domingo, novembro 30
Incompletude
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios — e
1 esticador de horizontes.
Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
fios de teias de aranha. (A coisa fica bem
esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)
Manoel de Barros, "Meu quintal é maior do que o mundo"
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios — e
1 esticador de horizontes.
Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
fios de teias de aranha. (A coisa fica bem
esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)
Manoel de Barros, "Meu quintal é maior do que o mundo"
O rosto
Durante muitos anos, vivemos sozinhos no cimo de um monte onde apenas estava a nossa casa, doze árvores e muitos pássaros. Tínhamos um cão e ele gostava de ladrar só de estar feliz, ou então era um bocado maluco, porque ladrava sem motivo enquanto fazíamos o nosso trabalho.
Durante muitos anos, eu, a minha mãe e o meu pai vivemos nessa casa no cimo de um monte mais ou menos afiado que custava subir e descer. Explicaram-me que a nossa tarefa era ver ao longe, e eu via ao longe sem saber o que esperar e esperava que um dia pudesse entender melhor porque tínhamos de o fazer.
Víamos distante uma estrada muito estreita que serpenteava nos montes vizinhos, aparecendo num lugar e depois desaparecendo, surgindo mais adiante como vindo à tona do verde intenso da vegetação. Um oceano de ramagens. Víamos como passavam uns poucos carros, tão de vez em quando, e como havia gado que os pastores enfileiravam por ali para chegarem aos pastos a engordar de erva.
Os montes vizinhos eram mais cobertos do que o nosso, que parecia careca, assim sem cabelo por ter apenas doze árvores. Estava a nossa casa ali pousada, na careca do monte, como um pequeno chapéu. Eu até imaginava que o nosso monte, ali abaixo de onde estávamos, teria uns olhos e uma boca para ser uma cabeça toda catita a fazer o mesmo que fazíamos nós, ver ao longe.
Víamos como chegava o sol e depois como partia. Como fazia para se erguer de um lado, ali arregaçado de entre o fundo distante da pedreira, e como seguia o dia inteiro para se ir meter quase pelo riacho adentro. No verão, o sol acertava sempre no riacho, parecia até que se ia refrescar.
Eu pensava se estaríamos ali para tomar conta do sol. Para saber se ele fazia o seu caminho sem se enganar ou sem cair mais depressa do que o devido. Perguntava se estaríamos ali para tomar conta do tempo, para que não fosse mais pequeno nem fosse maior do que devia.
Em certas alturas, eu, a minha mãe e o meu pai sentávamo-nos lado a lado a trabalhar nisso de ver o longe. Todos os três observávamos como estavam as paisagens calmas e como se ouvia o silvo pequeno do vento e o marulhar das folhas. Conversávamos devagar, por não ser importante fazer as coisas à pressa nem falar.
Os três sentados na atenção serena que prestávamos, e o meu pai podia cantar uma canção, de vez em quando, porque o declive do monte parecia pôr-se de caminho para o som e a voz crescia. Eu já sabia do eco e da reverberação. A voz do meu pai agigantava-se pelos montes fora e era afinada, tão segura quanto delicada.
A minha mãe cantava também, e eu ouvia e achava que o longe que ali víamos ficava mais perto assim. Porque lhe chegávamos pela voz, planando pela voz até aos lugares menos nítidos da paisagem.
Mas era em silêncio que mais vivíamos. A deixar que fossem as plantas e os bichos a terem pelo vento partículas de conversas viajando.
Quando se vive num silêncio tão grande, a tomar conta de algo tão distante, aprende-se a ver melhor. Aprende-se a ver pela cor das coisas, pelo movimento e até pelos odores o que pode estar a acontecer.
Sabíamos sempre muito bem da tempestade, e distinguíamos muito bem a tempestade das chuvas mais fracas e nunca nos enganávamos com os ventos frios de primavera, que eram passageiros e aqueciam se nos puséssemos ao sol.
Aprendemos a perceber como os rebanhos trepavam pelas encostas e sabíamos a quem pertenciam, ainda que fosse tão raro estarmos com outras pessoas. E, pelo movimento do rebanho e o tempo que levava a subir ou descer a encosta, percebíamos se estava maior ou mais pequeno, se a fome ou os negócios tinham obrigado ao abate do gado.
Era um trabalho muito difícil porque, enquanto vigiávamos algo num lugar, podia acontecer noutro o que o meu pai queria saber, e ele sempre perguntava o mesmo, se eu vira gente, quantas pessoas, se vinham a pé, se tinham carro ou motocicletas, se faziam barulho ou diziam palavras mais aos gritos e se eu havia ouvido o que diziam.
Eu tinha sempre dificuldade em separar o que não importava do que era fundamental para o nosso trabalho. Por isso, tanto memorizava coisas tolas como podia esquecer outras tão preciosas. O meu pai, no entanto, parecia ser paciente e ter tempo para esperar. Como se esperasse que o trabalho, num dado momento, estivesse completo para sempre e não precisássemos mais de trabalhar. O que era o mesmo que não precisarmos mais de viver ali, julgava eu.
Eu sabia que um dia teria de ir à escola, estava a chegar à idade e a minha mãe já tinha descido monte abaixo a avisar uns senhores de que era preciso que a carrinha das crianças fosse parar ao pé de nós.
Significava que eu teria de descer a nossa encosta por mais de meia hora até ao carreiro e depois meia hora até à estrada onde a carrinha devia passar todos os dias a um momento certo.
A minha preocupação ali por aqueles dias, antes de ir estudar, era a de saber se o nosso trabalho não ia ficar descurado. Quem faria a minha parte de ver ao longe a medir os humores da paisagem?
O nosso cão pôs-se ainda mais esquisito, parecia entender alguma coisa e ladrava em meu redor a protestar ou a avisar-me não sabia eu de o quê.
A minha mãe enxotava-o a ver se ele ia brincar com a passarada. O pobre do bicho, como sempre vivera ali no pico do monte, tinha mais de céu dentro da cabeça do que de terra. Talvez julgasse que voava e que entre ele e os pássaros a diferença estava apenas na cor. Às vezes corria muito e dava uns saltos tão altos para os apanhar, até nós achávamos que o maluco do cão ia aprender a voar.
Preocupados ou não, os meus pais explicaram-me que o meu tempo de ir à escola era o mais importante de todos e que, dali em diante, seria esse o meu trabalho principal. Olhei para os nossos bancos. Olhei para longe e imaginei como mudariam as minhas tarefas, tanto me parecia que tinha ali tudo quanto precisava.
Quando a carrinha chegou, vinha com três crianças de lugares ainda mais afastados. Não foram, é claro, as primeiras crianças que vi, mas eu não estava habituado a ter crianças por companhia. De todo o modo, nos montes, todos nós, mesmo antes da idade da escola, já tínhamos muito trabalho para fazer e brincar era quase uma ideia esquisita.
Na escola, sentados em mesas pequenas, com um caderno e um lápis para copiar letras e números, éramos oito alunos e a professora. Ela dizia-nos que a letra A pode ser linda, pode ser má, já se cá vê que há tal letra no que começa e no que finda.
A nossa professora, como vinha da cidade, explicava que por cada árvore do monte havia uma casa na cidade. E que, por cada pássaro ou insecto, havia gente nas ruas. Eu pensei que difícil seria o trabalho do meu pai, que tem de estar atento ao que fazem as pessoas pela paisagem, se tivesse uma paisagem de tanta gente.
Ainda havia sido uma sorte que nos tivesse calhado viver no cimo de um monte tão especial e ter por tarefa ver ao longe e tomar conta de um tão grande sossego.
Um dia, pediu-nos a professora que falássemos sobre o nosso trabalho. Nós, as crianças que, entre os lápis e cadernos mais as brincadeiras de recreio, ainda voltávamos a casa na carrinha, com a pressa possível, para ajudarmos os nossos pais.
Eu expliquei como me sentava nos bancos, virado ora para sul, ora para norte, e expliquei que a paisagem mudava de cores e movimentos, tinha ruídos grandes e outros discretos e que havia que saber para onde olhar. Depois, expliquei que o mais importante era perceber o que acontecia longe, lá onde ficavam os montes mais isolados e aonde quase ninguém ia. O meu pai dizia que se houvesse o azar de um incêndio nesses montes podia arder quase o mundo inteiro, porque o tempo seria pequeno para trazer água antes que o fogo alastrasse.
Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes da paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer.
Nesse dia voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento.
Pus-me a olhar para o meu pai a ver se no seu rosto havia algo que se comparasse ao afastado dos montes, o verde mudando, as encostas apenas cobertas pela luz do sol, o arvoredo como um tapete que parece rasteiro.
Pus-me a olhar para o rosto do meu pai à procura do que fosse distante, quando parecia que o rosto de uma pessoa tinha tudo tão à flor da pele.
Quando o nosso cão parou de ladrar, trouxe-o para junto de mim e encarei-o atento. Com a excepção da distância do nariz em relação aos olhos, eu não sabia como entender o que me dissera a professora nem havia nada de paisagem na expressão de alguém.
Mas a professora sabia melhor do que eu e decidiu sentar-me na escola no sentido contrário ao dos meus colegas. Sentou-me na sua mesa, enquanto ela andava a pé a escrever e a apagar coisas no nosso quadro.
Fiquei de frente para as sete crianças que estudavam comigo. Sete rostos que, com mais ou menos sono, maior ou menor fome, acatavam os ensinamentos da professora como podiam.
Subitamente, enquanto fazia também as minhas letras — e eu desenhava já muito bem todas as vogais —, percebi que uma menina se distraíra a ver nada. Via nada como se fosse alguma coisa. Tinha o rosto parado e apontado para o tecto e, embora de olhos abertos, ficava estranha, como se adormecida. O rosto dela, ali todo à flor da pele, pareceu-se realmente com o distante da paisagem. Veio à sua expressão uma lonjura que impossibilitava, a quem a visse, perceber com nitidez o que lhe passava no seu pensamento.
Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.
Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal.
O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros.
Conheci melhor o meu pai. Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas.
Valter Hugo Mãe, “Contos de cães e maus lobos”
Durante muitos anos, eu, a minha mãe e o meu pai vivemos nessa casa no cimo de um monte mais ou menos afiado que custava subir e descer. Explicaram-me que a nossa tarefa era ver ao longe, e eu via ao longe sem saber o que esperar e esperava que um dia pudesse entender melhor porque tínhamos de o fazer.
Víamos distante uma estrada muito estreita que serpenteava nos montes vizinhos, aparecendo num lugar e depois desaparecendo, surgindo mais adiante como vindo à tona do verde intenso da vegetação. Um oceano de ramagens. Víamos como passavam uns poucos carros, tão de vez em quando, e como havia gado que os pastores enfileiravam por ali para chegarem aos pastos a engordar de erva.
Os montes vizinhos eram mais cobertos do que o nosso, que parecia careca, assim sem cabelo por ter apenas doze árvores. Estava a nossa casa ali pousada, na careca do monte, como um pequeno chapéu. Eu até imaginava que o nosso monte, ali abaixo de onde estávamos, teria uns olhos e uma boca para ser uma cabeça toda catita a fazer o mesmo que fazíamos nós, ver ao longe.
Víamos como chegava o sol e depois como partia. Como fazia para se erguer de um lado, ali arregaçado de entre o fundo distante da pedreira, e como seguia o dia inteiro para se ir meter quase pelo riacho adentro. No verão, o sol acertava sempre no riacho, parecia até que se ia refrescar.
Eu pensava se estaríamos ali para tomar conta do sol. Para saber se ele fazia o seu caminho sem se enganar ou sem cair mais depressa do que o devido. Perguntava se estaríamos ali para tomar conta do tempo, para que não fosse mais pequeno nem fosse maior do que devia.
Em certas alturas, eu, a minha mãe e o meu pai sentávamo-nos lado a lado a trabalhar nisso de ver o longe. Todos os três observávamos como estavam as paisagens calmas e como se ouvia o silvo pequeno do vento e o marulhar das folhas. Conversávamos devagar, por não ser importante fazer as coisas à pressa nem falar.
Os três sentados na atenção serena que prestávamos, e o meu pai podia cantar uma canção, de vez em quando, porque o declive do monte parecia pôr-se de caminho para o som e a voz crescia. Eu já sabia do eco e da reverberação. A voz do meu pai agigantava-se pelos montes fora e era afinada, tão segura quanto delicada.
A minha mãe cantava também, e eu ouvia e achava que o longe que ali víamos ficava mais perto assim. Porque lhe chegávamos pela voz, planando pela voz até aos lugares menos nítidos da paisagem.
Mas era em silêncio que mais vivíamos. A deixar que fossem as plantas e os bichos a terem pelo vento partículas de conversas viajando.
Quando se vive num silêncio tão grande, a tomar conta de algo tão distante, aprende-se a ver melhor. Aprende-se a ver pela cor das coisas, pelo movimento e até pelos odores o que pode estar a acontecer.
Sabíamos sempre muito bem da tempestade, e distinguíamos muito bem a tempestade das chuvas mais fracas e nunca nos enganávamos com os ventos frios de primavera, que eram passageiros e aqueciam se nos puséssemos ao sol.
Aprendemos a perceber como os rebanhos trepavam pelas encostas e sabíamos a quem pertenciam, ainda que fosse tão raro estarmos com outras pessoas. E, pelo movimento do rebanho e o tempo que levava a subir ou descer a encosta, percebíamos se estava maior ou mais pequeno, se a fome ou os negócios tinham obrigado ao abate do gado.
Era um trabalho muito difícil porque, enquanto vigiávamos algo num lugar, podia acontecer noutro o que o meu pai queria saber, e ele sempre perguntava o mesmo, se eu vira gente, quantas pessoas, se vinham a pé, se tinham carro ou motocicletas, se faziam barulho ou diziam palavras mais aos gritos e se eu havia ouvido o que diziam.
Eu tinha sempre dificuldade em separar o que não importava do que era fundamental para o nosso trabalho. Por isso, tanto memorizava coisas tolas como podia esquecer outras tão preciosas. O meu pai, no entanto, parecia ser paciente e ter tempo para esperar. Como se esperasse que o trabalho, num dado momento, estivesse completo para sempre e não precisássemos mais de trabalhar. O que era o mesmo que não precisarmos mais de viver ali, julgava eu.
Eu sabia que um dia teria de ir à escola, estava a chegar à idade e a minha mãe já tinha descido monte abaixo a avisar uns senhores de que era preciso que a carrinha das crianças fosse parar ao pé de nós.
Significava que eu teria de descer a nossa encosta por mais de meia hora até ao carreiro e depois meia hora até à estrada onde a carrinha devia passar todos os dias a um momento certo.
A minha preocupação ali por aqueles dias, antes de ir estudar, era a de saber se o nosso trabalho não ia ficar descurado. Quem faria a minha parte de ver ao longe a medir os humores da paisagem?
O nosso cão pôs-se ainda mais esquisito, parecia entender alguma coisa e ladrava em meu redor a protestar ou a avisar-me não sabia eu de o quê.
A minha mãe enxotava-o a ver se ele ia brincar com a passarada. O pobre do bicho, como sempre vivera ali no pico do monte, tinha mais de céu dentro da cabeça do que de terra. Talvez julgasse que voava e que entre ele e os pássaros a diferença estava apenas na cor. Às vezes corria muito e dava uns saltos tão altos para os apanhar, até nós achávamos que o maluco do cão ia aprender a voar.
Preocupados ou não, os meus pais explicaram-me que o meu tempo de ir à escola era o mais importante de todos e que, dali em diante, seria esse o meu trabalho principal. Olhei para os nossos bancos. Olhei para longe e imaginei como mudariam as minhas tarefas, tanto me parecia que tinha ali tudo quanto precisava.
Quando a carrinha chegou, vinha com três crianças de lugares ainda mais afastados. Não foram, é claro, as primeiras crianças que vi, mas eu não estava habituado a ter crianças por companhia. De todo o modo, nos montes, todos nós, mesmo antes da idade da escola, já tínhamos muito trabalho para fazer e brincar era quase uma ideia esquisita.
Na escola, sentados em mesas pequenas, com um caderno e um lápis para copiar letras e números, éramos oito alunos e a professora. Ela dizia-nos que a letra A pode ser linda, pode ser má, já se cá vê que há tal letra no que começa e no que finda.
A nossa professora, como vinha da cidade, explicava que por cada árvore do monte havia uma casa na cidade. E que, por cada pássaro ou insecto, havia gente nas ruas. Eu pensei que difícil seria o trabalho do meu pai, que tem de estar atento ao que fazem as pessoas pela paisagem, se tivesse uma paisagem de tanta gente.
Ainda havia sido uma sorte que nos tivesse calhado viver no cimo de um monte tão especial e ter por tarefa ver ao longe e tomar conta de um tão grande sossego.
Um dia, pediu-nos a professora que falássemos sobre o nosso trabalho. Nós, as crianças que, entre os lápis e cadernos mais as brincadeiras de recreio, ainda voltávamos a casa na carrinha, com a pressa possível, para ajudarmos os nossos pais.
Eu expliquei como me sentava nos bancos, virado ora para sul, ora para norte, e expliquei que a paisagem mudava de cores e movimentos, tinha ruídos grandes e outros discretos e que havia que saber para onde olhar. Depois, expliquei que o mais importante era perceber o que acontecia longe, lá onde ficavam os montes mais isolados e aonde quase ninguém ia. O meu pai dizia que se houvesse o azar de um incêndio nesses montes podia arder quase o mundo inteiro, porque o tempo seria pequeno para trazer água antes que o fogo alastrasse.
Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes da paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer.
Nesse dia voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento.
Pus-me a olhar para o meu pai a ver se no seu rosto havia algo que se comparasse ao afastado dos montes, o verde mudando, as encostas apenas cobertas pela luz do sol, o arvoredo como um tapete que parece rasteiro.
Pus-me a olhar para o rosto do meu pai à procura do que fosse distante, quando parecia que o rosto de uma pessoa tinha tudo tão à flor da pele.
Quando o nosso cão parou de ladrar, trouxe-o para junto de mim e encarei-o atento. Com a excepção da distância do nariz em relação aos olhos, eu não sabia como entender o que me dissera a professora nem havia nada de paisagem na expressão de alguém.
Mas a professora sabia melhor do que eu e decidiu sentar-me na escola no sentido contrário ao dos meus colegas. Sentou-me na sua mesa, enquanto ela andava a pé a escrever e a apagar coisas no nosso quadro.
Fiquei de frente para as sete crianças que estudavam comigo. Sete rostos que, com mais ou menos sono, maior ou menor fome, acatavam os ensinamentos da professora como podiam.
Subitamente, enquanto fazia também as minhas letras — e eu desenhava já muito bem todas as vogais —, percebi que uma menina se distraíra a ver nada. Via nada como se fosse alguma coisa. Tinha o rosto parado e apontado para o tecto e, embora de olhos abertos, ficava estranha, como se adormecida. O rosto dela, ali todo à flor da pele, pareceu-se realmente com o distante da paisagem. Veio à sua expressão uma lonjura que impossibilitava, a quem a visse, perceber com nitidez o que lhe passava no seu pensamento.
Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.
Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal.
O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros.
Conheci melhor o meu pai. Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas.
Valter Hugo Mãe, “Contos de cães e maus lobos”
Se eu fosse pintor...
Se eu fosse pintor começaria a delinear este primeiro plano de trepadeiras entrelaçadas, com pequenos jasmins e grandes campânulas roxas, por onde flutua uma borboleta cor de marfim, com um pouco de ouro nas pontas das asas.
Mas logo depois, entre o primeiro plano e a casa fechada, há pombos de cintilante alvura, e pássaros azuis tão rápidos e certeiros que seria impossível deixar de fixa-los, para dar alegria aos olhos dos que jamais os viram ou verão.
E que faria eu, pintor, dos inúmeros pardais que pousam nesses muros e nesses telhados, e aí conversam, namoram-se, amam-se, e dizem adeus, cada um com seu destino, entre a floresta e os jardins, o vento e a névoa?
Mas por trás estão as velhas casas, pequenas e tortas, pintadas de cores vivas, como desenhos infantis, com seus varais carregados de toalhas de mesa, saias floridas, panos vermelhos e amarelos, combinados harmoniosamente pela lavadeira que ali os colocou. Se eu fosse pintor, como poderia perder esse arranjo, tão simples e natural, e ao mesmo tempo de tão admirável efeito?
Mas, depois disso, aparecem várias fachadas, que se vão sobrepondo umas às outras, dispostas entre palmeiras e arbustos vários, pela encosta do morro. Aparecem mesmo dois ou três castelos, azuis e brancos, e um deles tem até, na ponta da torre, um galo de metal verde. Eu, pintor, como deixaria de pintar tão graciosos motivos?
Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, ao subirem do vale à montanha, possui uma riqueza invisível, que a distância abafa e desfaz: por detrás dessas paredes, desses muros, dentro dessas casas pobres e desses castelinhos de brinquedo, há criaturas que falam, discutem, entendem-se e não se entendem, amam, odeiam, desejam, acordam todos os dias com mil perguntas e não sei se chegam à noite com alguma resposta.
