar a beleza das coisas naturais e o amor dos homens; ele, um pássaro inocente, em cuja voz havia ritmos de dança.

Mas permaneceu em sua atonia, sem acreditar bem que aquilo tudo estivesse acontecendo. Era, por certo, um mal-entendido. Dentro em pouco chegaria a ordem para soltá-lo, e aqueles mesmos homens que o miravam com ruim catadura chegariam até ele rindo risos francos e, de braços dados, iriam todos beber manzanilla numa tasca qualquer, e cantariam canções de cante-hondo até que a noite viesse recolher seus corpos bêbados em sua negra, maternal mantilha.

As ordens, no entanto, foram rápidas. O grupo foi levado, a coronhadas e empurrões, até a vala comum aberta, e os nodosos pescoços penderam no desalento final. Lábios partiram-se em adeuses, murmurando marias e consuelos. 

Só sua cabeça movia-se para todos os lados, num movimento de busca e negação, como a do pássaro frágil na mão do armadilheiro impiedoso. O sangue cantava-lhe aos ouvidos, o sangue que fora a seiva mais viva de sua poesia, o sangue que tinha visto e que não quisera ver, o sangue de sua Espanha louca e lúcida, o sangue das paixões desencadeadas, o sangue de Ignácio Sánchez Mejías, o sangue das bodas de sangre, o sangue dos homens que morrem para que nasça um mundo sem violência. Por um segundo passou-lhe a visão de seus amigos distantes. Alberti, Neruda, Manolo Ortiz, Bergamín, Delia, María Rosa – e a minha própria visão, a do poeta brasileiro que teria sido como um irmão seu e que dele viria a receber o legado de todos esses amigos exemplares, e que com ele teria passado noites a tocar guitarra, a se trocarem canções pungentes.

Sim, teve medo. E quem, em seu lugar, não o teria? Ele não nascera para morrer assim, para morrer antes de sua própria morte. Nascera para a vida e suas dádivas mais ardentes, num mundo de poesia e música, configurado na face da mulher, na face do amigo e na face do povo. Se tivesse tido tempo de correr pela campina, seu corpo de poeta-pássaro ter-se-ia certamente libertado das contingências físicas e alçado voo para os espaços além; pois tal era sua ânsia de viver para poder cantar, cada vez mais longe e cada vez melhor, o amor, o grande amor que era nele sentimento de permanência e sensação de eternidade.

Mas foram apenas outros pássaros, seus irmãos, que voaram assustados dentro da luz da antemanhã, quando os tiros do pelotão de morte soaram no silêncio da madrugada.

Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

quarta-feira, dezembro 10

Abrigo

 


Lições

Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trêmula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?

Mia Couto, "Idades cidades divindades"

O Tempo em que o mundo tinha a nossa idade

 Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.

Sou chamado de Kindzu. É o nome que se dá às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias. Quem não lhes conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente chão? Meu pai me escolheu para esse nome, homenagem à sua única preferência: beber sura, o vinho das palmeiras. Assim era o velho Taímo, solitário pescador. Primeiro, ele ainda esperava que o tempo trabalhasse a bebida, dedicado nos proibidos serviços de fermentar e alambicar. Depois, nem isso: simplesmente cortava os rebentos das palmeiras e ficava deitado, boquinhaberto, deixando as gotas pingar na concha dos lábios. Daquele modo, nenhum cipaio lhe apertaria os engasganetes: ele nunca destilava sura. Vida boa, aconselhava ele, é chupar manga sem descascar o fruto.

Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos improvisos. As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o sono lhe apagava a boca antes do desfecho. Éramos nós que recolhíamos seu corpo dorminhoso. Não lhe deitávamos dentro da casa: ele sempre recusara cama feita. Seu conceito era que a morte nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão, lugar onde a chuva também gosta de deitar. Nós simplesmente lhe encostávamos na parede da casa. Ali ficava até de manhã. Lhe encontrávamos coberto de formigas. Parece que os insetos gostavam do suor docicado do velho Taímo. Ele nem sentia o corrupio do formigueiro em sua pele.

— Chiças: transpiro mais que palmeira!

Proferia tontices enquanto ia acordando. Nós lhe sacudíamos os infatigáveis bichos. Taímo nos sacudia a nós, incomodado por lhe dedicarmos cuidados.

Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como dormia fora, nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos convocava:

— Venham: papá teve um sonho!

E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe tinham sido reveladas. Taímo recebia notícia do futuro por via dos antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia empo de provar nenhuma. Eu me perguntava sobre a
verdade daquelas visões do velho, estorinhador como ele era.

— Nem duvidem, avisava mamã, suspeitando-nos.

E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. Recordo meu pai nos chamar um dia. Parecia mais uma dessas reuniões em que ele lembrava as cores e os
tamanhos de seus sonhos. Mas não. Dessa vez, o velho se gravatara, fato e sapato com sola. A sua voz não variava em delírios.

Anunciava um facto: a Independência do país. Nessa altura, nós nem sabíamos o verdadeiro significado daquele anúncio. Mas havia na voz do velho uma emoção tão funda, parecia estar ali a consumação de todos seus sonhos. Chamou minha mãe e, tocando sua barriga redonda como lua cheia, disse:

— Esta criança há-de ser chamada de Vinticinco de Junho.

Vinticinco de Junho era nome demasiado. Afinal, o menino ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais mindinha: Junhito. Minha mãe não mais teve filhos. Junhito foi o último habitante daquele ventre.

Mia Couto, "Terra Sonâmbula" 

A inesquecível Beatriz

Relembro hoje aquela a quem chamarei Beatriz, alegria de minha vista e de minha vida, saudade alegre, prazer de sempre, clarinada matinal, doçura.