Se eu fosse pintor, gostaria de pintar esse último plano, esse último recesso da paisagem. Mas houve jamais algum pintor que pudesse fixar esse móvel oceano, inquieto, incerto, constantemente variável que é o pensamento humano?
Cecília Meireles. "Ilusões do mundo"
Mas logo depois, entre o primeiro plano e a casa fechada, há pombos de cintilante alvura, e pássaros azuis tão rápidos e certeiros que seria impossível deixar de fixa-los, para dar alegria aos olhos dos que jamais os viram ou verão.
Mas o quintal da casa abandonada ostenta uma delicada mangueira, ainda com moles folhas cor de bronze sobre a cerrada fronde sombria, uma delicada mangueira repleta de pequenos frutos, de um verde tenro, que se destacam do verde-escuro como se estivessem ali apenas para tornar a árvore um ornamento vivo, entre os muros brancos, os pisos vermelhos, o jogo das escadas e dos telhados em redor.
E que faria eu, pintor, dos inúmeros pardais que pousam nesses muros e nesses telhados, e aí conversam, namoram-se, amam-se, e dizem adeus, cada um com seu destino, entre a floresta e os jardins, o vento e a névoa?
Mas por trás estão as velhas casas, pequenas e tortas, pintadas de cores vivas, como desenhos infantis, com seus varais carregados de toalhas de mesa, saias floridas, panos vermelhos e amarelos, combinados harmoniosamente pela lavadeira que ali os colocou. Se eu fosse pintor, como poderia perder esse arranjo, tão simples e natural, e ao mesmo tempo de tão admirável efeito?
Mas, depois disso, aparecem várias fachadas, que se vão sobrepondo umas às outras, dispostas entre palmeiras e arbustos vários, pela encosta do morro. Aparecem mesmo dois ou três castelos, azuis e brancos, e um deles tem até, na ponta da torre, um galo de metal verde. Eu, pintor, como deixaria de pintar tão graciosos motivos?
Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, ao subirem do vale à montanha, possui uma riqueza invisível, que a distância abafa e desfaz: por detrás dessas paredes, desses muros, dentro dessas casas pobres e desses castelinhos de brinquedo, há criaturas que falam, discutem, entendem-se e não se entendem, amam, odeiam, desejam, acordam todos os dias com mil perguntas e não sei se chegam à noite com alguma resposta.
Se eu fosse pintor, gostaria de pintar esse último plano, esse último recesso da paisagem. Mas houve jamais algum pintor que pudesse fixar esse móvel oceano, inquieto, incerto, constantemente variável que é o pensamento humano?
Cecília Meireles. "Ilusões do mundo"
Fardo
Eles estavam discutindo havia quase três quartos de hora. Abafadas e ininteligíveis, as vozes flutuavam pelo corredor desde o extremo oposto do apartamento. Inclinada sobre sua costura, Sophie perguntou-se, sem muita curiosidade, o que seria dessa vez. Era a voz de Madame que ela ouvia com mais frequência. Aguda de raiva e indignada de lágrimas, ela explodia em rajadas, em jorros. Monsieur era mais controlado, e sua voz mais baixa era suave demais para atravessar com facilidade as portas fechadas e o corredor. Para Sophie, em seu quartinho frio, a briga parecia, na maior parte do tempo, uma série de monólogos de Madame, interrompidos por silêncios estranhos e pesados. Mas, de vez em quando, Monsieur parecia perder completamente a paciência e então não havia silêncio entre as rajadas, e sim um grito áspero, profundo, zangado. Madame mantinha o tom agudo e alto continuamente e sem esmorecer; sua voz tinha, mesmo na raiva, uma monotonia curiosa e regular. Mas Monsieur às vezes falava alto, às vezes baixo, com ênfases, modulações e explosões súbitas, de modo que suas contribuições à discussão, quando eram audíveis, soavam como uma série de explosões distintas. Uau, uau, uau-uau-uau, uau — um cachorro latindo estupidamente.
Depois de algum tempo Sophie não prestou mais atenção ao barulho da briga. Consertava uma das camisolas de Madame, e o trabalho requeria toda a sua atenção. Sentia-se muito cansada; seu corpo todo doía. Tinha sido um dia difícil; a véspera também, e o dia anterior à véspera também. Todos os dias eram dias difíceis, e ela não era mais tão jovem quanto antes. Mais dois anos e teria cinquenta. Todos os dias tinham sido difíceis desde que ela se lembrava. Pensou nos sacos de batatas que costumava carregar quando era menina, no campo. Devagar, devagar ela caminhava pela estrada poeirenta com o saco sobre o ombro. Mais dez passos; podia conseguir isso. Só que nunca era o fim; tinha-se sempre que começar de novo.
Ergueu os olhos da costura, moveu a cabeça de um lado para o outro, piscou. Começava a ver luzes e manchas de cor dançando diante dos olhos; agora isso lhe acontecia com frequência. Uma espécie de verme brilhante e amarelado contorcia-se em direção ao canto direito de seu campo de visão; e embora ele estivesse sempre em movimento para cima, para cima, estava sempre ali no mesmo lugar. E havia estrelas vermelhas e verdes que surgiam, brilhavam e sumiam em torno do verme. Eles se moviam entre ela e a costura; estavam lá quando ela fechava os olhos. Depois de um momento ela continuou o trabalho; Madame queria a camisola muito especialmente na manhã seguinte. Mas era difícil ver atrás do verme.
Houve um súbito aumento de barulho do outro lado do corredor. Uma porta foi aberta; as palavras se articulavam.
– … bien tort, mon ami, si tu crois que je suis ton esclave. Je ferai ce que je voudrai.
— Moi aussi. — Monsieur soltou uma risada áspera, perigosa. Houve o som de passos pesados no corredor, um ruído no porta-guarda-chuvas; então a porta da frente bateu.
Sophie tornou a baixar os olhos para o trabalho. Ah, o verme, as estrelas coloridas, a dolorosa fadiga em todos os seus membros! Se pudesse passar um dia inteiro na cama, uma cama imensa, macia, quente, o dia inteiro…
A campainha assustou-a. Sempre a deixava nervosa, aquele zumbido de vespa furiosa. Levantou-se, deixou o trabalho na mesa, alisou o avental, ajeitou a touca e saiu para o corredor. Mais uma vez a campainha soou furiosamente. Madame estava impaciente.
– Finalmente, Sophie. Pensei que você nunca viesse. Sophie não disse nada; não havia nada a dizer. Madame estava parada junto ao armário aberto. Uma porção de roupas estava pendurada em seu braço e havia mais roupas em um monte sobre a cama.
“Une beauté à la Rubens”, seu marido costumava chamá-la quando se mostrava mais carinhoso. Gostava dessas mulheres grandes, esplêndidas, imponentes. Nada desses canos flexíveis para ele. “Hélène Fourmont” era seu apelido para ela.
– Algum dia — Madame costumava dizer aos amigos — eu tenho que ir até o Louvre ver meu retrato. O feito por Rubens, sabe. É extraordinário uma pessoa morar a vida inteira em Paris e nunca ter ido ao Louvre. Você não acha?
Essa noite ela estava soberba. As faces estavam enrubescidas; os olhos azuis brilhavam com um fulgor incomum entre as longas pestanas; os cabelos curtos, castanho-avermelhados, estavam despenteados.
– Amanhã, Sophie, nós partiremos para Roma — ela anunciou dramaticamente. — Amanhã de manhã. — Enquanto falava tirou outro vestido do armário e jogou-o na cama. Com o movimento seu roupão abriu-se, e houve uma visão de roupas de baixo enfeitadas e de carne branca e exuberante. — Temos que fazer as malas imediatamente.
– Por quanto tempo, Madame?
– Quinze dias, três meses; como vou saber?
– Faz diferença, Madame.
– O importante é ir embora. Não vou voltar a esta casa, depois do que me foi dito hoje, até que me peçam humildemente.
– Então é melhor levarmos o baú grande, Madame; vou buscá-lo.
O ar no quarto de guardados estava insuportável, cheirava a poeira e couro. O baú grande estava enfiado num canto distante. Ela teve de inclinar-se e esforçar-se para poder puxá-lo para fora. O verme e as estrelas coloridas piscavam diante de seus olhos; sentiu-se tonta quando se endireitou.
– Vou ajudá-la, Sophie — disse Madame, quando a empregada voltou arrastando o baú pesado atrás de si. Que cara de morte essa mulher tinha ultimamente! Ela odiava ter pessoas velhas e feias perto de si. Mas Sophie era tão eficiente; seria loucura livrar-se dela.
– Madame não precisa se preocupar. — Isso não teria fim, Sophie sabia, se Madame começasse a abrir gavetas e jogar coisas. — É melhor Madame ir dormir. Já é tarde.
Não, não. Ela não conseguiria dormir. Estava enervada a tal ponto… Esses homens… Que animalidade! Ninguém era escravo deles. Ninguém queria ser tratado assim.
Sophie arrumava o baú. Um dia inteiro na cama, em uma cama grande e macia como a de Madame. Cochilar, acordar por um momento, cochilar novamente.
– O último jogo dele — Madame dizia com indignação — é me dizer que não tem dinheiro. Não posso comprar roupas, diz. Grotesco demais. Não posso andar nua por aí, posso? — Ergueu as mãos. — E, quanto a dizer que ele não pode pagar, isso é besteira pura. Pode, perfeitamente bem. Só que ele é mau, mau, horrivelmente mau. E se ao menos fizesse um trabalho honesto, para variar, em vez de escrever versos tolos e publicá-los por sua própria conta, teria muito dinheiro. — Caminhou de um lado para o outro no quarto. — Além disso há o pai dele — continuou. — Para que ele serve eu gostaria de saber. “Você deve se orgulhar de ter um marido poeta”, diz. — Ela fez a voz tremer como a de um velho. — Mal posso me conter para não rir na cara dele. “E que versos lindos Hégésippe escreve sobre você! Que paixão, que fogo!” — Pensando no velho, ela esboçou uma careta e fez a cabeça vacilar, o dedo tremer e as pernas capengarem. — E quando se pensa que o pobre Hégésippe é calvo e pinta os poucos cabelos que tem… — Ela riu. — Quanto à paixão de que ele tanto fala em seus detestáveis versos, é tudo pura invenção. Mas, minha boa Sophie, em que você está pensando? Por que está guardando esse vestido verde velho e horroroso?
Sophie tirou o vestido do baú sem dizer coisa alguma. Por que essa mulher foi escolher logo esta noite para parecer tão terrivelmente doente? Tinha o rosto amarelo e os dentes azuis. Madame estremeceu; era horrível demais. Devia mandá-la para a cama. Mas, afinal, o trabalho tinha de ser feito. Que é que se podia fazer? Ela se sentia mais que nunca melindrada.
– A vida é terrível. — Suspirando, sentou-se pesadamente na beirada da cama. As molas flexíveis sacudiram-na suavemente uma ou duas vezes. — Ser casada com um homem assim. Logo estarei ficando velha e gorda. E nem uma vez infiel. Mas veja como ele me trata. — Tornou a levantar-se e começou a caminhar sem rumo pelo quarto. — Não vou aguentar isso — explodiu.
Parou em frente ao espelho comprido e ficou admirando sua figura trágica e esplêndida. Ninguém acreditaria, olhando para ela, que tinha mais de trinta anos. Atrás da beleza trágica ela podia ver no espelho uma criatura velha, magra e infeliz, com rosto amarelo e dentes azuis, acocorada junto ao baú. Realmente, era desagradável demais. Sophie parecia uma dessas mendigas que se veem nas manhãs frias, paradas na sarjeta. A pessoa passa depressa, tentando não olhar para elas? Ou para, abre a bolsa e lhes dá uma moeda — até mesmo uma nota de dois francos, se não se tem trocado? Seja o que for que faça, a pessoa fica sempre desconfortável, sempre se sente como se desculpando por suas pelicas. Era isso que dava andar. Se a pessoa tivesse um carro — mas essa era outra das maldades de Hégésippe —, não teria, viajando atrás de janelas fechadas, que tomar consciência delas. Ela deu as costas ao espelho.
– Não vou aguentar — disse, tentando não pensar nas mendigas, em dentes azuis e rostos amarelos. — Não vou aguentar. — Deixou-se cair numa cadeira.
Mas pensar em um amante com rosto amarelo e dentes azuis e desiguais! Ela fechou os olhos, estremecendo ao pensar nisso. Seria o bastante para deixar a pessoa doente. Sentiu-se impelida a dar outra olhada: os olhos de Sophie tinham a cor de chumbo esverdeado, sem vida. Que é que se podia fazer? O rosto da mulher era uma repreensão, uma acusação. E, além disso, vê-la fazia-a sentir-se verdadeiramente doente. Nunca tinha ficado tão profundamente irritada.
Sophie ergueu-se lentamente e com dificuldade; uma expressão de dor cruzou seu rosto. Lentamente ela caminhou para a cômoda, lentamente contou seis pares de meias de seda. Tornou a virar-se para o baú. Essa mulher era um cadáver ambulante!
– A vida é terrível — Madame repetiu com convicção. — Terrível, terrível, terrível.
Devia mandar a mulher para a cama. Mas nunca conseguiria arrumar as coisas sozinha. E era tão importante ir embora na manhã seguinte. Ela tinha dito a Hégésippe que iria e ele simplesmente rira; não tinha acreditado. Desta vez tinha que lhe dar uma lição. Em Roma ela veria Luigino. Um rapaz tão encantador, e marquês, também. Talvez… Mas ela não conseguia pensar em coisa alguma além do rosto de Sophie; os olhos plúmbeos, os dentes azulados, a pele amarela e enrugada.
– Sophie — disse de repente; era com dificuldade que não gritava —, olhe em minha penteadeira. Vai ver uma caixa de ruge, o Dorin número 24. Coloque um pouco no rosto. E há um bastão de pomada para os lábios na gaveta da direita.
Manteve os olhos resolutamente afastados enquanto Sophie se levantava (com que horrível estalar das juntas!), caminhava até a penteadeira e ficava parada ali, ruidosa, durante o que parecia ser uma eternidade. Que vida, meu Deus, que vida! Passos lentos voltavam. Ela abriu os olhos. Ah, isso era melhor, muito melhor.
– Obrigada, Sophie. Você parece muito menos cansada agora. — Levantou-se vivamente. — E agora temos que nos apressar. — Cheia de energia, ela correu para o armário. — Meu Deus! — exclamou, levantando as mãos. — Você esqueceu de pegar meu vestido azul de noite. Como pode ser tão estúpida, Sophie?
Depois de algum tempo Sophie não prestou mais atenção ao barulho da briga. Consertava uma das camisolas de Madame, e o trabalho requeria toda a sua atenção. Sentia-se muito cansada; seu corpo todo doía. Tinha sido um dia difícil; a véspera também, e o dia anterior à véspera também. Todos os dias eram dias difíceis, e ela não era mais tão jovem quanto antes. Mais dois anos e teria cinquenta. Todos os dias tinham sido difíceis desde que ela se lembrava. Pensou nos sacos de batatas que costumava carregar quando era menina, no campo. Devagar, devagar ela caminhava pela estrada poeirenta com o saco sobre o ombro. Mais dez passos; podia conseguir isso. Só que nunca era o fim; tinha-se sempre que começar de novo.
Ergueu os olhos da costura, moveu a cabeça de um lado para o outro, piscou. Começava a ver luzes e manchas de cor dançando diante dos olhos; agora isso lhe acontecia com frequência. Uma espécie de verme brilhante e amarelado contorcia-se em direção ao canto direito de seu campo de visão; e embora ele estivesse sempre em movimento para cima, para cima, estava sempre ali no mesmo lugar. E havia estrelas vermelhas e verdes que surgiam, brilhavam e sumiam em torno do verme. Eles se moviam entre ela e a costura; estavam lá quando ela fechava os olhos. Depois de um momento ela continuou o trabalho; Madame queria a camisola muito especialmente na manhã seguinte. Mas era difícil ver atrás do verme.
Houve um súbito aumento de barulho do outro lado do corredor. Uma porta foi aberta; as palavras se articulavam.
– … bien tort, mon ami, si tu crois que je suis ton esclave. Je ferai ce que je voudrai.
— Moi aussi. — Monsieur soltou uma risada áspera, perigosa. Houve o som de passos pesados no corredor, um ruído no porta-guarda-chuvas; então a porta da frente bateu.
Sophie tornou a baixar os olhos para o trabalho. Ah, o verme, as estrelas coloridas, a dolorosa fadiga em todos os seus membros! Se pudesse passar um dia inteiro na cama, uma cama imensa, macia, quente, o dia inteiro…
A campainha assustou-a. Sempre a deixava nervosa, aquele zumbido de vespa furiosa. Levantou-se, deixou o trabalho na mesa, alisou o avental, ajeitou a touca e saiu para o corredor. Mais uma vez a campainha soou furiosamente. Madame estava impaciente.
– Finalmente, Sophie. Pensei que você nunca viesse. Sophie não disse nada; não havia nada a dizer. Madame estava parada junto ao armário aberto. Uma porção de roupas estava pendurada em seu braço e havia mais roupas em um monte sobre a cama.
“Une beauté à la Rubens”, seu marido costumava chamá-la quando se mostrava mais carinhoso. Gostava dessas mulheres grandes, esplêndidas, imponentes. Nada desses canos flexíveis para ele. “Hélène Fourmont” era seu apelido para ela.
– Algum dia — Madame costumava dizer aos amigos — eu tenho que ir até o Louvre ver meu retrato. O feito por Rubens, sabe. É extraordinário uma pessoa morar a vida inteira em Paris e nunca ter ido ao Louvre. Você não acha?
Essa noite ela estava soberba. As faces estavam enrubescidas; os olhos azuis brilhavam com um fulgor incomum entre as longas pestanas; os cabelos curtos, castanho-avermelhados, estavam despenteados.
– Amanhã, Sophie, nós partiremos para Roma — ela anunciou dramaticamente. — Amanhã de manhã. — Enquanto falava tirou outro vestido do armário e jogou-o na cama. Com o movimento seu roupão abriu-se, e houve uma visão de roupas de baixo enfeitadas e de carne branca e exuberante. — Temos que fazer as malas imediatamente.
– Por quanto tempo, Madame?
– Quinze dias, três meses; como vou saber?
– Faz diferença, Madame.
– O importante é ir embora. Não vou voltar a esta casa, depois do que me foi dito hoje, até que me peçam humildemente.
– Então é melhor levarmos o baú grande, Madame; vou buscá-lo.
O ar no quarto de guardados estava insuportável, cheirava a poeira e couro. O baú grande estava enfiado num canto distante. Ela teve de inclinar-se e esforçar-se para poder puxá-lo para fora. O verme e as estrelas coloridas piscavam diante de seus olhos; sentiu-se tonta quando se endireitou.
– Vou ajudá-la, Sophie — disse Madame, quando a empregada voltou arrastando o baú pesado atrás de si. Que cara de morte essa mulher tinha ultimamente! Ela odiava ter pessoas velhas e feias perto de si. Mas Sophie era tão eficiente; seria loucura livrar-se dela.
– Madame não precisa se preocupar. — Isso não teria fim, Sophie sabia, se Madame começasse a abrir gavetas e jogar coisas. — É melhor Madame ir dormir. Já é tarde.
Não, não. Ela não conseguiria dormir. Estava enervada a tal ponto… Esses homens… Que animalidade! Ninguém era escravo deles. Ninguém queria ser tratado assim.
Sophie arrumava o baú. Um dia inteiro na cama, em uma cama grande e macia como a de Madame. Cochilar, acordar por um momento, cochilar novamente.
– O último jogo dele — Madame dizia com indignação — é me dizer que não tem dinheiro. Não posso comprar roupas, diz. Grotesco demais. Não posso andar nua por aí, posso? — Ergueu as mãos. — E, quanto a dizer que ele não pode pagar, isso é besteira pura. Pode, perfeitamente bem. Só que ele é mau, mau, horrivelmente mau. E se ao menos fizesse um trabalho honesto, para variar, em vez de escrever versos tolos e publicá-los por sua própria conta, teria muito dinheiro. — Caminhou de um lado para o outro no quarto. — Além disso há o pai dele — continuou. — Para que ele serve eu gostaria de saber. “Você deve se orgulhar de ter um marido poeta”, diz. — Ela fez a voz tremer como a de um velho. — Mal posso me conter para não rir na cara dele. “E que versos lindos Hégésippe escreve sobre você! Que paixão, que fogo!” — Pensando no velho, ela esboçou uma careta e fez a cabeça vacilar, o dedo tremer e as pernas capengarem. — E quando se pensa que o pobre Hégésippe é calvo e pinta os poucos cabelos que tem… — Ela riu. — Quanto à paixão de que ele tanto fala em seus detestáveis versos, é tudo pura invenção. Mas, minha boa Sophie, em que você está pensando? Por que está guardando esse vestido verde velho e horroroso?