Que sou eu em sua vida? Penso tranquilamente: nada, quase nada. Alguém que ela encontrou ao dobrar uma esquina e a acompanhou... lembro-me, eu devia levá-la apenas uma quadra adiante, porque nossos rumos eram diferentes. Mas a companhia era boa — fui um pouco mais adiante, era bom andar a seu lado na penumbra, eu era o Caminhante Premiado Pela Doce Companhia, fui andando. Quando nos separamos foi sem mágoa — Seja feliz! Seja feliz!

Dissemos isto com tanta vontade que acho que, afinal, temos sido felizes.

Ah!, quando penso em outras, que me dilaceraram o peito em troca de ilusões; quando penso em vós, minhas antigas amadas, agora que conheço Beatriz, tenho pena do que fui e do que sois, e pela primeira vez sinto-me infiel à vossa lembrança. Passai bem, princesas, adeus pastoras, rainhas das czardas, deusas que endeusei outrora, ainda hoje não vos quero mal, apenas sucede que sobreveio Beatriz; como alguém que viaja à noite em um trem e desperta porque o trem parou, e escuta o silêncio da noite e, no silêncio, o murmúrio de um córrego — assim é lua música, Beatriz: como a brisa que beija a cara do trabalhador cansado, suado, que se sentou um instante debaixo de uma árvore — assim é a tua mão, Beatriz; como, nas fainas de um barco negro, numa tarde de mar grosso, sobe à coberta o lúrido foguista, e olha o céu e vê o arco-íris, assim é a tua aparência, Beatriz. Entre tantas que trouxeram meu nome nos lábios (como a Liberdade de Rui Barbosa) e não me guardaram no coração; e as que me corroeram como ácidos (eu sorria!), as que traçaram com suas unhas estas rugas de minha cara; entre as que eu pensei terríveis e eram apenas vulgares; e as que amei de verdade e desamei devagar — entre todas, acima, casta, e fácil, alegre, linda e natural, eu te saúdo, Beatriz.

Pela tua risada, pela tua beleza, pela tua bondade, pela graça de teu corpo, pela tua amizade necessária e dada — entre todas te alcandoro e te abençoo, ó branca, ó alta, ó bela, inesquecível Beatriz!

Rubem Braga, "Recado de primavera"

A Morte passeia pelo subúrbio

Viu a Morte no ônibus. Sorriu para ela, ela retribuiu. Quando desceu, ela desceu também e o seguiu. Ele andou devagar, para que ela o alcançasse, mas ela também retardou o passo. Ao chegar ao portão de sua casa, ele fingiu dificuldade para encontrar a chave e ficou esperando. Mas ela passou por ele, disse “boa noite, Altair” e, sorrindo, fez um gesto, apontando o fim da rua. Ele entrou. A mulher estava na cozinha. De mau-humor, ele disse: “Acho que alguém vai morrer hoje aqui na vila.” Ela desligou o fogão: “Sabe que eu também estou com essa sensação de morte? Deus nos livre.” Ele estava tão decepcionado que a mulher perguntou se tinha acontecido alguma coisa no emprego. Na hora de dormir, ele escancarou a janela do quarto. “Ei, você ficou louco? Com este frio…”, resmungou a mulher, fechando-a. Ela logo adormeceu. Ele ainda esperou meia hora, mas dormiu também. Acordou de madrugada, com o barulho de um tiroteio no fim da rua, mas nem foi abrir a janela. Havia perdido a esperança.

***

Talvez eu esteja destinado a acordar às sete, todo dia, ao chamado das irmãs de caridade. Talvez haja alegria em meu rosto quando me levarem para tomar um café com bolo de fubá e ir à missa na capela do asilo. Talvez, como os outros velhinhos, eu encontre finalmente Deus e Ele seja melhor do que eu sempre imaginei. Talvez, numa manhã ou em outra, haja sol e possamos caminhar pelo gramado e sentar-nos ao sol, em bancos oferecidos pela empresa tal. Talvez, trocando reminiscências, me digam que eu fui mais feliz do que qualquer outro velhinho dali, e talvez eu acredite. Talvez, sem a agitação do mundo, eu descubra enfim o truque de viver e, conversando com as flores do jardim cuidado pelas irmãs, eu encontre as interlocutoras ideais. Talvez seja esse o futuro bem-aventurado que desde a adolescência eu venho sonhando, embalado pela poesia. Talvez haja gatos ali, um para cada velhote, e venhamos a conhecer o nome das nuvens brancas e elas nos chamem carinhosamente de seu Altair, seu Jonas, seu Raul.

***

Esquece as coisas, perde tudo, baba até quando diz a palavra esperança. Nos sonhos, é perseguido por multidões que querem açoitá-lo, queimá-lo, enforcá-lo. Se os sonhos trazem revelações, talvez ele tenha descoberto tardiamente a vocação de mártir. Isso é paranoia, dizem-lhe, mas ele já não consegue guardar o sentido das palavras. Pensa ter sido poeta um dia, talvez seja ainda, e nos sonhos é achincalhado por homens de nome estrangeiro, como Alzheimer e Parkinson. Talvez sejam rivais seus, antigos ou recentes. Ou talvez sejam nomes de cachorros, pelos quais é também perseguido, nos sonhos e fora deles. Como se chama o da vizinha, mesmo? Walcott, parece. Ou Eliot?

***

Alertou-me um amigo, dos três que ainda não me abandonaram, que venho falando muito de morte. É verdade, eu venho. Mas – eu disse a ele – tenho falado igualmente de amor. Falaria de vida, também, se o amor se tivesse aliado a ela. Mas o amor encantou-se com a morte e vive a bajulá-la, a elogiar seus lábios, seu batom, seus brincos, seus cabelos longos como a eternidade.