Sophie tirou o vestido do baú sem dizer coisa alguma. Por que essa mulher foi escolher logo esta noite para parecer tão terrivelmente doente? Tinha o rosto amarelo e os dentes azuis. Madame estremeceu; era horrível demais. Devia mandá-la para a cama. Mas, afinal, o trabalho tinha de ser feito. Que é que se podia fazer? Ela se sentia mais que nunca melindrada.
– A vida é terrível. — Suspirando, sentou-se pesadamente na beirada da cama. As molas flexíveis sacudiram-na suavemente uma ou duas vezes. — Ser casada com um homem assim. Logo estarei ficando velha e gorda. E nem uma vez infiel. Mas veja como ele me trata. — Tornou a levantar-se e começou a caminhar sem rumo pelo quarto. — Não vou aguentar isso — explodiu.
Parou em frente ao espelho comprido e ficou admirando sua figura trágica e esplêndida. Ninguém acreditaria, olhando para ela, que tinha mais de trinta anos. Atrás da beleza trágica ela podia ver no espelho uma criatura velha, magra e infeliz, com rosto amarelo e dentes azuis, acocorada junto ao baú. Realmente, era desagradável demais. Sophie parecia uma dessas mendigas que se veem nas manhãs frias, paradas na sarjeta. A pessoa passa depressa, tentando não olhar para elas? Ou para, abre a bolsa e lhes dá uma moeda — até mesmo uma nota de dois francos, se não se tem trocado? Seja o que for que faça, a pessoa fica sempre desconfortável, sempre se sente como se desculpando por suas pelicas. Era isso que dava andar. Se a pessoa tivesse um carro — mas essa era outra das maldades de Hégésippe —, não teria, viajando atrás de janelas fechadas, que tomar consciência delas. Ela deu as costas ao espelho.
– Não vou aguentar — disse, tentando não pensar nas mendigas, em dentes azuis e rostos amarelos. — Não vou aguentar. — Deixou-se cair numa cadeira.
Mas pensar em um amante com rosto amarelo e dentes azuis e desiguais! Ela fechou os olhos, estremecendo ao pensar nisso. Seria o bastante para deixar a pessoa doente. Sentiu-se impelida a dar outra olhada: os olhos de Sophie tinham a cor de chumbo esverdeado, sem vida. Que é que se podia fazer? O rosto da mulher era uma repreensão, uma acusação. E, além disso, vê-la fazia-a sentir-se verdadeiramente doente. Nunca tinha ficado tão profundamente irritada.
Sophie ergueu-se lentamente e com dificuldade; uma expressão de dor cruzou seu rosto. Lentamente ela caminhou para a cômoda, lentamente contou seis pares de meias de seda. Tornou a virar-se para o baú. Essa mulher era um cadáver ambulante!
– A vida é terrível — Madame repetiu com convicção. — Terrível, terrível, terrível.
Devia mandar a mulher para a cama. Mas nunca conseguiria arrumar as coisas sozinha. E era tão importante ir embora na manhã seguinte. Ela tinha dito a Hégésippe que iria e ele simplesmente rira; não tinha acreditado. Desta vez tinha que lhe dar uma lição. Em Roma ela veria Luigino. Um rapaz tão encantador, e marquês, também. Talvez… Mas ela não conseguia pensar em coisa alguma além do rosto de Sophie; os olhos plúmbeos, os dentes azulados, a pele amarela e enrugada.
– Sophie — disse de repente; era com dificuldade que não gritava —, olhe em minha penteadeira. Vai ver uma caixa de ruge, o Dorin número 24. Coloque um pouco no rosto. E há um bastão de pomada para os lábios na gaveta da direita.
Manteve os olhos resolutamente afastados enquanto Sophie se levantava (com que horrível estalar das juntas!), caminhava até a penteadeira e ficava parada ali, ruidosa, durante o que parecia ser uma eternidade. Que vida, meu Deus, que vida! Passos lentos voltavam. Ela abriu os olhos. Ah, isso era melhor, muito melhor.
– Obrigada, Sophie. Você parece muito menos cansada agora. — Levantou-se vivamente. — E agora temos que nos apressar. — Cheia de energia, ela correu para o armário. — Meu Deus! — exclamou, levantando as mãos. — Você esqueceu de pegar meu vestido azul de noite. Como pode ser tão estúpida, Sophie?
Aldous Huxley
sábado, novembro 29
Recusa
Não entendo, não engulo este latim:
Perinde ac cadaver.
“Você tem que obedecer como um cadáver.”
Cadáver obedece?
Tanto vale morrer como viver?
Para isso nos chamam, nos modelam?
Bem faz Padre Filippo:
cansado de obedecer, vai dar o fora
para viver no mundo largo
a fascinante experiência de só receber ordens
do seu tumultuoso coração.
Carlos Drummond de Andrade, "Boitempo – Esquecer para lembrar"
Perinde ac cadaver.
“Você tem que obedecer como um cadáver.”
Cadáver obedece?
Tanto vale morrer como viver?
Para isso nos chamam, nos modelam?
Bem faz Padre Filippo:
cansado de obedecer, vai dar o fora
para viver no mundo largo
a fascinante experiência de só receber ordens
do seu tumultuoso coração.
Carlos Drummond de Andrade, "Boitempo – Esquecer para lembrar"
Olhos de cão azul
Então me olhou. Eu pensei que me olhava pela primeira vez. Logo, porém, quando deu a volta por trás do velador e eu continuava sentindo sobre o ombro, às minhas costas, seu escorregadio e gorduroso olhar, compreendi que eu é que a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas de trás. Depois disso eu a vi aí, como em todas as noites, parada junto ao velador, olhando-me. Durante breves minutos só fizemos isso: olhar-nos. Eu olhando-a da cadeira, que equilibrava em uma de suas pernas de trás. Ela de pé, com uma mão longa e quieta sobre o velador, olhando-me. Via-lhe as pálpebras iluminadas como em todas as noites. Foi então que recordei o de sempre, quando lhe disse: Olhos de cão azul. Ela me disse, sem tirar a mão do velador: “Isso. Nunca mais esqueceremos.” Desapareceu, suspirando: “Olhos de cão azul. Escrevi isso por toda parte.”
Eu a vi caminhar até a penteadeira. Aparecer na lua cheia do espelho, olhando-me agora ao fim de uma ida e volta de luz matemática. Eu a vi continuar me olhando com seus grandes olhos de cinza ainda viva: olhando-me enquanto abria a caixinha chapeada de nacar rosado. Eu a vi empoar o nariz. Quando acabou, fechou a caixinha, voltou a ficar em pé e caminhou de novo até o velador, dizendo: “Temo que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas”; e estendeu sobre a chama a mesma mão comprida e trêmula que estivera aquecendo antes de sentar-se ao espelho. Então disse: “Não sente frio?” E eu lhe disse: “Às vezes.” E ela me disse: “Deve estar sentindo agora.” E então compreendi por que não pudera estar só na cadeira. Era o frio que me dava a certeza de minha solidão. “Agora estou sentindo — disse. — E é esquisito porque a noite está quente. Talvez o lençol tenha caído.” Ela não respondeu. Começou outra vez a caminhar até o espelho e voltei a girar sobre a cadeira para ficar de costas para ela. Sem vê-la, sabia o que estava fazendo. Sabia que estava outra vez sentada diante do espelho, vendo minhas costas, que tiveram tempo de chegar até o fundo do espelho e encontrar-se com o olhar dela, que também tivera o tempo justo de chegar ao fundo e voltar — antes que a mão tivesse tempo de iniciar a segunda volta — até os lábios, que estavam agora besuntados de batom, desde a primeira volta da mão diante do espelho. Eu via, diante de mim, a parede lisa, que era como outro espelho cego onde eu não a via — sentada às minhas costas —, mas imaginando-a onde estaria se, em lugar da parede, houvesse ali um espelho. “Vejo você”, disse-lhe. E vi na parede como se ela tivesse levantado os olhos e me visse de costas na cadeira, no fundo do espelho, com o rosto voltado para a parede. Depois eu a vi baixar as pálpebras outra vez, e ficar com os olhos parados em seu corpinho, sem falar. Então voltei a dizer-lhe: “Vejo você.” E ela voltou a levantar os olhos do seu corpinho. “É impossível”, disse. Eu perguntei por quê. E ela, outra vez com os olhos parados no corpinho: “Porque você tem o rosto voltado para a parede.” Então eu fiz girar a cadeira. Tinha o cigarro apertado na boca. Quando fiquei diante do espelho ela estava outra vez junto ao velador. Agora tinha as mãos abertas sobre a chama, como duas asas abertas de galinha, assando-se, e com o rosto sombreado pelos próprios dedos. “Acho que vou me resfriar — disse. — Esta cidade deve ser gelada.“ Voltou o rosto de perfil e sua pele cobreada ao vermelho tornou-se repentinamente triste. “Faça algo contra isso”, disse. E ela começou a despir-se, peça por peça, começando por cima; pelo corpinho. Disse-lhe: “Vou me virar para a parede.” Ela disse: “Não. De qualquer modo você me verá, como me viu quando estava de costas.” E não acabara de dizê-lo quando já estava quase toda despida, com a chama lambendo sua longa pele acobreada. “Sempre quis ver você assim, com a pele da barriga cheia de furos fundos, como se os tivessem feito a pau.” E antes que eu percebesse que minhas palavras se tornaram rudes diante de sua mudez, ela ficou imóvel, aquecendo-se junto ao velador, e disse: “Às vezes acho que sou metálica.” Guardou silêncio um instante. A posição das mãos sobre a chama mudou ligeiramente. Eu disse: “Às vezes, em outros sonhos, pensei que você não era senão uma estatuinha de bronze no canto de algum museu. Talvez por isso sinta frio.” E ela disse: “Às vezes, quando durmo sobre o coração, sinto que meu corpo fica oco e a pele como uma lâmina. Então, quando o sangue me golpeia por dentro, é como se alguém estivesse me chamando com os nós dos dedos no ventre e sinto meu próprio som de cobre na cama. É como se fosse assim como você diz: de metal laminado.” Aproximou-se mais do velador. “Gostaria de ouvir você”, disse. E ela disse: “Se alguma vez nos encontrarmos, ponha o ouvido em minhas costelas, quando eu dormir sobre o lado esquerdo, e me ouvirá ressonar. Sempre desejei que você fizesse isso alguma vez.” Eu a ouvi respirar fundo enquanto falava. Disse, então, que durante anos não fizera nada diferente disso. Sua vida fora dedicada a me encontrar na realidade, atrás dessa frase identificadora: Olhos de cão azul. Na rua ia dizendo em voz alta, que era uma maneira de dizer à única pessoa que teria podido entendê-la:
“Eu sou a que chega aos seus sonhos todas as noites e lhe diz isto: Olhos de cão azul.” E disse que ia aos restaurantes e dizia a todos os garçons, antes de fazer o pedido: Olhos de cão azul. Mas os garçons faziam uma respeitosa reverência, sem que recordassem nunca haver dito isso em seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e riscava com a faca o verniz das mesas. Olhos de cão azul. E nos espelhos embaciados dos hotéis, das estações, de todos os edifícios públicos, escrevia com o indicador: Olhos de cão azul. Disse que uma vez chegou a uma drogaria e reconheceu o mesmo cheiro que sentira em seu quarto uma noite, depois de haver sonhado comigo. “Deve estar perto”, pensou, vendo o lajeado limpo e novo da drogaria. Então se aproximou do empregado e lhe disse: “Sonho sempre com um homem que me diz: Olhos de cão azul.” E disse que o vendedor a olhara nos olhos e lhe disse: “Na realidade, senhorita, tem os olhos assim.” E ela lhe disse: “Preciso encontrar o homem que me disse em sonhos isso mesmo.” E o vendedor ficou rindo, caminhando para o outro lado do balcão. Ela continuou vendo o lajeado limpo e sentindo o cheiro. E abriu a bolsa e se ajoelhou e escreveu sobre o lajeado, em grandes letras vermelhas, com o batom: Olhos de cão azul. O vendedor voltou de onde estava. Disse-lhe: “Senhorita, manchou o lajeado.” Entregou-lhe um pano úmido, dizendo: “Limpe-o.” E ela disse, ainda junto ao velador, que passou toda a tarde de gatinhas, lavando o lajeado, e dizendo: Olhos de cão azul, até que muita gente se juntou à porta e disse que estava louca.
Agora, quando acabou de falar, eu continuava no canto, sentado, equilibrando a cadeira. “Eu procuro me lembrar todos os dias da frase com que devo encontrá-la — disse. — Agora acho que amanhã não esquecerei. No entanto, sempre disse o mesmo e sempre me esqueço ao acordar quais são as palavras com que posso encontrá-la.” E ela disse: “Você mesmo as inventou desde o primeiro dia.” E eu lhe disse: “Eu as inventei porque vi seus olhos cinzentos. Mas nunca me lembro delas na manhã seguinte.” Então ela, com os punhos fechados junto ao velador, respirou fundo: “Se pelo menos pudesse recordar agora em que cidade estive escrevendo aquilo.”
Seus dentes apertados luziram com a chama. “Gostaria de tocar em você agora”, disse. Ela levantou o rosto, que estivera olhando o fogo; levantou o olhar ardendo, abrasando-se também como ela, como suas mãos; e eu senti que me viu, no canto, onde continuava sentado, mexendo-me na cadeira. “Você nunca me disse isso”, disse. “Agora digo e é verdade”, disse. Do outro lado do velador ela pediu um cigarro. O toco desaparecera de entre os meus dedos. Esquecera de que estava fumando. Disse: “Não sei por que não posso recordar onde escrevi aquilo.” E eu lhe disse: “Pela mesma razão que eu não poderei recordar amanhã as palavras.” E ela disse, triste: “Não. É que às vezes acho que também sonhei isso.” Levantei-me e caminhei até o velador. Ela estava um pouco mais além, e eu continuava caminhando, com os cigarros e os fósforos na mão, certo de que não passaria do velador. Estendi-lhe o cigarro. Ela o apertou entre os lábios e se inclinou para alcançar a chama, antes que eu tivesse tempo de acender o fósforo: “Em alguma cidade do mundo, em todas as paredes, devem estar escritas essas palavras: Olhos de cão azul — disse. — Se amanhã as recordasse, iria buscar você.” Ela levantou outra vez a cabeça e tinha já a brasa acesa nos lábios. Olhos de cão azul, suspirou, recordando, com o cigarro caído sobre o queixo e um olho meio aberto. Aspirou depois a fumaça, com o cigarro entre os dedos, e exclamou: “Isto já é outra coisa. Estou ficando com calor.” E o disse com a voz um pouco morna e fugidia, como se não o tivesse dito realmente mas, como se o tivesse escrito em um papel e o tivesse aproximado da chama enquanto eu lia: “Estou sentindo — e ela tivesse continuado com o papelzinho entre o polegar e o indicador, dando-lhe voltas, enquanto ia se consumindo e eu acabava de ler — … calor”, antes que o papelzinho se consumisse por inteiro e caísse ao chão enrugado, diminuído, convertido em um leve pó de cinza: “Assim é melhor — disse. — Às vezes me dá medo ver você assim. Tremendo junto ao velador.”
Nós nos víamos há vários anos. Às vezes, quando já estávamos juntos, alguém deixava cair uma colherinha e acordávamos. Pouco a pouco fomos compreendendo que nossa amizade estava subordinada às coisas, aos acontecimentos mais simples. Nossos encontros terminavam sempre assim, com o cair de uma colherinha na madrugada.
Agora, junto ao velador, estava me olhando. Eu me lembrava que antes também me olhara assim, desde aquele remoto sonho em que fiz girar a cadeira sobre suas pernas de trás e fiquei diante de uma desconhecida de olhos cinzentos. Foi nesse sonho que lhe perguntei pela primeira vez: “Quem é você?” E ela me disse: “Não me lembro.” Eu lhe disse: “Mas acho que nos vimos antes.” E ela disse, indiferente: “Acho que uma vez sonhei com você, com este mesmo quarto.” E eu lhe disse: “É verdade. Já estou me lembrando.” E ela disse: “Que curioso. É verdade que nos encontramos em outros sonhos.”
Deu duas tragadas no cigarro. Eu estava ainda parado diante do velador quando a olhei de repente. Olhei-a de cima para baixo e ainda estava acobreada; não mais, porém, de metal duro e frio, mas de cobre amarelo, suave, maleável. “Gostaria de tocar em você”, voltei a dizer. E ela disse: “Você poria tudo a perder.” Eu disse: “Agora não importa. Bastará que viremos o travesseiro para que nos encontremos novamente.” Estendi, então, a mão por cima do velador. Ela não se mexeu. “Poria tudo a perder”, tornou a dizer, antes que eu pudesse tocar nela. “Talvez, se você der a volta por trás do velador, acordaríamos assustados quem sabe em que parte do mundo.” Mas eu insisti: “Não importa.” E ela disse: “Se virássemos o travesseiro, voltaríamos a nos encontrar. Mas você, quando acordar, terá esquecido.” Comecei a me movimentar para o canto. Ela ficou atrás, aquecendo as mãos sobre a chama. E ainda eu não estava junto à cadeira quando a ouvi dizer às minhas costas: “Quando acordo à meia-noite, fico dando voltas na cama, com o linho da coberta ardendo nos meus joelhos e repetindo até o amanhecer: Olhos de cão azul.”
Então fiquei com o rosto voltado para a parede. “Já está amanhecendo — disse sem olhá-la. — Quando deram duas horas estava acordado e já faz muito tempo.” Eu me dirigi à porta. Quando agarrei a maçaneta, ouvi outra vez sua voz igual, invariável: “Não abra essa porta — disse. — O corredor está cheio de sonhos difíceis.” E eu lhe disse: “Como é que você sabe?” E ela me disse: “Porque há pouco estive ali e precisei voltar quando descobri que estava adormecida sobre o coração.” Eu mantinha a porta entreaberta. Empurrei-a mais um pouco e um arzinho frio e tênue me trouxe um fresco cheiro a terra vegetal, a campo úmido. Ela falou outra vez. Virei-me movimentando ainda a porta montada em dobradiças silenciosas, e lhe disse: “Acho que não há nenhum corredor aqui fora. Sinto o cheiro do campo.” E ela, um pouco distante, me disse: “Conheço isto mais que você. O que acontece é que lá fora está uma mulher sonhando com o campo.” Cruzou os braços sobre a chama. Continuou falando: “É aquela mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca pôde sair da cidade.” Eu me lembrava de ter visto a mulher em algum sonho anterior, mas sabia, já com a porta entreaberta, que dentro de meia hora devia descer para o café. Disse então: “De qualquer modo, preciso sair daqui para acordar.”
Fora o vento adejou um instante, ficou quieto depois e se ouviu a respiração de alguém que dormia e que acabava de se virar na cama. O vento do campo parou. Já não houve mais cheiros. “Amanhã reconhecerei você por isso — disse. — Reconhecerei você quando vir na rua uma mulher que escreva nas paredes: Olhos de cão azul.” E ela, com um sorriso triste — que já era um sorriso de renúncia diante do impossível, do inalcançável, disse: “Apesar de tudo, você não recordará nada durante o dia.” E voltou a pôr as mãos sobre o velador, com o semblante sombreado por uma névoa amarga: “Você é o único homem que, ao acordar, não recorda nada do que sonhou”.
Gabriel García Márquez
Eu a vi caminhar até a penteadeira. Aparecer na lua cheia do espelho, olhando-me agora ao fim de uma ida e volta de luz matemática. Eu a vi continuar me olhando com seus grandes olhos de cinza ainda viva: olhando-me enquanto abria a caixinha chapeada de nacar rosado. Eu a vi empoar o nariz. Quando acabou, fechou a caixinha, voltou a ficar em pé e caminhou de novo até o velador, dizendo: “Temo que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas”; e estendeu sobre a chama a mesma mão comprida e trêmula que estivera aquecendo antes de sentar-se ao espelho. Então disse: “Não sente frio?” E eu lhe disse: “Às vezes.” E ela me disse: “Deve estar sentindo agora.” E então compreendi por que não pudera estar só na cadeira. Era o frio que me dava a certeza de minha solidão. “Agora estou sentindo — disse. — E é esquisito porque a noite está quente. Talvez o lençol tenha caído.” Ela não respondeu. Começou outra vez a caminhar até o espelho e voltei a girar sobre a cadeira para ficar de costas para ela. Sem vê-la, sabia o que estava fazendo. Sabia que estava outra vez sentada diante do espelho, vendo minhas costas, que tiveram tempo de chegar até o fundo do espelho e encontrar-se com o olhar dela, que também tivera o tempo justo de chegar ao fundo e voltar — antes que a mão tivesse tempo de iniciar a segunda volta — até os lábios, que estavam agora besuntados de batom, desde a primeira volta da mão diante do espelho. Eu via, diante de mim, a parede lisa, que era como outro espelho cego onde eu não a via — sentada às minhas costas —, mas imaginando-a onde estaria se, em lugar da parede, houvesse ali um espelho. “Vejo você”, disse-lhe. E vi na parede como se ela tivesse levantado os olhos e me visse de costas na cadeira, no fundo do espelho, com o rosto voltado para a parede. Depois eu a vi baixar as pálpebras outra vez, e ficar com os olhos parados em seu corpinho, sem falar. Então voltei a dizer-lhe: “Vejo você.” E ela voltou a levantar os olhos do seu corpinho. “É impossível”, disse. Eu perguntei por quê. E ela, outra vez com os olhos parados no corpinho: “Porque você tem o rosto voltado para a parede.” Então eu fiz girar a cadeira. Tinha o cigarro apertado na boca. Quando fiquei diante do espelho ela estava outra vez junto ao velador. Agora tinha as mãos abertas sobre a chama, como duas asas abertas de galinha, assando-se, e com o rosto sombreado pelos próprios dedos. “Acho que vou me resfriar — disse. — Esta cidade deve ser gelada.“ Voltou o rosto de perfil e sua pele cobreada ao vermelho tornou-se repentinamente triste. “Faça algo contra isso”, disse. E ela começou a despir-se, peça por peça, começando por cima; pelo corpinho. Disse-lhe: “Vou me virar para a parede.” Ela disse: “Não. De qualquer modo você me verá, como me viu quando estava de costas.” E não acabara de dizê-lo quando já estava quase toda despida, com a chama lambendo sua longa pele acobreada. “Sempre quis ver você assim, com a pele da barriga cheia de furos fundos, como se os tivessem feito a pau.” E antes que eu percebesse que minhas palavras se tornaram rudes diante de sua mudez, ela ficou imóvel, aquecendo-se junto ao velador, e disse: “Às vezes acho que sou metálica.” Guardou silêncio um instante. A posição das mãos sobre a chama mudou ligeiramente. Eu disse: “Às vezes, em outros sonhos, pensei que você não era senão uma estatuinha de bronze no canto de algum museu. Talvez por isso sinta frio.” E ela disse: “Às vezes, quando durmo sobre o coração, sinto que meu corpo fica oco e a pele como uma lâmina. Então, quando o sangue me golpeia por dentro, é como se alguém estivesse me chamando com os nós dos dedos no ventre e sinto meu próprio som de cobre na cama. É como se fosse assim como você diz: de metal laminado.” Aproximou-se mais do velador. “Gostaria de ouvir você”, disse. E ela disse: “Se alguma vez nos encontrarmos, ponha o ouvido em minhas costelas, quando eu dormir sobre o lado esquerdo, e me ouvirá ressonar. Sempre desejei que você fizesse isso alguma vez.” Eu a ouvi respirar fundo enquanto falava. Disse, então, que durante anos não fizera nada diferente disso. Sua vida fora dedicada a me encontrar na realidade, atrás dessa frase identificadora: Olhos de cão azul. Na rua ia dizendo em voz alta, que era uma maneira de dizer à única pessoa que teria podido entendê-la:
“Eu sou a que chega aos seus sonhos todas as noites e lhe diz isto: Olhos de cão azul.” E disse que ia aos restaurantes e dizia a todos os garçons, antes de fazer o pedido: Olhos de cão azul. Mas os garçons faziam uma respeitosa reverência, sem que recordassem nunca haver dito isso em seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e riscava com a faca o verniz das mesas. Olhos de cão azul. E nos espelhos embaciados dos hotéis, das estações, de todos os edifícios públicos, escrevia com o indicador: Olhos de cão azul. Disse que uma vez chegou a uma drogaria e reconheceu o mesmo cheiro que sentira em seu quarto uma noite, depois de haver sonhado comigo. “Deve estar perto”, pensou, vendo o lajeado limpo e novo da drogaria. Então se aproximou do empregado e lhe disse: “Sonho sempre com um homem que me diz: Olhos de cão azul.” E disse que o vendedor a olhara nos olhos e lhe disse: “Na realidade, senhorita, tem os olhos assim.” E ela lhe disse: “Preciso encontrar o homem que me disse em sonhos isso mesmo.” E o vendedor ficou rindo, caminhando para o outro lado do balcão. Ela continuou vendo o lajeado limpo e sentindo o cheiro. E abriu a bolsa e se ajoelhou e escreveu sobre o lajeado, em grandes letras vermelhas, com o batom: Olhos de cão azul. O vendedor voltou de onde estava. Disse-lhe: “Senhorita, manchou o lajeado.” Entregou-lhe um pano úmido, dizendo: “Limpe-o.” E ela disse, ainda junto ao velador, que passou toda a tarde de gatinhas, lavando o lajeado, e dizendo: Olhos de cão azul, até que muita gente se juntou à porta e disse que estava louca.
Agora, quando acabou de falar, eu continuava no canto, sentado, equilibrando a cadeira. “Eu procuro me lembrar todos os dias da frase com que devo encontrá-la — disse. — Agora acho que amanhã não esquecerei. No entanto, sempre disse o mesmo e sempre me esqueço ao acordar quais são as palavras com que posso encontrá-la.” E ela disse: “Você mesmo as inventou desde o primeiro dia.” E eu lhe disse: “Eu as inventei porque vi seus olhos cinzentos. Mas nunca me lembro delas na manhã seguinte.” Então ela, com os punhos fechados junto ao velador, respirou fundo: “Se pelo menos pudesse recordar agora em que cidade estive escrevendo aquilo.”
Seus dentes apertados luziram com a chama. “Gostaria de tocar em você agora”, disse. Ela levantou o rosto, que estivera olhando o fogo; levantou o olhar ardendo, abrasando-se também como ela, como suas mãos; e eu senti que me viu, no canto, onde continuava sentado, mexendo-me na cadeira. “Você nunca me disse isso”, disse. “Agora digo e é verdade”, disse. Do outro lado do velador ela pediu um cigarro. O toco desaparecera de entre os meus dedos. Esquecera de que estava fumando. Disse: “Não sei por que não posso recordar onde escrevi aquilo.” E eu lhe disse: “Pela mesma razão que eu não poderei recordar amanhã as palavras.” E ela disse, triste: “Não. É que às vezes acho que também sonhei isso.” Levantei-me e caminhei até o velador. Ela estava um pouco mais além, e eu continuava caminhando, com os cigarros e os fósforos na mão, certo de que não passaria do velador. Estendi-lhe o cigarro. Ela o apertou entre os lábios e se inclinou para alcançar a chama, antes que eu tivesse tempo de acender o fósforo: “Em alguma cidade do mundo, em todas as paredes, devem estar escritas essas palavras: Olhos de cão azul — disse. — Se amanhã as recordasse, iria buscar você.” Ela levantou outra vez a cabeça e tinha já a brasa acesa nos lábios. Olhos de cão azul, suspirou, recordando, com o cigarro caído sobre o queixo e um olho meio aberto. Aspirou depois a fumaça, com o cigarro entre os dedos, e exclamou: “Isto já é outra coisa. Estou ficando com calor.” E o disse com a voz um pouco morna e fugidia, como se não o tivesse dito realmente mas, como se o tivesse escrito em um papel e o tivesse aproximado da chama enquanto eu lia: “Estou sentindo — e ela tivesse continuado com o papelzinho entre o polegar e o indicador, dando-lhe voltas, enquanto ia se consumindo e eu acabava de ler — … calor”, antes que o papelzinho se consumisse por inteiro e caísse ao chão enrugado, diminuído, convertido em um leve pó de cinza: “Assim é melhor — disse. — Às vezes me dá medo ver você assim. Tremendo junto ao velador.”
Nós nos víamos há vários anos. Às vezes, quando já estávamos juntos, alguém deixava cair uma colherinha e acordávamos. Pouco a pouco fomos compreendendo que nossa amizade estava subordinada às coisas, aos acontecimentos mais simples. Nossos encontros terminavam sempre assim, com o cair de uma colherinha na madrugada.
Agora, junto ao velador, estava me olhando. Eu me lembrava que antes também me olhara assim, desde aquele remoto sonho em que fiz girar a cadeira sobre suas pernas de trás e fiquei diante de uma desconhecida de olhos cinzentos. Foi nesse sonho que lhe perguntei pela primeira vez: “Quem é você?” E ela me disse: “Não me lembro.” Eu lhe disse: “Mas acho que nos vimos antes.” E ela disse, indiferente: “Acho que uma vez sonhei com você, com este mesmo quarto.” E eu lhe disse: “É verdade. Já estou me lembrando.” E ela disse: “Que curioso. É verdade que nos encontramos em outros sonhos.”
Deu duas tragadas no cigarro. Eu estava ainda parado diante do velador quando a olhei de repente. Olhei-a de cima para baixo e ainda estava acobreada; não mais, porém, de metal duro e frio, mas de cobre amarelo, suave, maleável. “Gostaria de tocar em você”, voltei a dizer. E ela disse: “Você poria tudo a perder.” Eu disse: “Agora não importa. Bastará que viremos o travesseiro para que nos encontremos novamente.” Estendi, então, a mão por cima do velador. Ela não se mexeu. “Poria tudo a perder”, tornou a dizer, antes que eu pudesse tocar nela. “Talvez, se você der a volta por trás do velador, acordaríamos assustados quem sabe em que parte do mundo.” Mas eu insisti: “Não importa.” E ela disse: “Se virássemos o travesseiro, voltaríamos a nos encontrar. Mas você, quando acordar, terá esquecido.” Comecei a me movimentar para o canto. Ela ficou atrás, aquecendo as mãos sobre a chama. E ainda eu não estava junto à cadeira quando a ouvi dizer às minhas costas: “Quando acordo à meia-noite, fico dando voltas na cama, com o linho da coberta ardendo nos meus joelhos e repetindo até o amanhecer: Olhos de cão azul.”
Então fiquei com o rosto voltado para a parede. “Já está amanhecendo — disse sem olhá-la. — Quando deram duas horas estava acordado e já faz muito tempo.” Eu me dirigi à porta. Quando agarrei a maçaneta, ouvi outra vez sua voz igual, invariável: “Não abra essa porta — disse. — O corredor está cheio de sonhos difíceis.” E eu lhe disse: “Como é que você sabe?” E ela me disse: “Porque há pouco estive ali e precisei voltar quando descobri que estava adormecida sobre o coração.” Eu mantinha a porta entreaberta. Empurrei-a mais um pouco e um arzinho frio e tênue me trouxe um fresco cheiro a terra vegetal, a campo úmido. Ela falou outra vez. Virei-me movimentando ainda a porta montada em dobradiças silenciosas, e lhe disse: “Acho que não há nenhum corredor aqui fora. Sinto o cheiro do campo.” E ela, um pouco distante, me disse: “Conheço isto mais que você. O que acontece é que lá fora está uma mulher sonhando com o campo.” Cruzou os braços sobre a chama. Continuou falando: “É aquela mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca pôde sair da cidade.” Eu me lembrava de ter visto a mulher em algum sonho anterior, mas sabia, já com a porta entreaberta, que dentro de meia hora devia descer para o café. Disse então: “De qualquer modo, preciso sair daqui para acordar.”
Fora o vento adejou um instante, ficou quieto depois e se ouviu a respiração de alguém que dormia e que acabava de se virar na cama. O vento do campo parou. Já não houve mais cheiros. “Amanhã reconhecerei você por isso — disse. — Reconhecerei você quando vir na rua uma mulher que escreva nas paredes: Olhos de cão azul.” E ela, com um sorriso triste — que já era um sorriso de renúncia diante do impossível, do inalcançável, disse: “Apesar de tudo, você não recordará nada durante o dia.” E voltou a pôr as mãos sobre o velador, com o semblante sombreado por uma névoa amarga: “Você é o único homem que, ao acordar, não recorda nada do que sonhou”.
Gabriel García Márquez
Livrarias de rua de São Paulo florescem num cenário improvável
São Paulo passa por uma das fases mais vibrantes e diversas de sua história livreira e já voltou a figurar entre as cidades brasileiras de vida literária pulsante. A face mais vistosa desse momento são as livrarias de rua, que voltaram a florescer e, estima-se, que já são mais de 100 espalhadas por quase toda a cidade. Elas crescem nas brechas do mercado livreiro, mas também nas franjas da escassa oferta de espaços de convivência e encontros na megalópole, com estratégias que quase sempre passam por especialização temática, curadoria e promoção de atividades culturais nas suas comunidades. Criar e distribuir fartamente e de graça um mapa de livrarias de rua, como o que está sendo lançado agora, insere-se nesse contexto e coroa o esforço coletivo de um grupo de 37 livreiras e livreiros.
A tendência de expansão das livrarias de rua insere-se como novo capítulo da história curiosa, longa e importante do livro e leitura em São Paulo. Esses espaços começam a se consolidar ainda no século XIX, com a fundação da Academia de Direito do Largo São Francisco, e multiplicam-se nas primeiras décadas do século XX no Centro – especialmente em ruas como Barão de Itapetininga, Direita e São Bento. No mesmo período, surgem livrarias que viriam a se tornar referências, como a Livraria Teixeira e a Saraiva, esta fundada inicialmente como Livraria Acadêmica no Lago do ouvidor.
É principalmente a partir dos anos 1950, porém, que as livrarias ganham fôlego, com o surgimento de relevantes editoras nacionais. Nessa época, ainda, as livrarias universitárias se fortalecem e despontam casas que viriam a ser simbólicas, como a Livraria Cultura, fundada em 1947. Já na década de 1970, em meio à violência da ditadura civil-militar, livrarias paulistanas se convertem em polos de resistência cultural, acolhendo debates, saraus, grupos de teatro e divulgação de obras que circulavam à margem da censura oficial.
Nos anos 1990 e 2000, com a popularização dos shoppings e o fortalecimento do varejo de grande escala, São Paulo assiste ao surgimento das megastores. No entanto, já por volta de 2010, a emergência do e-commerce e as transformações na cadeia produtiva do livro em consequência da era digital provocariam uma crise sem precedentes no mercado editorial.
As grandes redes colapsam, entram em recuperação judicial e o setor como um todo passa a enfrentar desafios grandiosos, inclusive relativos a mudanças nos hábitos de consumo de livros, com a introdução do formato digital. Entram em cena as grandes plataformas. Por concentrarem, hoje, a fatia mais significativa das vendas, as plataformas detêm poder incomparável de negociação e promovem uma concorrência predatória, pressionando para baixo as margens de editoras e livrarias, ao mesmo tempo que programam seus algoritmos para promover especialmente best sellers, sufocando, assim, também a bibliodiversidade. Como têm no livro mero chamariz para sua imensa e diversificada vitrine virtual, podem vendê-lo sem margem de lucro ou até por preço inferior ao de custo, prejudicando todo o ecossistema editorial.
A disputa ainda por cima é por um mercado que encolhe, pois o brasileiro lê cada vez menos. A pesquisa Retratos da Leitura de 2024 aponta que nos quatro anos anteriores àquele ano houve uma redução de 6,7 milhões no número de leitores no país.
Curiosamente, é nesse cenário improvável que as livrarias independentes ressurgem com força em São Paulo, num movimento de pura resistência, mas com base em diferenciais que plataforma nenhuma jamais poderá oferecer. Muitas livrarias são especializadas, de bairro, idealizadas por livreiras e livreiros que apostam no diálogo com a rua, na formação leitora da comunidade, na curadoria cuidadosa e na programação cultural autoral. Mais do que pontos de venda de livros, a maior parte se constitui de espaços culturais, de encontros, trocas e construção do imaginário coletivo.
Diante dos desafios em comum, várias livrarias de rua de São Paulo passaram a se reunir nos últimos dois anos para compartilhar ideias e criar ações para fortalecer a atividade e o ecossistema editorial como um todo. As pautas passaram rapidamente das especificidades dos integrantes do grupo (pequeno, mas diverso, com livrarias de curadoria geral e especializadas) a temas de conjuntura, como a falta de regulamentação do mercado, a ausência de políticas públicas de fomento para abertura e manutenção de livrarias independentes, o impacto das plataformas digitais e também das feiras universitárias de livros. Estas absorvem boa parte do orçamento do ano de um sem número de leitores. Eles concentram as compras nesses eventos para aproveitar descontos agressivos que nenhuma livraria independente teria condições de conceder.
Dos encontros surgiu, primeiramente, a campanha “Ame os livros o ano todo. Visite as livrarias de rua”, que teve boa repercussão e chegou a ser notícia de alguns veículos de comunicação, o que estimulou o grupo a pensar novas iniciativas. Veio a Festa do Livro das Livrarias de Rua, simultaneamente à Festa do Livro da USP, para mostrar que as livrarias podem oferecer descontos também, embora mais modestos, e em compensação proporcionam verdadeiras experiências culturais.
O grupo cresceu e este ano decidiu lançar o Mapa de Livrarias de Rua de São Paulo, com endereços e informações das 37 livrarias que aderiram à ideia, em versão online e impressa, esta com tiragem inicial de 40 mil exemplares para distribuição gratuita. Com projeto gráfico do artista visual MZK, o Mapa apresenta as fachadas das 37 livrarias participantes em desenhos da ilustradora Isadora Ferraz. A proposta ganhou apoios e patrocínios de cerca de 30 editoras e algumas outras empresas da cadeia do livro, além da simpatia manifesta de vários setores da sociedade, numa demonstração de reconhecimento da importância das livrarias independentes em São Paulo.
Num país que perde leitores a cada ano, testemunha apático a canibalização do mercado editorial e patina em políticas públicas para o livro e leitura, abrir e manter uma livraria independente é em si um ato de resistência. Criar uma união profícua dos resistentes é um ato político e necessário.
A tendência de expansão das livrarias de rua insere-se como novo capítulo da história curiosa, longa e importante do livro e leitura em São Paulo. Esses espaços começam a se consolidar ainda no século XIX, com a fundação da Academia de Direito do Largo São Francisco, e multiplicam-se nas primeiras décadas do século XX no Centro – especialmente em ruas como Barão de Itapetininga, Direita e São Bento. No mesmo período, surgem livrarias que viriam a se tornar referências, como a Livraria Teixeira e a Saraiva, esta fundada inicialmente como Livraria Acadêmica no Lago do ouvidor.
É principalmente a partir dos anos 1950, porém, que as livrarias ganham fôlego, com o surgimento de relevantes editoras nacionais. Nessa época, ainda, as livrarias universitárias se fortalecem e despontam casas que viriam a ser simbólicas, como a Livraria Cultura, fundada em 1947. Já na década de 1970, em meio à violência da ditadura civil-militar, livrarias paulistanas se convertem em polos de resistência cultural, acolhendo debates, saraus, grupos de teatro e divulgação de obras que circulavam à margem da censura oficial.
Nos anos 1990 e 2000, com a popularização dos shoppings e o fortalecimento do varejo de grande escala, São Paulo assiste ao surgimento das megastores. No entanto, já por volta de 2010, a emergência do e-commerce e as transformações na cadeia produtiva do livro em consequência da era digital provocariam uma crise sem precedentes no mercado editorial.
As grandes redes colapsam, entram em recuperação judicial e o setor como um todo passa a enfrentar desafios grandiosos, inclusive relativos a mudanças nos hábitos de consumo de livros, com a introdução do formato digital. Entram em cena as grandes plataformas. Por concentrarem, hoje, a fatia mais significativa das vendas, as plataformas detêm poder incomparável de negociação e promovem uma concorrência predatória, pressionando para baixo as margens de editoras e livrarias, ao mesmo tempo que programam seus algoritmos para promover especialmente best sellers, sufocando, assim, também a bibliodiversidade. Como têm no livro mero chamariz para sua imensa e diversificada vitrine virtual, podem vendê-lo sem margem de lucro ou até por preço inferior ao de custo, prejudicando todo o ecossistema editorial.
A disputa ainda por cima é por um mercado que encolhe, pois o brasileiro lê cada vez menos. A pesquisa Retratos da Leitura de 2024 aponta que nos quatro anos anteriores àquele ano houve uma redução de 6,7 milhões no número de leitores no país.
Curiosamente, é nesse cenário improvável que as livrarias independentes ressurgem com força em São Paulo, num movimento de pura resistência, mas com base em diferenciais que plataforma nenhuma jamais poderá oferecer. Muitas livrarias são especializadas, de bairro, idealizadas por livreiras e livreiros que apostam no diálogo com a rua, na formação leitora da comunidade, na curadoria cuidadosa e na programação cultural autoral. Mais do que pontos de venda de livros, a maior parte se constitui de espaços culturais, de encontros, trocas e construção do imaginário coletivo.
Diante dos desafios em comum, várias livrarias de rua de São Paulo passaram a se reunir nos últimos dois anos para compartilhar ideias e criar ações para fortalecer a atividade e o ecossistema editorial como um todo. As pautas passaram rapidamente das especificidades dos integrantes do grupo (pequeno, mas diverso, com livrarias de curadoria geral e especializadas) a temas de conjuntura, como a falta de regulamentação do mercado, a ausência de políticas públicas de fomento para abertura e manutenção de livrarias independentes, o impacto das plataformas digitais e também das feiras universitárias de livros. Estas absorvem boa parte do orçamento do ano de um sem número de leitores. Eles concentram as compras nesses eventos para aproveitar descontos agressivos que nenhuma livraria independente teria condições de conceder.
Dos encontros surgiu, primeiramente, a campanha “Ame os livros o ano todo. Visite as livrarias de rua”, que teve boa repercussão e chegou a ser notícia de alguns veículos de comunicação, o que estimulou o grupo a pensar novas iniciativas. Veio a Festa do Livro das Livrarias de Rua, simultaneamente à Festa do Livro da USP, para mostrar que as livrarias podem oferecer descontos também, embora mais modestos, e em compensação proporcionam verdadeiras experiências culturais.
O grupo cresceu e este ano decidiu lançar o Mapa de Livrarias de Rua de São Paulo, com endereços e informações das 37 livrarias que aderiram à ideia, em versão online e impressa, esta com tiragem inicial de 40 mil exemplares para distribuição gratuita. Com projeto gráfico do artista visual MZK, o Mapa apresenta as fachadas das 37 livrarias participantes em desenhos da ilustradora Isadora Ferraz. A proposta ganhou apoios e patrocínios de cerca de 30 editoras e algumas outras empresas da cadeia do livro, além da simpatia manifesta de vários setores da sociedade, numa demonstração de reconhecimento da importância das livrarias independentes em São Paulo.
Num país que perde leitores a cada ano, testemunha apático a canibalização do mercado editorial e patina em políticas públicas para o livro e leitura, abrir e manter uma livraria independente é em si um ato de resistência. Criar uma união profícua dos resistentes é um ato político e necessário.
Fardo
Eles estavam discutindo havia quase três quartos de hora. Abafadas e ininteligíveis, as vozes flutuavam pelo corredor desde o extremo oposto do apartamento. Inclinada sobre sua costura, Sophie perguntou-se, sem muita curiosidade, o que seria dessa vez. Era a voz de Madame que ela ouvia com mais frequência. Aguda de raiva e indignada de lágrimas, ela explodia em rajadas, em jorros. Monsieur era mais controlado, e sua voz mais baixa era suave demais para atravessar com facilidade as portas fechadas e o corredor. Para Sophie, em seu quartinho frio, a briga parecia, na maior parte do tempo, uma série de monólogos de Madame, interrompidos por silêncios estranhos e pesados. Mas, de vez em quando, Monsieur parecia perder completamente a paciência e então não havia silêncio entre as rajadas, e sim um grito áspero, profundo, zangado. Madame mantinha o tom agudo e alto continuamente e sem esmorecer; sua voz tinha, mesmo na raiva, uma monotonia curiosa e regular. Mas Monsieur às vezes falava alto, às vezes baixo, com ênfases, modulações e explosões súbitas, de modo que suas contribuições à discussão, quando eram audíveis, soavam como uma série de explosões distintas. Uau, uau, uau-uau-uau, uau — um cachorro latindo estupidamente.
Depois de algum tempo Sophie não prestou mais atenção ao barulho da briga. Consertava uma das camisolas de Madame, e o trabalho requeria toda a sua atenção. Sentia-se muito cansada; seu corpo todo doía. Tinha sido um dia difícil; a véspera também, e o dia anterior à véspera também. Todos os dias eram dias difíceis, e ela não era mais tão jovem quanto antes. Mais dois anos e teria cinquenta. Todos os dias tinham sido difíceis desde que ela se lembrava. Pensou nos sacos de batatas que costumava carregar quando era menina, no campo. Devagar, devagar ela caminhava pela estrada poeirenta com o saco sobre o ombro. Mais dez passos; podia conseguir isso. Só que nunca era o fim; tinha-se sempre que começar de novo.
Ergueu os olhos da costura, moveu a cabeça de um lado para o outro, piscou. Começava a ver luzes e manchas de cor dançando diante dos olhos; agora isso lhe acontecia com frequência. Uma espécie de verme brilhante e amarelado contorcia-se em direção ao canto direito de seu campo de visão; e embora ele estivesse sempre em movimento para cima, para cima, estava sempre ali no mesmo lugar. E havia estrelas vermelhas e verdes que surgiam, brilhavam e sumiam em torno do verme. Eles se moviam entre ela e a costura; estavam lá quando ela fechava os olhos. Depois de um momento ela continuou o trabalho; Madame queria a camisola muito especialmente na manhã seguinte. Mas era difícil ver atrás do verme.
Houve um súbito aumento de barulho do outro lado do corredor. Uma porta foi aberta; as palavras se articulavam.
– … bien tort, mon ami, si tu crois que je suis ton esclave. Je ferai ce que je voudrai.
— Moi aussi. — Monsieur soltou uma risada áspera, perigosa. Houve o som de passos pesados no corredor, um ruído no porta-guarda-chuvas; então a porta da frente bateu.
Sophie tornou a baixar os olhos para o trabalho. Ah, o verme, as estrelas coloridas, a dolorosa fadiga em todos os seus membros! Se pudesse passar um dia inteiro na cama, uma cama imensa, macia, quente, o dia inteiro…
A campainha assustou-a. Sempre a deixava nervosa, aquele zumbido de vespa furiosa. Levantou-se, deixou o trabalho na mesa, alisou o avental, ajeitou a touca e saiu para o corredor. Mais uma vez a campainha soou furiosamente. Madame estava impaciente.
– Finalmente, Sophie. Pensei que você nunca viesse. Sophie não disse nada; não havia nada a dizer. Madame estava parada junto ao armário aberto. Uma porção de roupas estava pendurada em seu braço e havia mais roupas em um monte sobre a cama.
“Une beauté à la Rubens”, seu marido costumava chamá-la quando se mostrava mais carinhoso. Gostava dessas mulheres grandes, esplêndidas, imponentes. Nada desses canos flexíveis para ele. “Hélène Fourmont” era seu apelido para ela.
– Algum dia — Madame costumava dizer aos amigos — eu tenho que ir até o Louvre ver meu retrato. O feito por Rubens, sabe. É extraordinário uma pessoa morar a vida inteira em Paris e nunca ter ido ao Louvre. Você não acha?
Essa noite ela estava soberba. As faces estavam enrubescidas; os olhos azuis brilhavam com um fulgor incomum entre as longas pestanas; os cabelos curtos, castanho-avermelhados, estavam despenteados.
– Amanhã, Sophie, nós partiremos para Roma — ela anunciou dramaticamente. — Amanhã de manhã. — Enquanto falava tirou outro vestido do armário e jogou-o na cama. Com o movimento seu roupão abriu-se, e houve uma visão de roupas de baixo enfeitadas e de carne branca e exuberante. — Temos que fazer as malas imediatamente.
– Por quanto tempo, Madame?
– Quinze dias, três meses; como vou saber?
– Faz diferença, Madame.
– O importante é ir embora. Não vou voltar a esta casa, depois do que me foi dito hoje, até que me peçam humildemente.
– Então é melhor levarmos o baú grande, Madame; vou buscá-lo.
O ar no quarto de guardados estava insuportável, cheirava a poeira e couro. O baú grande estava enfiado num canto distante. Ela teve de inclinar-se e esforçar-se para poder puxá-lo para fora. O verme e as estrelas coloridas piscavam diante de seus olhos; sentiu-se tonta quando se endireitou.
– Vou ajudá-la, Sophie — disse Madame, quando a empregada voltou arrastando o baú pesado atrás de si. Que cara de morte essa mulher tinha ultimamente! Ela odiava ter pessoas velhas e feias perto de si. Mas Sophie era tão eficiente; seria loucura livrar-se dela.
– Madame não precisa se preocupar. — Isso não teria fim, Sophie sabia, se Madame começasse a abrir gavetas e jogar coisas. — É melhor Madame ir dormir. Já é tarde.
Não, não. Ela não conseguiria dormir. Estava enervada a tal ponto… Esses homens… Que animalidade! Ninguém era escravo deles. Ninguém queria ser tratado assim.
Sophie arrumava o baú. Um dia inteiro na cama, em uma cama grande e macia como a de Madame. Cochilar, acordar por um momento, cochilar novamente.
– O último jogo dele — Madame dizia com indignação — é me dizer que não tem dinheiro. Não posso comprar roupas, diz. Grotesco demais. Não posso andar nua por aí, posso? — Ergueu as mãos. — E, quanto a dizer que ele não pode pagar, isso é besteira pura. Pode, perfeitamente bem. Só que ele é mau, mau, horrivelmente mau. E se ao menos fizesse um trabalho honesto, para variar, em vez de escrever versos tolos e publicá-los por sua própria conta, teria muito dinheiro. — Caminhou de um lado para o outro no quarto. — Além disso há o pai dele — continuou. — Para que ele serve eu gostaria de saber. “Você deve se orgulhar de ter um marido poeta”, diz. — Ela fez a voz tremer como a de um velho. — Mal posso me conter para não rir na cara dele. “E que versos lindos Hégésippe escreve sobre você! Que paixão, que fogo!” — Pensando no velho, ela esboçou uma careta e fez a cabeça vacilar, o dedo tremer e as pernas capengarem. — E quando se pensa que o pobre Hégésippe é calvo e pinta os poucos cabelos que tem… — Ela riu. — Quanto à paixão de que ele tanto fala em seus detestáveis versos, é tudo pura invenção. Mas, minha boa Sophie, em que você está pensando? Por que está guardando esse vestido verde velho e horroroso?
Sophie tirou o vestido do baú sem dizer coisa alguma. Por que essa mulher foi escolher logo esta noite para parecer tão terrivelmente doente? Tinha o rosto amarelo e os dentes azuis. Madame estremeceu; era horrível demais. Devia mandá-la para a cama. Mas, afinal, o trabalho tinha de ser feito. Que é que se podia fazer? Ela se sentia mais que nunca melindrada.
– A vida é terrível. — Suspirando, sentou-se pesadamente na beirada da cama. As molas flexíveis sacudiram-na suavemente uma ou duas vezes. — Ser casada com um homem assim. Logo estarei ficando velha e gorda. E nem uma vez infiel. Mas veja como ele me trata. — Tornou a levantar-se e começou a caminhar sem rumo pelo quarto. — Não vou aguentar isso — explodiu.
Parou em frente ao espelho comprido e ficou admirando sua figura trágica e esplêndida. Ninguém acreditaria, olhando para ela, que tinha mais de trinta anos. Atrás da beleza trágica ela podia ver no espelho uma criatura velha, magra e infeliz, com rosto amarelo e dentes azuis, acocorada junto ao baú. Realmente, era desagradável demais. Sophie parecia uma dessas mendigas que se veem nas manhãs frias, paradas na sarjeta. A pessoa passa depressa, tentando não olhar para elas? Ou para, abre a bolsa e lhes dá uma moeda — até mesmo uma nota de dois francos, se não se tem trocado? Seja o que for que faça, a pessoa fica sempre desconfortável, sempre se sente como se desculpando por suas pelicas. Era isso que dava andar. Se a pessoa tivesse um carro — mas essa era outra das maldades de Hégésippe —, não teria, viajando atrás de janelas fechadas, que tomar consciência delas. Ela deu as costas ao espelho.
– Não vou aguentar — disse, tentando não pensar nas mendigas, em dentes azuis e rostos amarelos. — Não vou aguentar. — Deixou-se cair numa cadeira.
Mas pensar em um amante com rosto amarelo e dentes azuis e desiguais! Ela fechou os olhos, estremecendo ao pensar nisso. Seria o bastante para deixar a pessoa doente. Sentiu-se impelida a dar outra olhada: os olhos de Sophie tinham a cor de chumbo esverdeado, sem vida. Que é que se podia fazer? O rosto da mulher era uma repreensão, uma acusação. E, além disso, vê-la fazia-a sentir-se verdadeiramente doente. Nunca tinha ficado tão profundamente irritada.
Sophie ergueu-se lentamente e com dificuldade; uma expressão de dor cruzou seu rosto. Lentamente ela caminhou para a cômoda, lentamente contou seis pares de meias de seda. Tornou a virar-se para o baú. Essa mulher era um cadáver ambulante!
– A vida é terrível — Madame repetiu com convicção. — Terrível, terrível, terrível.
Devia mandar a mulher para a cama. Mas nunca conseguiria arrumar as coisas sozinha. E era tão importante ir embora na manhã seguinte. Ela tinha dito a Hégésippe que iria e ele simplesmente rira; não tinha acreditado. Desta vez tinha que lhe dar uma lição. Em Roma ela veria Luigino. Um rapaz tão encantador, e marquês, também. Talvez… Mas ela não conseguia pensar em coisa alguma além do rosto de Sophie; os olhos plúmbeos, os dentes azulados, a pele amarela e enrugada.
– Sophie — disse de repente; era com dificuldade que não gritava —, olhe em minha penteadeira. Vai ver uma caixa de ruge, o Dorin número 24. Coloque um pouco no rosto. E há um bastão de pomada para os lábios na gaveta da direita.
Manteve os olhos resolutamente afastados enquanto Sophie se levantava (com que horrível estalar das juntas!), caminhava até a penteadeira e ficava parada ali, ruidosa, durante o que parecia ser uma eternidade. Que vida, meu Deus, que vida! Passos lentos voltavam. Ela abriu os olhos. Ah, isso era melhor, muito melhor.
– Obrigada, Sophie. Você parece muito menos cansada agora. — Levantou-se vivamente. — E agora temos que nos apressar. — Cheia de energia, ela correu para o armário. — Meu Deus! — exclamou, levantando as mãos. — Você esqueceu de pegar meu vestido azul de noite. Como pode ser tão estúpida, Sophie?
Depois de algum tempo Sophie não prestou mais atenção ao barulho da briga. Consertava uma das camisolas de Madame, e o trabalho requeria toda a sua atenção. Sentia-se muito cansada; seu corpo todo doía. Tinha sido um dia difícil; a véspera também, e o dia anterior à véspera também. Todos os dias eram dias difíceis, e ela não era mais tão jovem quanto antes. Mais dois anos e teria cinquenta. Todos os dias tinham sido difíceis desde que ela se lembrava. Pensou nos sacos de batatas que costumava carregar quando era menina, no campo. Devagar, devagar ela caminhava pela estrada poeirenta com o saco sobre o ombro. Mais dez passos; podia conseguir isso. Só que nunca era o fim; tinha-se sempre que começar de novo.
Ergueu os olhos da costura, moveu a cabeça de um lado para o outro, piscou. Começava a ver luzes e manchas de cor dançando diante dos olhos; agora isso lhe acontecia com frequência. Uma espécie de verme brilhante e amarelado contorcia-se em direção ao canto direito de seu campo de visão; e embora ele estivesse sempre em movimento para cima, para cima, estava sempre ali no mesmo lugar. E havia estrelas vermelhas e verdes que surgiam, brilhavam e sumiam em torno do verme. Eles se moviam entre ela e a costura; estavam lá quando ela fechava os olhos. Depois de um momento ela continuou o trabalho; Madame queria a camisola muito especialmente na manhã seguinte. Mas era difícil ver atrás do verme.
Houve um súbito aumento de barulho do outro lado do corredor. Uma porta foi aberta; as palavras se articulavam.
– … bien tort, mon ami, si tu crois que je suis ton esclave. Je ferai ce que je voudrai.
— Moi aussi. — Monsieur soltou uma risada áspera, perigosa. Houve o som de passos pesados no corredor, um ruído no porta-guarda-chuvas; então a porta da frente bateu.
Sophie tornou a baixar os olhos para o trabalho. Ah, o verme, as estrelas coloridas, a dolorosa fadiga em todos os seus membros! Se pudesse passar um dia inteiro na cama, uma cama imensa, macia, quente, o dia inteiro…
A campainha assustou-a. Sempre a deixava nervosa, aquele zumbido de vespa furiosa. Levantou-se, deixou o trabalho na mesa, alisou o avental, ajeitou a touca e saiu para o corredor. Mais uma vez a campainha soou furiosamente. Madame estava impaciente.
– Finalmente, Sophie. Pensei que você nunca viesse. Sophie não disse nada; não havia nada a dizer. Madame estava parada junto ao armário aberto. Uma porção de roupas estava pendurada em seu braço e havia mais roupas em um monte sobre a cama.
“Une beauté à la Rubens”, seu marido costumava chamá-la quando se mostrava mais carinhoso. Gostava dessas mulheres grandes, esplêndidas, imponentes. Nada desses canos flexíveis para ele. “Hélène Fourmont” era seu apelido para ela.
– Algum dia — Madame costumava dizer aos amigos — eu tenho que ir até o Louvre ver meu retrato. O feito por Rubens, sabe. É extraordinário uma pessoa morar a vida inteira em Paris e nunca ter ido ao Louvre. Você não acha?
Essa noite ela estava soberba. As faces estavam enrubescidas; os olhos azuis brilhavam com um fulgor incomum entre as longas pestanas; os cabelos curtos, castanho-avermelhados, estavam despenteados.
– Amanhã, Sophie, nós partiremos para Roma — ela anunciou dramaticamente. — Amanhã de manhã. — Enquanto falava tirou outro vestido do armário e jogou-o na cama. Com o movimento seu roupão abriu-se, e houve uma visão de roupas de baixo enfeitadas e de carne branca e exuberante. — Temos que fazer as malas imediatamente.
– Por quanto tempo, Madame?
– Quinze dias, três meses; como vou saber?
– Faz diferença, Madame.
– O importante é ir embora. Não vou voltar a esta casa, depois do que me foi dito hoje, até que me peçam humildemente.
– Então é melhor levarmos o baú grande, Madame; vou buscá-lo.
O ar no quarto de guardados estava insuportável, cheirava a poeira e couro. O baú grande estava enfiado num canto distante. Ela teve de inclinar-se e esforçar-se para poder puxá-lo para fora. O verme e as estrelas coloridas piscavam diante de seus olhos; sentiu-se tonta quando se endireitou.
– Vou ajudá-la, Sophie — disse Madame, quando a empregada voltou arrastando o baú pesado atrás de si. Que cara de morte essa mulher tinha ultimamente! Ela odiava ter pessoas velhas e feias perto de si. Mas Sophie era tão eficiente; seria loucura livrar-se dela.
– Madame não precisa se preocupar. — Isso não teria fim, Sophie sabia, se Madame começasse a abrir gavetas e jogar coisas. — É melhor Madame ir dormir. Já é tarde.
Não, não. Ela não conseguiria dormir. Estava enervada a tal ponto… Esses homens… Que animalidade! Ninguém era escravo deles. Ninguém queria ser tratado assim.
Sophie arrumava o baú. Um dia inteiro na cama, em uma cama grande e macia como a de Madame. Cochilar, acordar por um momento, cochilar novamente.
– O último jogo dele — Madame dizia com indignação — é me dizer que não tem dinheiro. Não posso comprar roupas, diz. Grotesco demais. Não posso andar nua por aí, posso? — Ergueu as mãos. — E, quanto a dizer que ele não pode pagar, isso é besteira pura. Pode, perfeitamente bem. Só que ele é mau, mau, horrivelmente mau. E se ao menos fizesse um trabalho honesto, para variar, em vez de escrever versos tolos e publicá-los por sua própria conta, teria muito dinheiro. — Caminhou de um lado para o outro no quarto. — Além disso há o pai dele — continuou. — Para que ele serve eu gostaria de saber. “Você deve se orgulhar de ter um marido poeta”, diz. — Ela fez a voz tremer como a de um velho. — Mal posso me conter para não rir na cara dele. “E que versos lindos Hégésippe escreve sobre você! Que paixão, que fogo!” — Pensando no velho, ela esboçou uma careta e fez a cabeça vacilar, o dedo tremer e as pernas capengarem. — E quando se pensa que o pobre Hégésippe é calvo e pinta os poucos cabelos que tem… — Ela riu. — Quanto à paixão de que ele tanto fala em seus detestáveis versos, é tudo pura invenção. Mas, minha boa Sophie, em que você está pensando? Por que está guardando esse vestido verde velho e horroroso?
Sophie tirou o vestido do baú sem dizer coisa alguma. Por que essa mulher foi escolher logo esta noite para parecer tão terrivelmente doente? Tinha o rosto amarelo e os dentes azuis. Madame estremeceu; era horrível demais. Devia mandá-la para a cama. Mas, afinal, o trabalho tinha de ser feito. Que é que se podia fazer? Ela se sentia mais que nunca melindrada.
– A vida é terrível. — Suspirando, sentou-se pesadamente na beirada da cama. As molas flexíveis sacudiram-na suavemente uma ou duas vezes. — Ser casada com um homem assim. Logo estarei ficando velha e gorda. E nem uma vez infiel. Mas veja como ele me trata. — Tornou a levantar-se e começou a caminhar sem rumo pelo quarto. — Não vou aguentar isso — explodiu.
Parou em frente ao espelho comprido e ficou admirando sua figura trágica e esplêndida. Ninguém acreditaria, olhando para ela, que tinha mais de trinta anos. Atrás da beleza trágica ela podia ver no espelho uma criatura velha, magra e infeliz, com rosto amarelo e dentes azuis, acocorada junto ao baú. Realmente, era desagradável demais. Sophie parecia uma dessas mendigas que se veem nas manhãs frias, paradas na sarjeta. A pessoa passa depressa, tentando não olhar para elas? Ou para, abre a bolsa e lhes dá uma moeda — até mesmo uma nota de dois francos, se não se tem trocado? Seja o que for que faça, a pessoa fica sempre desconfortável, sempre se sente como se desculpando por suas pelicas. Era isso que dava andar. Se a pessoa tivesse um carro — mas essa era outra das maldades de Hégésippe —, não teria, viajando atrás de janelas fechadas, que tomar consciência delas. Ela deu as costas ao espelho.
– Não vou aguentar — disse, tentando não pensar nas mendigas, em dentes azuis e rostos amarelos. — Não vou aguentar. — Deixou-se cair numa cadeira.
Mas pensar em um amante com rosto amarelo e dentes azuis e desiguais! Ela fechou os olhos, estremecendo ao pensar nisso. Seria o bastante para deixar a pessoa doente. Sentiu-se impelida a dar outra olhada: os olhos de Sophie tinham a cor de chumbo esverdeado, sem vida. Que é que se podia fazer? O rosto da mulher era uma repreensão, uma acusação. E, além disso, vê-la fazia-a sentir-se verdadeiramente doente. Nunca tinha ficado tão profundamente irritada.
Sophie ergueu-se lentamente e com dificuldade; uma expressão de dor cruzou seu rosto. Lentamente ela caminhou para a cômoda, lentamente contou seis pares de meias de seda. Tornou a virar-se para o baú. Essa mulher era um cadáver ambulante!
– A vida é terrível — Madame repetiu com convicção. — Terrível, terrível, terrível.
Devia mandar a mulher para a cama. Mas nunca conseguiria arrumar as coisas sozinha. E era tão importante ir embora na manhã seguinte. Ela tinha dito a Hégésippe que iria e ele simplesmente rira; não tinha acreditado. Desta vez tinha que lhe dar uma lição. Em Roma ela veria Luigino. Um rapaz tão encantador, e marquês, também. Talvez… Mas ela não conseguia pensar em coisa alguma além do rosto de Sophie; os olhos plúmbeos, os dentes azulados, a pele amarela e enrugada.
– Sophie — disse de repente; era com dificuldade que não gritava —, olhe em minha penteadeira. Vai ver uma caixa de ruge, o Dorin número 24. Coloque um pouco no rosto. E há um bastão de pomada para os lábios na gaveta da direita.
Manteve os olhos resolutamente afastados enquanto Sophie se levantava (com que horrível estalar das juntas!), caminhava até a penteadeira e ficava parada ali, ruidosa, durante o que parecia ser uma eternidade. Que vida, meu Deus, que vida! Passos lentos voltavam. Ela abriu os olhos. Ah, isso era melhor, muito melhor.
– Obrigada, Sophie. Você parece muito menos cansada agora. — Levantou-se vivamente. — E agora temos que nos apressar. — Cheia de energia, ela correu para o armário. — Meu Deus! — exclamou, levantando as mãos. — Você esqueceu de pegar meu vestido azul de noite. Como pode ser tão estúpida, Sophie?
Aldous Huxley
sexta-feira, novembro 28
Este é o Prólogo
Deixaria neste livro toda a minha alma.
Este livro que viu as paisagens comigo
e viveu horas santas. Que pena dos livros
que nos enchem as mãos de rosas e de estrelas
e lentamente passam!
Que tristeza tão funda é olhar os retábulos
de dores e de penas que um coração levanta!
Ver passar os espectros de vida que se apagam,
ver o homem desnudo em Pégaso sem asas,
ver a vida e a morte, a síntese do mundo,
que em espaços profundos se olham e se abraçam.
Um livro de poesias é o outono morto:
os versos são as folhas negras em terras brancas,
e a voz que os lê é o sopro do vento que lhes incute nos peitos
- entranháveis distâncias.
O poeta é uma árvore com frutos de tristeza
e com folhas murchas de chorar o que ama.
O poeta é o médium da Natureza
que explica sua grandeza por meio de palavras.
O poeta compreende todo o incompreensível
e as coisas que se odeiam, ele, amigas as chamas.
Sabe que as veredas são todas impossíveis,
e por isso de noite vai por elas com calma.
Nos livros de versos, entre rosas de sangue,
vão passando as tristes e eternas caravanas
que fizeram ao poeta quando chora nas tardes,
rodeado e cingido por seus próprios fantasmas.
Poesia é amargura, mel celeste que emana
de um favo invisível que as almas fabricam.
Poesia é o impossível feito possível.
Harpa que tem em vez de cordas
corações e chamas.
Poesia é a vida que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva sem rumo a nossa barca.
Livros doces de versos sãos os astros que passam
pelo silêncio mudo para o reino do Nada,
escrevendo no céu suas estrofes de prata.
Oh ! que penas tão fundas e nunca remediadas,
as vozes dolorosas que os poetas cantam !
Deixaria neste livro
toda a minha alma...
Este livro que viu as paisagens comigo
e viveu horas santas. Que pena dos livros
que nos enchem as mãos de rosas e de estrelas
e lentamente passam!
Que tristeza tão funda é olhar os retábulos
de dores e de penas que um coração levanta!
Ver passar os espectros de vida que se apagam,
ver o homem desnudo em Pégaso sem asas,
ver a vida e a morte, a síntese do mundo,
que em espaços profundos se olham e se abraçam.
Um livro de poesias é o outono morto:
os versos são as folhas negras em terras brancas,
e a voz que os lê é o sopro do vento que lhes incute nos peitos
- entranháveis distâncias.
O poeta é uma árvore com frutos de tristeza
e com folhas murchas de chorar o que ama.
O poeta é o médium da Natureza
que explica sua grandeza por meio de palavras.
O poeta compreende todo o incompreensível
e as coisas que se odeiam, ele, amigas as chamas.
Sabe que as veredas são todas impossíveis,
e por isso de noite vai por elas com calma.
Nos livros de versos, entre rosas de sangue,
vão passando as tristes e eternas caravanas
que fizeram ao poeta quando chora nas tardes,
rodeado e cingido por seus próprios fantasmas.
Poesia é amargura, mel celeste que emana
de um favo invisível que as almas fabricam.
Poesia é o impossível feito possível.
Harpa que tem em vez de cordas
corações e chamas.
Poesia é a vida que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva sem rumo a nossa barca.
Livros doces de versos sãos os astros que passam
pelo silêncio mudo para o reino do Nada,
escrevendo no céu suas estrofes de prata.
Oh ! que penas tão fundas e nunca remediadas,
as vozes dolorosas que os poetas cantam !
Deixaria neste livro
toda a minha alma...
Federico García Lorca
Lembrança é livre
Lembrar dos livros, de qualquer modo, é livre. Uma experiência que nos pertence por exclusivo.
Valter Hugo Mãe
Embargo
Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente de transpiração condensada. Pensou que a mulher esquecera de correr o cortinado ao deitar-se, e aborreceu-se: se não conseguisse a voltar a dormir já, acabaria por ter o dia estragado. Faltou-lhe porém o ânimo para levantar-se, para tapar a janela: preferiu cobrir a cara com um lençol e virar-se para a mulher que dormia, refugiar-se no calor dela e no cheiro d seus cabelos libertos. Esteve ainda uns minutos à espera, inquieto, a temer a espertina matinal. Mas depois acudiu-lhe a idéia do casulo morno q era a cama e a presença labiríntica do corpo a que se encostava, e, quase a deslizar num círculo lento de imagens sensuais, tornou a cair no sono. O olho cinzento da vidraça foi-se azulando aos poucos, fitando fixo as duas cabeças pousadas na cama, como restos aquecidos de uma mudança para outra casa ou para outro mundo. Quando o despertador tocou, passadas duas horas, o quarto estava claro.
O automóvel estava cinco prédios abaixo. Grande sorte ter podido arrumá-lo ali. Ganhara a superstição de que o perigo de lhe roubarem seria tanto maior quanto mais longe o tivesse deixado à noite. Sem nunca o ter dito em voz alta, estava convencido de que não voltaria a ver o carro se o deixasse em qualquer extremo da cidade. Ali, tão perto, tinha confiança. O automóvel apareceu-lhe coberto de gotículas, os vidros tapados de humidade. Se não fosse o frio tanto, poderia dizer-se que transpirava como um corpo vivo. Olhou os pneus segundo o deu hábito, verificou de passagem que a antena não fora partida e abriu a porta. O interior do carro estava gelado. Com os vidros embaciados, era uma caverna translúcida afundada sob um dilúvio de água. Pensou que teria sido melhor deixar o carro em sítio onde pudesse faze-lo descair para pegar mais facilmente. Ligou a ignição, e no mesmo instante o motor roncou alto, com um arfar profundo e impaciente. Sorriu, satisfeito da surpresa. O dia começava bem.
Rua acima, o automóvel arrancou, raspando o asfalto como um animal de cascos, triturando o lixo espalhado. O conta-quilómetros deu um salto repentino para 90, velocidade de suicídio na rua estreita e ladeada de carros parados. Que seria isto? Retirou o pé de acelerador, inquieto. Por pouco diria que lhe teriam trocado o motor por outro muito mais potente. Pisou à cautela o acelerador dominou o carro. Nada de importância. Às vezes não se controla bem o balanço do pé. Basta que o tacão do sapato não assente no lugar habitual para que se altere o movimento e a pressão. É simples.
Distraído com o incidente, ainda não olhara o marcador da gasolina. Ter-lhe-iam roubado durante a noite, como já não era a primeira vez? Não. O ponteiro indicava precisamente meio depósito. Parou num sinal vermelho, sentindo o carro vibrante e tenso nas suas mãos. Curioso. Nunca dera por essa espécie de frémito animal que percorria em ondas a chapas da carroçaria e lhe fazia estremecer o ventre. Ao sinal verde, o automóvel pareceu serpentear, alongar-se como um fluido, para ultrapassar os que lhe estavam à frente. Curioso. Mas, na verdade, sempre se considerara muito melhor condutor do que o comum. Questão de boa disposição, esta agilidade dos reflexos hoje, talvez excepcional. Meio depósito. Se encontrasse um posto de abastecimento a funcionar, aproveitaria. Pelo seguro, com todas as voltas que tinha que dar antes de ir para o escritório, melhor de mais que de menos. Este estúpido embargo. O pânico, as horas de espera, filas de dezenas e dezenas de carros. Meio depósito. Outros andam a essa hora com muito menos, mas se for possível atestar. O carro fez uma curva balançada, e, no mesmo movimento, conhecida, talvez tivesse sorte. Como um perdigueiro que acode ao cheiro, o carro insinuou-se por entre o trânsito, voltou duas esquinas e ocupar espaço na fila que esperava. Boa lembrança.
Olho o relógio. Deviam estar à frente uns vinte carros. Nada de exagerado. Mas pensou que seria melhor ir ao escritório e deixar as voltas para a tarde, já cheio o depósito, sem preocupações. Baixou o vidro para chamar um vendedor de jornais que passava. O tempo arrefecera muito. Mas ali, dentro do automóvel, de jornal aberto sobre o volante, fumando enquanto esperava, havia um calor agradável, como o dos lençóis. Fez mover os músculos das costas, com uma torção de gato voluptuoso, ao lembrar-se da mulher ainda enroscada na cama àquela hora, e recostou-se melhor no assento. O jornal não prometia nada de bom. O embargo mantinha-se. Um Natal escuro e frio, dizia um dos títulos. Mas ele ainda dispunha de meio depósito e ao tardaria a té-lo cheio. O automóvel da frente avançou um pouco. Bem.
Hora e meia mais tarde estava a atestar, e três minutos depois arrancava. Um pouco preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava restrições rigorosas. Enfim, do mal o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou passar primeiro por casa de cliente, a ver se apanharia a encomenda? Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de dizer que passara hora e meia na fila da gasolina quando lhe restava meio depósito. O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou o rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo.
De repente, o carro deu uma guinada e descaiu para a rua à direita, até parar numa fila de automóveis mais pequena do que a primeira. O que fora aquilo? Tinha o depósito cheio, sim, praticamente cheio, porque diabo de lembrança. Manejou a alavanca das velocidades para meter a marcha atrás, mas caixa não lhe obedeceu. Tentou forçar, mas as engrenagens pareciam bloqueadas. Que disparate. Agora avaria. O automóvel da frente avançou. Receosamente, a contar com o pior, engatou a primeira. Tudo perfeito. Suspirou de alívio. Mas como estaria a marcha atrás quando tornasse a precisar dela?
Cerca de meia hora depois metia meio litro de gasolina no depósito, sentindo-se ridículo sob o olhar desdenhoso do empregado da bomba. Deu uma gorjeta absurdamente alta e arrancou num grande alarido de pneus e acelerações. Que diabo de ideia. Agora ao cliente, ou será uma manhã perdida. O carro estava melhor do que nunca. Respondia aos seus movimentos como se fosse um prolongamento mecânico do seu próprio corpo. Mas o caso da marcha atrás dava que pensar. E eis que teve que pensar mesmo. Uma grande camioneta avariada tapava todo o leito da rua. Não podia contorná-la, não tivera tempo, estava colado a ela. Outra vez a medo, manejou a alavanca, e a marcha atrás engrenou com um ruído suave de sucção. Não se lembrava de a caixa de velocidades ter reagido dessa maneira antes. Rodou o volante para esquerda, acelerou, e de um só arranco o automóvel subiu o passeio, rente aa camioneta, e saiu do outro lado, solto, com uma agilidade de animal. O diabo do carro tinha sete fôlegos. Talvez que por causa de toda essa confusão do embargo, tudo em pânico, os serviços desorganizados tiveram feito meter nas bombas gasolina de muito maior potência. Teria a sua graça.
Olhou o relógio. Valeria ir ao cliente? Por sorte apanharia o estabelecimento ainda aberto. Se o trânsito ajudasse, sim, se o trânsito ajudasse, teria tempo. Mas o trânsito não ajudou. Tempo do Natal, mesmo faltando a gasolina, toda a gente vem para a rua, a empatar quem precisa de trabalhar. E ao ver uma transversal descongestionada, desistiu de ir ao cliente. Melhor seria explicar qualquer coisa no escritório o e deixar para tarde. Com tantas hesitações desviara-se muito do centro. Gasolina queimada sem proveito. Enfim, o depósito estava cheio. Num largo ao fundo da rua por onde descia viu outra fila de automóveis, à espera de vez. Sorriu de gozo e acelerou, decidido a passar roncando contra os entanguidos automobilistas que esperavam. Mas o carro, a vinte metros, obliquou para esquerda, por si mesmo, e foi parar, suavemente, como se suspirasse, no fim da fila. Que coisa fora aquela, se não decidira meter mais gasolina? Que coisa era, se tinha o depósito cheio? Ficou a olhar os diversos mostradores, a apalpar o volante custando-lhe a reconhecer o carro, e nessa sucessão de gestos puxou o retrovisor e olhou-se no espelho. Viu que estava perplexo e considerou que tinha razão. Outra vez pelo retrovisor distinguiu um automóvel que descia a rua, com todo o ar de vir colocar-se na fila. Preocupado com ideia de ficar ali imobilizado, quando tinha o depósito cheio, manejou rapidamente a alavanca para a marcha atrás. O carro resistiu e alavanca fugiu-lhe das mãos. No segundo imediato achou-se apertado entre seus dois vizinhos. Diabo. Que teria o carro? Precisava de leva-lo à oficina. Uma marcha atrás que funcionava ora sim ora não, é um perigo.
Tinha passado mais de vinte minutos quando fez avançar o carro até à bomba. Viu chegar-se o empregado e a voz apertou-se-lhe ao pedir que atesta-se o depósito. No mesmo instante, fez uma tentativa para fugir à vergonha, meteu uma rápida primeira e arrancou. Em vão. O carro não se mexeu. O homem da bomba olhou desconfiado, abriu o depósito, e, passados poucos segundo, veio pedir o dinheiro de um litro, que guardou resmungando. No instante logo, a primeira entrava sem qualquer dificuldade e o carro avançava, elástico, respirando pausadamente. Alguma coisa não estaria bem no automóvel, nas mudanças, no motor, em qualquer sítio, diabo levasse. Ou estaria ele a perder a suas qualidades de condutor? Ou estria doente? Dormira ainda assim bem, não tinha mais preocupações da vida que em todos os outros dias dela. O melhor seria desistir por agora de cliente, não pensar neles durante o resto do dia e ficar no escritório. Sentia-se inquieto. Em redor de si, as estruturas do caro vibravam rapidamente, não à superfície, mas no interior dos aços, e o motor trabalhava com aquele rumor inaudível de pulmões enchendo e esvaziando, enchendo e esvaziando. Ao princípio, sem saber por quê, deu por que estava a traçar mentalmente um itinerário que o afastasse das outras bombas de gasolina, e quando percebeu o que fazia assustou-se, temeu-se de não estar bom da cabeça. Foi dando voltas, alongando e cortando caminho, até que chegou em frente ao escritório. Pôde arrumar o carro suspirou de alívio. Desligou o motor, tirou a chave e abriu a porta. Não foi capaz de sair.
Julgou que a aba da gabardina se prendera, que a perna ficara entalada na coluna do volante, e fez outro movimento. Ainda procurou o cinto de segurança, a ver se o colocara sem dar por isso. Não. O cinto estava pendurado ao lado, tripa negra e mole. Disparate, pensou. Devo estar doente. Podia mexer livremente os braços e as pernas, flectir ligeiramente o tronco consoante as manobras, olhar para trás, debruçar-se um pouco para a direita, para o cacifo das luvas, mas as costas aderiam ao encosto do banco. Não rigidamente, mas como um membro adere ao corpo. Acendeu um cigarro, e de repente preocupou-se com o que diria ao patrão se assomasse a uma janela e o visse ali sentado, dentro do carro, a fumar, sem nenhuma pressa de sair. Um toque violento de claxon fé-lo fechar a porta, que abrira para a rua. Quando o outro carro passou, deixou descair lentamente a porta outra vez, atirou o cigarro fora e, segurando-se as mãos ambas ao volante, fez um movimento brusco, violento. Inútil. Nem sequer sentiu dores. O encosto do banco segurou-o docemente e manteve-o preso. Que era isto que estava a acontecer? Puxou para baixo retrovisor e olhou-se. Nenhuma diferença no rosto. Apenas uma aflição imprecisa que mal se dominava. Ao voltar a cara para a direita, para o passeio, viu uma rapariguinha a espreitá-lo, ao mesmo tempo intrigada e divertida. Logo a seguir surgiu uma mulher com um casaco de abafo nas mãos, que a rapariga vestiu, sem deixar de olhar. E as duas afastaram-se, enquanto a mulher compunha a gola e os cabelos da menina.
Voltou a olhar no espelho e compreendeu o que devia fazer. Mas não ali. Havia pessoas a olhar, gente que o conhecia. Manobrou para desencostar, rapidamente, deixando a mão à porta para fechá-la, e desceu a rua o mais depressa que podia. Tinha um fito, um objectivo muito definido que já o tranqüilizava e tanto que se deixou ir com um sorriso que aos poucos lhe abrandara a aflição.
Só reparou na bomba de gasolina quando lhe ia a passar pela frente. Tinha um letreiro que dizia esgotado, e o carro seguiu, sem o mínimo desvio, sem diminuir a velocidade. Não quis pensar no carro. Sorriu mais. Estava a sair da cidade, eram já os subúrbios, estava perto o sito que procurava. Meteu por uma rua em construção, virou à esquerda e à direita, até uma azinhaga deserta, entre valados. Começava a chover quando parou o automóvel.
A sua ideia era simples. Consistia em sair de dentro da gabardina, torcendo os braços e o corpo, deslizando para fora dela, tal como faz a cobra quando abandona a pele. No meio de gente não se atreveria, mas, ali, sozinho, com um deserto em redor, só longe a cidade que se escondia por trás da chuva, nada mais fácil. Enganara-se, porém. A gabardina aderia ao encosto do banco, do mesmo modo que ao casaco, à camisola de lã, à camisa, à camisola anterior, à pele, aos músculos, aos ossos. Foi isso que pensou não pensando quando daí a dez minutos se retorcia dentro do carro, a chorar. Desesperado. Estava preso no carro. Por mais que se torcesse para fora, para a abertura da porta, por onde a chuva entrava emperrada por rajadas súbitas e frias, por mais que fincasse os pés na saliência alta da caixa de velocidades, não conseguia arrancar-se do assento. Com as duas mãos segurou-se ao tejadilho e tentou içar-se. Era como se quisesse levantar o mundo. Diante dos seus olhos, os limpa-vidros, que sem querer pusera em movimento no meio da agitação, oscilavam com um ruído seco, de metrônomo. De longe veio o apito da fábrica. E logo a seguir, na curva do caminho, apareceu um homem pedalando numa bicicleta, coberto com uma grande folha de plástico preto, por onde a chuva escorria como sobre a pele de uma foca. O homem que pedalava olhou curiosamente para dentro do carro e seguiu, talvez decepcionado ou intrigado, por ver um homem sozinho, e não o casal que de longe lhe parecera.
O que estava a passar-se era absurdo. Nunca ninguém ficara preso dessa maneira no seu próprio carro, pelo seu próprio carro. Tinha de haver um processo qualquer de sair dali. À força não podia ser. Talvez numa garagem? Não. Como iria explicar? Chamar a polícia? E depois? Juntar-se ia gente, tudo a olhar, enquanto a autoridade evidentemente o puxaria por um braço e pediria ajuda aos presentes, e seria inútil, porque o encosto do banco docemente o prenderia a si. E viriam os jornalista, os fotógrafos, e ele seria mostrado metido no seu carro em todos os jornais do dia seguinte, cheio de vergonha como um animal tosquiado à chuva. Tinha de arranjar outra maneira. Desligou o motor e sem interromper o gesto atirou-se violentamente para fora, como quem ataca de surpresa. Nem um resultado. Feriu-se na testa e na mão esquerda, e a dor causou-lhe uma vertigem que se prolongou, enquanto uma súbita e irreprimível vontade de urinar se expandia, libertando interminável o líquido quente que vertia e escorria entre as pernas para piso do carro. Quando tudo isso sentiu, começou a chorar baixinho, num ganido, miseravelmente, e assim esteve até que um cão, vindo da chuva, veio ladrar-lhe, esquálido e sem convicção, à porta do carro.
Embraiou devagar, com os movimentos pesados de um sonho de cavernas, e avançou pela azinhaga fazendo força para não pensar, para não deixar que a situação se lhe figurasse num entendimento. De um modo vago sabia que teria de procurar alguém que o ajudasse. Mas quem poderia ser? Não queria assustar a mulher, mas não restava outro remédio. Talvez ela conseguisse. Ao menos não se sentiria tão desgraçadamente sozinho.
Voltou a entrar na cidade, atento aos sinais, sem movimentos bruscos no assento, como se quisesse apaziguar os poderes que o prendiam. Passavam das duas horas e o dia escurecera muito. Viu três bombas de gasolina, mas o carro não reagiu. Todas tinham o letreiro de “esgotado”. À medida que penetrava na cidade, ia vendo automóveis abandonados em posições anormais, com os triângulos vermelhos colocados na janela de trás, sinal que noutras ocasiões seria de avaria, mas que significava, agora, quase sempre, falta de gasolina. Por duas vezes viu grupos de homens a empurrar automóveis para cima dos passeios, com grandes gestos de irritação, debaixo da chuva que não parara ainda.
Quando enfim chegou à rua onde morava, teve de imaginar como iria chamar a mulher. Parou o carro em frente da porta, desorientado, quase à beira doutra crise nervosa. Esperou que acontecesse o milagre de a mulher descer por obra e merecimento do seu silencioso chamado de socorro. Esperou muitos minutos, até que um garoto curioso da vizinhança se aproximou e ele pôde pedir-lhe, com o argumento de uma moeda, que subisse ao terceiro andar e dissesse à senhora que lá morava que o marido estava em baixo à espera, no carro. Que viesse depressa, que era muito urgente. O rapaz foi e desceu, disse que a senhora já vinha e afastou-se a correr, com o dia ganho.
A mulher descera como sempre andava em casa, nem sequer lembrara de trazer um guarda-chuva e agora estava entreportas, indecisa, desviando sem querer os olhos para um rato morto na berma do passeio, para o rato mole, de pelo arrepiado, hesitando em atravessar o passeio debaixo da chuva, um pouco irritada contra o marido que a fizera descer sem motivo, quando poderia muito bem ter subido a dizer o que queria. Mas o marido acenava de dentro do carro e ela assustou-se e correu. Deitou a mão ao puxador, precipitando-se para fugir à chuva, e quando enfim abriu a porta e viu diante do seu rosto a mão do marido aberta empurrando-a sem lhe tocar. Teimou e quis entrar, mas ele gritou-lhe que não, que era perigoso, e contou-lhe o que acontecia, enquanto ela encurvada recebia nas costas toda a chuva que caía e os cabelos se lhe desmanchavam, e o horror lhe crispava a cara toda. E viu o marido, naquele casulo quente e embaciado que o isolava do mundo, torcer-se todo no assento para sair do carro e não conseguir. Atreveu-se a agarra-lo por um braço e puxou, incrédula, e não pode também move-lo dali. E como aqui era horrível demais para ser acreditado, ficaram calados a olhar-se, até que ela pensou que o marido estava doido e fingia não poder sair. Tinha de ir chamar alguém para o tratar, para o levar aonde as loucuras se tratam. Cautelosamente, com muitas palavras, disse ao marido que esperasse um bocadinho, que ela não tardaria, ia procurar ajuda para ele sair, e assim até poderiam almoçar juntos e ele telefonaria para o escritório a dizer que estava constipado. E não iria trabalhar da parte da tarde. Quer sossegasse, o caso não tinha importância, a aver que não demora nada.
Mas quando ela desapareceu na escada, ele tornou a imaginar-se rodeado de gente, o retrato nos jornais, a vergonha de se ter urinado pelas pernas abaixo, e esperou ainda uns minutos. E quando em cima a mulher fazia telefonemas para toda a parte, para a polícia, para o hospital, lutando para que acreditassem nela, e não na sua voz, dando seu nome e o do marido, a cor do carro, e a marca, e a matrícula, ele não pôde agüentar a espera e a imaginação, e ligou o motor. Quando a mulher tornou a descer, o automóvel já desaparecera e o rato escorregara da berma do passeio, enfim, e rolava na rua inclinada, arrastado pela água que corria dos algeroses. A mulher gritou, mas as pessoas tardaram a aparecer e foi muito difícil de explicar.
Até o anoitecer o homem circulou pela cidade, passando por bombas esgotadas, entrando em filas de espera sem o ter decidido, ansioso por o dinheiro se lhe acabava e ele não saberia o que poderia acontecer quando não houvesse mais dinheiro e o automóvel parasse ao pé duma bomba para receber mais gasolina. E isso só não aconteceu porque todas as bombas começaram a fechar e as filas de espera que ainda se viam apenas aguardando o dia seguinte, e então o melhor era fugir de encontrar bombas ainda abertas para não ter que parar. Numa avenida muito longa e larga, quase sem outro trânsito, o carro da polícia acelerou e ultrapassou-o, e quando o ultrapassava um guarda fez-lhe sinal para que parasse. Mas ele teve outra vez medo e não parou. Ouviu atrás de si a sereia da polícia e viu, também, vindo não soube donde, um motociclista fardado quase a alcançá-lo. Mas o carro, o seu carro, deu um rondo, um arranco poderoso e saiu, de um salto, logo adiante, para o acesso duma auto-estrada. A polícia seguia-o de longe, cada vez mais longe, e quando a noite se fechou não havia sinais deles, e o automóvel rolava por outra estrada.
Sentia fome. Urinara outra vez, humilhado demais para se envergonhar e delirava um pouco: humilhado, himolhado. Ia declinando sucessivamente, alterando as consoante e as vogais, num exercício in consciente e obsessivo que o defendia da realidade. Não parava porque não sabia para que iria parar. Mas, de madrugada, por duas vezes, encostou o carro a berma e tentou sair devagarinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altuar de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixa-lo sair a bem, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir.
Toda a noite viajou sem saber por onde. Atravessou povoações de que não viu o nome, percorreu longas rectas, subiu e desceu montes, fez e desfez laços e deslaços de curvas, e quando a manhã começou a nascer estava em qualquer parte, numa estrada arruinada, onde a água da chuva se juntava em charcos arrepiados à superfície. O motor roncava poderosamente, arrancando as rodas à lama, e toda a estrutura do carro vibrava, com um som inquietante. A manhã abriu por completo, sem que o sol chegasse a mostrar-se, mas a chuva parou de repente. A estrada transformava-se num simples caminho, que adiante, a cada momento, parecia que se perdia entre pedras. Onde estava o mundo? Diante dos olhos eram serras e um céu espantosamente baixo. Ele deu um grito e bateu com os punhos cerrados no volante. Foi nesse momento que viu que ponteiro do indicador da gasolina estava em cima do zero. O motor pareceu arrancar-se a si mesmo e arrastou o carro por mais vinte metros. Era outra vez estrada para lá daquele lugar, mas a gasolina acabara.
José Saramago
Disse à mulher que não se levantasse, que aproveitasse um pouco mais da manhã, e escorregou para o ar frio, para a humidade indefinível das paredes, dos puxadores das portas, das toalhas da casa de banho. Fumou o primeiro cigarro enquanto se barbeava e o segundo com o café, que entretanto aquecera. Tossiu como todas as manhãs. Depois vestiu-se às apalpadelas, sem acender a luz do quarto. Na queria acordar a mulher. Um cheiro fresco de água-de-colônia avivou a penumbra, e isso fez que a mulher suspirasse de prazer quando o marido debruçou-se na cama para lhe beijar os olhos fechados. E ele sussurrou que não viria almoçar a casa.
Fechou a porta e desceu rapidamente a escada. O prédio parecia mais silencioso que de costume. Talvez do nevoeiro, pensou. Reparara que o nevoeiro era assim como uma campânula que abafava os sons e os transformava, dissolvendo-os, fazendo deles o que fazia com as imagens. Estaria nevoeiro. No último lanço da escada já poderia ver a rua e saber se acertara. Afinal havia uma luz ainda cinzenta, mas dura e rebrilhante, de quartzo. Na berma do passeio, um grande rato morto. E enquanto, parado à porta, acendia o terceiro cigarro, passou um garoto embaçado, de gordo, que cuspiu em cima do animal, como lhe tinham ensinado e sempre via fazer.
Fechou a porta e desceu rapidamente a escada. O prédio parecia mais silencioso que de costume. Talvez do nevoeiro, pensou. Reparara que o nevoeiro era assim como uma campânula que abafava os sons e os transformava, dissolvendo-os, fazendo deles o que fazia com as imagens. Estaria nevoeiro. No último lanço da escada já poderia ver a rua e saber se acertara. Afinal havia uma luz ainda cinzenta, mas dura e rebrilhante, de quartzo. Na berma do passeio, um grande rato morto. E enquanto, parado à porta, acendia o terceiro cigarro, passou um garoto embaçado, de gordo, que cuspiu em cima do animal, como lhe tinham ensinado e sempre via fazer.
O automóvel estava cinco prédios abaixo. Grande sorte ter podido arrumá-lo ali. Ganhara a superstição de que o perigo de lhe roubarem seria tanto maior quanto mais longe o tivesse deixado à noite. Sem nunca o ter dito em voz alta, estava convencido de que não voltaria a ver o carro se o deixasse em qualquer extremo da cidade. Ali, tão perto, tinha confiança. O automóvel apareceu-lhe coberto de gotículas, os vidros tapados de humidade. Se não fosse o frio tanto, poderia dizer-se que transpirava como um corpo vivo. Olhou os pneus segundo o deu hábito, verificou de passagem que a antena não fora partida e abriu a porta. O interior do carro estava gelado. Com os vidros embaciados, era uma caverna translúcida afundada sob um dilúvio de água. Pensou que teria sido melhor deixar o carro em sítio onde pudesse faze-lo descair para pegar mais facilmente. Ligou a ignição, e no mesmo instante o motor roncou alto, com um arfar profundo e impaciente. Sorriu, satisfeito da surpresa. O dia começava bem.
Rua acima, o automóvel arrancou, raspando o asfalto como um animal de cascos, triturando o lixo espalhado. O conta-quilómetros deu um salto repentino para 90, velocidade de suicídio na rua estreita e ladeada de carros parados. Que seria isto? Retirou o pé de acelerador, inquieto. Por pouco diria que lhe teriam trocado o motor por outro muito mais potente. Pisou à cautela o acelerador dominou o carro. Nada de importância. Às vezes não se controla bem o balanço do pé. Basta que o tacão do sapato não assente no lugar habitual para que se altere o movimento e a pressão. É simples.
Distraído com o incidente, ainda não olhara o marcador da gasolina. Ter-lhe-iam roubado durante a noite, como já não era a primeira vez? Não. O ponteiro indicava precisamente meio depósito. Parou num sinal vermelho, sentindo o carro vibrante e tenso nas suas mãos. Curioso. Nunca dera por essa espécie de frémito animal que percorria em ondas a chapas da carroçaria e lhe fazia estremecer o ventre. Ao sinal verde, o automóvel pareceu serpentear, alongar-se como um fluido, para ultrapassar os que lhe estavam à frente. Curioso. Mas, na verdade, sempre se considerara muito melhor condutor do que o comum. Questão de boa disposição, esta agilidade dos reflexos hoje, talvez excepcional. Meio depósito. Se encontrasse um posto de abastecimento a funcionar, aproveitaria. Pelo seguro, com todas as voltas que tinha que dar antes de ir para o escritório, melhor de mais que de menos. Este estúpido embargo. O pânico, as horas de espera, filas de dezenas e dezenas de carros. Meio depósito. Outros andam a essa hora com muito menos, mas se for possível atestar. O carro fez uma curva balançada, e, no mesmo movimento, conhecida, talvez tivesse sorte. Como um perdigueiro que acode ao cheiro, o carro insinuou-se por entre o trânsito, voltou duas esquinas e ocupar espaço na fila que esperava. Boa lembrança.
Olho o relógio. Deviam estar à frente uns vinte carros. Nada de exagerado. Mas pensou que seria melhor ir ao escritório e deixar as voltas para a tarde, já cheio o depósito, sem preocupações. Baixou o vidro para chamar um vendedor de jornais que passava. O tempo arrefecera muito. Mas ali, dentro do automóvel, de jornal aberto sobre o volante, fumando enquanto esperava, havia um calor agradável, como o dos lençóis. Fez mover os músculos das costas, com uma torção de gato voluptuoso, ao lembrar-se da mulher ainda enroscada na cama àquela hora, e recostou-se melhor no assento. O jornal não prometia nada de bom. O embargo mantinha-se. Um Natal escuro e frio, dizia um dos títulos. Mas ele ainda dispunha de meio depósito e ao tardaria a té-lo cheio. O automóvel da frente avançou um pouco. Bem.
Hora e meia mais tarde estava a atestar, e três minutos depois arrancava. Um pouco preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava restrições rigorosas. Enfim, do mal o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou passar primeiro por casa de cliente, a ver se apanharia a encomenda? Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de dizer que passara hora e meia na fila da gasolina quando lhe restava meio depósito. O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou o rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo.
De repente, o carro deu uma guinada e descaiu para a rua à direita, até parar numa fila de automóveis mais pequena do que a primeira. O que fora aquilo? Tinha o depósito cheio, sim, praticamente cheio, porque diabo de lembrança. Manejou a alavanca das velocidades para meter a marcha atrás, mas caixa não lhe obedeceu. Tentou forçar, mas as engrenagens pareciam bloqueadas. Que disparate. Agora avaria. O automóvel da frente avançou. Receosamente, a contar com o pior, engatou a primeira. Tudo perfeito. Suspirou de alívio. Mas como estaria a marcha atrás quando tornasse a precisar dela?
Cerca de meia hora depois metia meio litro de gasolina no depósito, sentindo-se ridículo sob o olhar desdenhoso do empregado da bomba. Deu uma gorjeta absurdamente alta e arrancou num grande alarido de pneus e acelerações. Que diabo de ideia. Agora ao cliente, ou será uma manhã perdida. O carro estava melhor do que nunca. Respondia aos seus movimentos como se fosse um prolongamento mecânico do seu próprio corpo. Mas o caso da marcha atrás dava que pensar. E eis que teve que pensar mesmo. Uma grande camioneta avariada tapava todo o leito da rua. Não podia contorná-la, não tivera tempo, estava colado a ela. Outra vez a medo, manejou a alavanca, e a marcha atrás engrenou com um ruído suave de sucção. Não se lembrava de a caixa de velocidades ter reagido dessa maneira antes. Rodou o volante para esquerda, acelerou, e de um só arranco o automóvel subiu o passeio, rente aa camioneta, e saiu do outro lado, solto, com uma agilidade de animal. O diabo do carro tinha sete fôlegos. Talvez que por causa de toda essa confusão do embargo, tudo em pânico, os serviços desorganizados tiveram feito meter nas bombas gasolina de muito maior potência. Teria a sua graça.
Olhou o relógio. Valeria ir ao cliente? Por sorte apanharia o estabelecimento ainda aberto. Se o trânsito ajudasse, sim, se o trânsito ajudasse, teria tempo. Mas o trânsito não ajudou. Tempo do Natal, mesmo faltando a gasolina, toda a gente vem para a rua, a empatar quem precisa de trabalhar. E ao ver uma transversal descongestionada, desistiu de ir ao cliente. Melhor seria explicar qualquer coisa no escritório o e deixar para tarde. Com tantas hesitações desviara-se muito do centro. Gasolina queimada sem proveito. Enfim, o depósito estava cheio. Num largo ao fundo da rua por onde descia viu outra fila de automóveis, à espera de vez. Sorriu de gozo e acelerou, decidido a passar roncando contra os entanguidos automobilistas que esperavam. Mas o carro, a vinte metros, obliquou para esquerda, por si mesmo, e foi parar, suavemente, como se suspirasse, no fim da fila. Que coisa fora aquela, se não decidira meter mais gasolina? Que coisa era, se tinha o depósito cheio? Ficou a olhar os diversos mostradores, a apalpar o volante custando-lhe a reconhecer o carro, e nessa sucessão de gestos puxou o retrovisor e olhou-se no espelho. Viu que estava perplexo e considerou que tinha razão. Outra vez pelo retrovisor distinguiu um automóvel que descia a rua, com todo o ar de vir colocar-se na fila. Preocupado com ideia de ficar ali imobilizado, quando tinha o depósito cheio, manejou rapidamente a alavanca para a marcha atrás. O carro resistiu e alavanca fugiu-lhe das mãos. No segundo imediato achou-se apertado entre seus dois vizinhos. Diabo. Que teria o carro? Precisava de leva-lo à oficina. Uma marcha atrás que funcionava ora sim ora não, é um perigo.
Tinha passado mais de vinte minutos quando fez avançar o carro até à bomba. Viu chegar-se o empregado e a voz apertou-se-lhe ao pedir que atesta-se o depósito. No mesmo instante, fez uma tentativa para fugir à vergonha, meteu uma rápida primeira e arrancou. Em vão. O carro não se mexeu. O homem da bomba olhou desconfiado, abriu o depósito, e, passados poucos segundo, veio pedir o dinheiro de um litro, que guardou resmungando. No instante logo, a primeira entrava sem qualquer dificuldade e o carro avançava, elástico, respirando pausadamente. Alguma coisa não estaria bem no automóvel, nas mudanças, no motor, em qualquer sítio, diabo levasse. Ou estaria ele a perder a suas qualidades de condutor? Ou estria doente? Dormira ainda assim bem, não tinha mais preocupações da vida que em todos os outros dias dela. O melhor seria desistir por agora de cliente, não pensar neles durante o resto do dia e ficar no escritório. Sentia-se inquieto. Em redor de si, as estruturas do caro vibravam rapidamente, não à superfície, mas no interior dos aços, e o motor trabalhava com aquele rumor inaudível de pulmões enchendo e esvaziando, enchendo e esvaziando. Ao princípio, sem saber por quê, deu por que estava a traçar mentalmente um itinerário que o afastasse das outras bombas de gasolina, e quando percebeu o que fazia assustou-se, temeu-se de não estar bom da cabeça. Foi dando voltas, alongando e cortando caminho, até que chegou em frente ao escritório. Pôde arrumar o carro suspirou de alívio. Desligou o motor, tirou a chave e abriu a porta. Não foi capaz de sair.
Julgou que a aba da gabardina se prendera, que a perna ficara entalada na coluna do volante, e fez outro movimento. Ainda procurou o cinto de segurança, a ver se o colocara sem dar por isso. Não. O cinto estava pendurado ao lado, tripa negra e mole. Disparate, pensou. Devo estar doente. Podia mexer livremente os braços e as pernas, flectir ligeiramente o tronco consoante as manobras, olhar para trás, debruçar-se um pouco para a direita, para o cacifo das luvas, mas as costas aderiam ao encosto do banco. Não rigidamente, mas como um membro adere ao corpo. Acendeu um cigarro, e de repente preocupou-se com o que diria ao patrão se assomasse a uma janela e o visse ali sentado, dentro do carro, a fumar, sem nenhuma pressa de sair. Um toque violento de claxon fé-lo fechar a porta, que abrira para a rua. Quando o outro carro passou, deixou descair lentamente a porta outra vez, atirou o cigarro fora e, segurando-se as mãos ambas ao volante, fez um movimento brusco, violento. Inútil. Nem sequer sentiu dores. O encosto do banco segurou-o docemente e manteve-o preso. Que era isto que estava a acontecer? Puxou para baixo retrovisor e olhou-se. Nenhuma diferença no rosto. Apenas uma aflição imprecisa que mal se dominava. Ao voltar a cara para a direita, para o passeio, viu uma rapariguinha a espreitá-lo, ao mesmo tempo intrigada e divertida. Logo a seguir surgiu uma mulher com um casaco de abafo nas mãos, que a rapariga vestiu, sem deixar de olhar. E as duas afastaram-se, enquanto a mulher compunha a gola e os cabelos da menina.
Voltou a olhar no espelho e compreendeu o que devia fazer. Mas não ali. Havia pessoas a olhar, gente que o conhecia. Manobrou para desencostar, rapidamente, deixando a mão à porta para fechá-la, e desceu a rua o mais depressa que podia. Tinha um fito, um objectivo muito definido que já o tranqüilizava e tanto que se deixou ir com um sorriso que aos poucos lhe abrandara a aflição.
Só reparou na bomba de gasolina quando lhe ia a passar pela frente. Tinha um letreiro que dizia esgotado, e o carro seguiu, sem o mínimo desvio, sem diminuir a velocidade. Não quis pensar no carro. Sorriu mais. Estava a sair da cidade, eram já os subúrbios, estava perto o sito que procurava. Meteu por uma rua em construção, virou à esquerda e à direita, até uma azinhaga deserta, entre valados. Começava a chover quando parou o automóvel.
A sua ideia era simples. Consistia em sair de dentro da gabardina, torcendo os braços e o corpo, deslizando para fora dela, tal como faz a cobra quando abandona a pele. No meio de gente não se atreveria, mas, ali, sozinho, com um deserto em redor, só longe a cidade que se escondia por trás da chuva, nada mais fácil. Enganara-se, porém. A gabardina aderia ao encosto do banco, do mesmo modo que ao casaco, à camisola de lã, à camisa, à camisola anterior, à pele, aos músculos, aos ossos. Foi isso que pensou não pensando quando daí a dez minutos se retorcia dentro do carro, a chorar. Desesperado. Estava preso no carro. Por mais que se torcesse para fora, para a abertura da porta, por onde a chuva entrava emperrada por rajadas súbitas e frias, por mais que fincasse os pés na saliência alta da caixa de velocidades, não conseguia arrancar-se do assento. Com as duas mãos segurou-se ao tejadilho e tentou içar-se. Era como se quisesse levantar o mundo. Diante dos seus olhos, os limpa-vidros, que sem querer pusera em movimento no meio da agitação, oscilavam com um ruído seco, de metrônomo. De longe veio o apito da fábrica. E logo a seguir, na curva do caminho, apareceu um homem pedalando numa bicicleta, coberto com uma grande folha de plástico preto, por onde a chuva escorria como sobre a pele de uma foca. O homem que pedalava olhou curiosamente para dentro do carro e seguiu, talvez decepcionado ou intrigado, por ver um homem sozinho, e não o casal que de longe lhe parecera.
O que estava a passar-se era absurdo. Nunca ninguém ficara preso dessa maneira no seu próprio carro, pelo seu próprio carro. Tinha de haver um processo qualquer de sair dali. À força não podia ser. Talvez numa garagem? Não. Como iria explicar? Chamar a polícia? E depois? Juntar-se ia gente, tudo a olhar, enquanto a autoridade evidentemente o puxaria por um braço e pediria ajuda aos presentes, e seria inútil, porque o encosto do banco docemente o prenderia a si. E viriam os jornalista, os fotógrafos, e ele seria mostrado metido no seu carro em todos os jornais do dia seguinte, cheio de vergonha como um animal tosquiado à chuva. Tinha de arranjar outra maneira. Desligou o motor e sem interromper o gesto atirou-se violentamente para fora, como quem ataca de surpresa. Nem um resultado. Feriu-se na testa e na mão esquerda, e a dor causou-lhe uma vertigem que se prolongou, enquanto uma súbita e irreprimível vontade de urinar se expandia, libertando interminável o líquido quente que vertia e escorria entre as pernas para piso do carro. Quando tudo isso sentiu, começou a chorar baixinho, num ganido, miseravelmente, e assim esteve até que um cão, vindo da chuva, veio ladrar-lhe, esquálido e sem convicção, à porta do carro.
Embraiou devagar, com os movimentos pesados de um sonho de cavernas, e avançou pela azinhaga fazendo força para não pensar, para não deixar que a situação se lhe figurasse num entendimento. De um modo vago sabia que teria de procurar alguém que o ajudasse. Mas quem poderia ser? Não queria assustar a mulher, mas não restava outro remédio. Talvez ela conseguisse. Ao menos não se sentiria tão desgraçadamente sozinho.
Voltou a entrar na cidade, atento aos sinais, sem movimentos bruscos no assento, como se quisesse apaziguar os poderes que o prendiam. Passavam das duas horas e o dia escurecera muito. Viu três bombas de gasolina, mas o carro não reagiu. Todas tinham o letreiro de “esgotado”. À medida que penetrava na cidade, ia vendo automóveis abandonados em posições anormais, com os triângulos vermelhos colocados na janela de trás, sinal que noutras ocasiões seria de avaria, mas que significava, agora, quase sempre, falta de gasolina. Por duas vezes viu grupos de homens a empurrar automóveis para cima dos passeios, com grandes gestos de irritação, debaixo da chuva que não parara ainda.
Quando enfim chegou à rua onde morava, teve de imaginar como iria chamar a mulher. Parou o carro em frente da porta, desorientado, quase à beira doutra crise nervosa. Esperou que acontecesse o milagre de a mulher descer por obra e merecimento do seu silencioso chamado de socorro. Esperou muitos minutos, até que um garoto curioso da vizinhança se aproximou e ele pôde pedir-lhe, com o argumento de uma moeda, que subisse ao terceiro andar e dissesse à senhora que lá morava que o marido estava em baixo à espera, no carro. Que viesse depressa, que era muito urgente. O rapaz foi e desceu, disse que a senhora já vinha e afastou-se a correr, com o dia ganho.
A mulher descera como sempre andava em casa, nem sequer lembrara de trazer um guarda-chuva e agora estava entreportas, indecisa, desviando sem querer os olhos para um rato morto na berma do passeio, para o rato mole, de pelo arrepiado, hesitando em atravessar o passeio debaixo da chuva, um pouco irritada contra o marido que a fizera descer sem motivo, quando poderia muito bem ter subido a dizer o que queria. Mas o marido acenava de dentro do carro e ela assustou-se e correu. Deitou a mão ao puxador, precipitando-se para fugir à chuva, e quando enfim abriu a porta e viu diante do seu rosto a mão do marido aberta empurrando-a sem lhe tocar. Teimou e quis entrar, mas ele gritou-lhe que não, que era perigoso, e contou-lhe o que acontecia, enquanto ela encurvada recebia nas costas toda a chuva que caía e os cabelos se lhe desmanchavam, e o horror lhe crispava a cara toda. E viu o marido, naquele casulo quente e embaciado que o isolava do mundo, torcer-se todo no assento para sair do carro e não conseguir. Atreveu-se a agarra-lo por um braço e puxou, incrédula, e não pode também move-lo dali. E como aqui era horrível demais para ser acreditado, ficaram calados a olhar-se, até que ela pensou que o marido estava doido e fingia não poder sair. Tinha de ir chamar alguém para o tratar, para o levar aonde as loucuras se tratam. Cautelosamente, com muitas palavras, disse ao marido que esperasse um bocadinho, que ela não tardaria, ia procurar ajuda para ele sair, e assim até poderiam almoçar juntos e ele telefonaria para o escritório a dizer que estava constipado. E não iria trabalhar da parte da tarde. Quer sossegasse, o caso não tinha importância, a aver que não demora nada.
Mas quando ela desapareceu na escada, ele tornou a imaginar-se rodeado de gente, o retrato nos jornais, a vergonha de se ter urinado pelas pernas abaixo, e esperou ainda uns minutos. E quando em cima a mulher fazia telefonemas para toda a parte, para a polícia, para o hospital, lutando para que acreditassem nela, e não na sua voz, dando seu nome e o do marido, a cor do carro, e a marca, e a matrícula, ele não pôde agüentar a espera e a imaginação, e ligou o motor. Quando a mulher tornou a descer, o automóvel já desaparecera e o rato escorregara da berma do passeio, enfim, e rolava na rua inclinada, arrastado pela água que corria dos algeroses. A mulher gritou, mas as pessoas tardaram a aparecer e foi muito difícil de explicar.
Até o anoitecer o homem circulou pela cidade, passando por bombas esgotadas, entrando em filas de espera sem o ter decidido, ansioso por o dinheiro se lhe acabava e ele não saberia o que poderia acontecer quando não houvesse mais dinheiro e o automóvel parasse ao pé duma bomba para receber mais gasolina. E isso só não aconteceu porque todas as bombas começaram a fechar e as filas de espera que ainda se viam apenas aguardando o dia seguinte, e então o melhor era fugir de encontrar bombas ainda abertas para não ter que parar. Numa avenida muito longa e larga, quase sem outro trânsito, o carro da polícia acelerou e ultrapassou-o, e quando o ultrapassava um guarda fez-lhe sinal para que parasse. Mas ele teve outra vez medo e não parou. Ouviu atrás de si a sereia da polícia e viu, também, vindo não soube donde, um motociclista fardado quase a alcançá-lo. Mas o carro, o seu carro, deu um rondo, um arranco poderoso e saiu, de um salto, logo adiante, para o acesso duma auto-estrada. A polícia seguia-o de longe, cada vez mais longe, e quando a noite se fechou não havia sinais deles, e o automóvel rolava por outra estrada.
Sentia fome. Urinara outra vez, humilhado demais para se envergonhar e delirava um pouco: humilhado, himolhado. Ia declinando sucessivamente, alterando as consoante e as vogais, num exercício in consciente e obsessivo que o defendia da realidade. Não parava porque não sabia para que iria parar. Mas, de madrugada, por duas vezes, encostou o carro a berma e tentou sair devagarinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altuar de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixa-lo sair a bem, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir.
Toda a noite viajou sem saber por onde. Atravessou povoações de que não viu o nome, percorreu longas rectas, subiu e desceu montes, fez e desfez laços e deslaços de curvas, e quando a manhã começou a nascer estava em qualquer parte, numa estrada arruinada, onde a água da chuva se juntava em charcos arrepiados à superfície. O motor roncava poderosamente, arrancando as rodas à lama, e toda a estrutura do carro vibrava, com um som inquietante. A manhã abriu por completo, sem que o sol chegasse a mostrar-se, mas a chuva parou de repente. A estrada transformava-se num simples caminho, que adiante, a cada momento, parecia que se perdia entre pedras. Onde estava o mundo? Diante dos olhos eram serras e um céu espantosamente baixo. Ele deu um grito e bateu com os punhos cerrados no volante. Foi nesse momento que viu que ponteiro do indicador da gasolina estava em cima do zero. O motor pareceu arrancar-se a si mesmo e arrastou o carro por mais vinte metros. Era outra vez estrada para lá daquele lugar, mas a gasolina acabara.
José Saramago
O ópio
...Havia ruas inteiras dedicadas ao ópio... Os fumadores deitavam-se sobre baixas tarimbas... Eram os verdadeiros lugares religiosos da Índia... Não tinham nenhum luxo, nem tapeçarias, nem coxins de seda... Era tudo madeira por pintar, cachimbos de bambu e almofadas de louça chinesa... Pairava ali uma atmosfera de decência e austeridade que não existia nos templos... Os homens adormecidos não faziam movimento ou ruído... Fumei um cachimbo... Não era nada... Era um fumo caliginoso, morno e leitoso... Fumei quatro cachimbos e estive cinco dias doente, com náuseas que vinham da espinha dorsal, que me desciam do cérebro... E um ódio ao sol, à existência... O castigo do ópio... Mas aquilo não podia ser tudo... Tanto se dissera, tanto se escrevera, tanto se vasculhara nas maletas e nas malas, tentando apanhar nas alfândegas o veneno, o famoso veneno sagrado... Era preciso vencer a repugnância... Devia conhecer o ópio, provar o ópio, afim de dar o meu testemunho... Fumei muitos cachimbos, até que conheci... Não há sonhos, não há imagens, não há paroxismos... Há um enfraquecimento metódico, como se uma nota infinitamente suave se prolongasse na atmosfera... Um desvanecimento, um vácuo dentro de nós... Qualquer movimento do cotovelo, da nuca, qualquer som distante de carruagem, uma buzinadela ou um grito de rua, começam a fazer parte de um todo, de uma repousante delícia... Compreendi as razões por que os trabalhadores de plantação, os jornaleiros os «rickshamen» que puxam e continuam a puxar o «ricksha» dia após dia, ficavam ali de súbito, escurecidos, imóveis... O ópio não era o paraíso de seres exóticos que me tinham pintado, mas a evasão dos exploradores... Todos os clientes da casa do fumo eram pobres diabos... Não havia nenhum coxim bordado, nenhum indício da menor riqueza... Nada brilhava no recinto, nem sequer os semicerrados olhos dos fumadores... Descansavam, dormiam?.... Nunca o soube... Ninguém falava... Ninguém falava nunca... Não havia móveis, tapetes, nada... Sobre as tarimbas surradas, suavíssimas ao tacto humano, viam-se umas pequenas almofadas de madeira... Nada mais, além do silêncio e do aroma do ópio, estranhamente repulsivo e poderoso... Existia ali, sem dúvida, um caminho para o aniquilamento... O ópio dos magnates, dos colonizadores, destinava-se aos colonizados... As casas de fumo tinham à porta a autorização legal, com o número e o registo... No interior reinava um grande silêncio opaco, uma inacção que abrandava a desdita e adoçava a fadiga... Um silêncio caliginoso, sedimento de muitos sonhos mutilados que encontravam o seu remanso... Aqueles que sonhavam, com os olhos semicerrados, viviam uma hora submersos pelo mar, uma noite inteira numa colina, gozando um repouso subtil e deleitoso...
Depois daquela vez, não voltei às casa de ópio... Já sabia... Já conhecia... Já havia alcançado algo de inapreensível... remotamente escondido por detrás do fumo...
Pablo Neruda, "Confesso que Vivi"
quinta-feira, novembro 27
A rainha Nefertite
Vi no Cairo o mais solene espetáculo do mundo. Quem, na França, já viu iluminado à noite um castelo do Loire ou o de Versalhes, num desses espetáculos Son et Lumière em que as luzes vão cambiando suavemente suas cores enquanto a música se alteia e uma voz se eleva para evocar, solene e poética, a passagem dos séculos sobre aqueles monumentos de pedra — viu apenas o prelúdio do que se faz no Cairo. Nunca houve uma cena de teatro mais ampla no mundo.
E a história que ouvimos é bem mais antiga que a dos castelos franceses: aqui a História tem 5.000 anos.
Cem mil homens a ergueram, assentando sabiamente três milhões de pedras, com o peso médio de duas toneladas e meia; as mais belas dessas pedras vinham das jazidas de Assuã, descendo o Nilo em balsas imensas. Ali desfilou uma longa teoria de reis, as dinastias sucederam-se, os reis e os conquistadores curvaram-se diante daquelas gigantescas sentinelas do deserto à margem do rio sagrado. Ali esteve Heródoto. Ali surgiram um dia os cristãos e depois os muçulmanos. “Ali, perante os monumentos eternos, pasmaram Alexandre, o Grande, César e Napoleão; e tudo o que fizeram foi erguer com seus passos, por instantes, um pouco de poeira do deserto”.
Mas de todos esses tronos e esses túmulos de uma gravidade impressionante, dessa geometria da Morte e do Eterno, o que mais importa é uma flor de graça a fragilidade: a Rainha Nefertite. Ali foram encontradas imagens suas; a mais bela, porém, está no museu de Berlim, onde fui vê-la com emoção há três anos.
Dizem que é a mais linda mulher do mundo de todos os tempos.
Talvez por isto eu esperasse ver algo de perfeito. Vi apenas uma fina cabeça de mulher encimada por um imenso barrete real de azul e ouro. O pescoço é fino e gracioso como um colo de cisne ou a haste de uma flor. A linha firme do queixo, a delicadeza da orelha, o rasgado estranho dos olhos, a boca sensual e triste com um indefinível sorriso... Não, ela não é perfeita.
Um dos olhos parece maior que o outro; o nariz reto é ligeiramente achatado na ponta. O perfil esquerdo é diferente do direito: mais expressivo, com o desenho dos músculos e dos ossos da face magra mais em relevo. Mas são essas irregularidades mínimas que dão uma impressionante graça humana a essa cabeça imperial e melancólica; o que vemos não é apenas a imagem de uma rainha de poderes divinos, é o mistério e a fragilidade de uma linda mulher que há milhares de anos fascina os que a contemplam.
Vendo e ouvindo o imenso espetáculo da história daqueles monumentos eternos, uma noite no Cairo, era na frágil Nefertite que eu pensava — mulher, flor, sonho de arte que vive para sempre.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
Versalhes tem uma fachada de 550 metros; ali, entre o Nilo e o deserto, ao ocidente do Cairo, a cena é de dois quilômetros de extensão por mais de um de profundidade, e até 146 metros de altura. Abrange as três pirâmides de Gizé: Quéops, Kéfren e Mikerinos — as pirâmides menores das rainhas e ministros, os templos de pedra, e a Esfinge.
E a história que ouvimos é bem mais antiga que a dos castelos franceses: aqui a História tem 5.000 anos.
Sob o céu puro do deserto — um pouco à esquerda, Vênus e a lua minguante descem para o horizonte — uma estranha luz de alvorada banha a face da Esfinge, e ouvimos a sua voz: "A cada nova aurora eu vejo erguer-se o Sol na outra margem do Nilo. Seu primeiro raio é para a minha face, voltada para o Oriente. Há 5.000 anos vejo erguerem-se todos os sóis de que os homens guardam memória."
Evoca depois a construção da maior das pirâmides, do Faraó Quéops, há 4.500 anos.
Evoca depois a construção da maior das pirâmides, do Faraó Quéops, há 4.500 anos.
Cem mil homens a ergueram, assentando sabiamente três milhões de pedras, com o peso médio de duas toneladas e meia; as mais belas dessas pedras vinham das jazidas de Assuã, descendo o Nilo em balsas imensas. Ali desfilou uma longa teoria de reis, as dinastias sucederam-se, os reis e os conquistadores curvaram-se diante daquelas gigantescas sentinelas do deserto à margem do rio sagrado. Ali esteve Heródoto. Ali surgiram um dia os cristãos e depois os muçulmanos. “Ali, perante os monumentos eternos, pasmaram Alexandre, o Grande, César e Napoleão; e tudo o que fizeram foi erguer com seus passos, por instantes, um pouco de poeira do deserto”.
Mas de todos esses tronos e esses túmulos de uma gravidade impressionante, dessa geometria da Morte e do Eterno, o que mais importa é uma flor de graça a fragilidade: a Rainha Nefertite. Ali foram encontradas imagens suas; a mais bela, porém, está no museu de Berlim, onde fui vê-la com emoção há três anos.
Dizem que é a mais linda mulher do mundo de todos os tempos.
Talvez por isto eu esperasse ver algo de perfeito. Vi apenas uma fina cabeça de mulher encimada por um imenso barrete real de azul e ouro. O pescoço é fino e gracioso como um colo de cisne ou a haste de uma flor. A linha firme do queixo, a delicadeza da orelha, o rasgado estranho dos olhos, a boca sensual e triste com um indefinível sorriso... Não, ela não é perfeita.
Um dos olhos parece maior que o outro; o nariz reto é ligeiramente achatado na ponta. O perfil esquerdo é diferente do direito: mais expressivo, com o desenho dos músculos e dos ossos da face magra mais em relevo. Mas são essas irregularidades mínimas que dão uma impressionante graça humana a essa cabeça imperial e melancólica; o que vemos não é apenas a imagem de uma rainha de poderes divinos, é o mistério e a fragilidade de uma linda mulher que há milhares de anos fascina os que a contemplam.
Vendo e ouvindo o imenso espetáculo da história daqueles monumentos eternos, uma noite no Cairo, era na frágil Nefertite que eu pensava — mulher, flor, sonho de arte que vive para sempre.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
Assinar:
Comentários (Atom)
















