quinta-feira, julho 31
Literatura minimalista: a arte de dizer muito com pouco
Leminski é o homenageado da 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que segue até o domingo dia 8. Apaixonado pela cultura do Japão, o escritor praticou judô (chegou a faixa-preta), aprendeu o idioma (falava seis línguas) e traduziu Yukio Mishima (além de James Joyce e Samuel Beckett).
"O haicai tem o seu fascínio. Não só pela leitura rápida, mas pela sacada inteligente", observa o jornalista Toninho Vaz, autor da biografia Paulo Leminski – O Bandido que Sabia Latim.
Leminski não era o único "haicaísta" da família. A mãe de Estrela, Alice Ruiz, também gosta de produzir os tradicionais poemas japoneses de três versos e dezessete sílabas. Não por acaso, marca presença na antologia Haicais Tropicais, organizada por Rodolfo Witzig Guttilla. Na introdução, Guttilla explica que o gênero surgiu no século 7, atingiu seu apogeu no século 17 com Bashô e chegou ao Brasil no século 20 pelas mãos de Monteiro Lobato.
Outros gigantes da literatura brasileira, como Manoel de Barros e Mário Quintana, também flertaram com o gênero. Quintana chegou a publicar um livro só de haicais em 1994, o ano de sua morte. O volume foi organizado por Ronald Polito e ilustrado por Roberto Negreiros. Um deles é "Noturno", do livro Velório Sem Defunto. Diz assim: "Aquela última janela acesa / No casarão/ Sou eu…".
"Quintana era um inovador", define Gustavo Grandinetti, autor de O Passarinho do Contra, em que biografa o poeta. "Tinha paixão por escrita sucinta, direta. Dizia que seu método era cortar sempre, até reduzir o texto à sua forma mais simples."
Mas o haicai não é o único exemplo de literatura minimalista. Há outros, como minicontos e aforismos.
Segundo Marcelo Spalding, doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o miniconto está para a prosa como o haicai para a poesia. "Miniconto é um conto muito curto", define. "Se [Júlio] Cortázar dizia que o conto vence por nocaute, o miniconto deve vencer por nocaute no primeiro soco do primeiro round."
A origem do miniconto, prossegue Spalding, é atribuída ao escritor guatemalteco Augusto Monterroso. Em 1959, publicou O Dinossauro: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá". Inspirado nele, Marcelino Freire desafiou 100 escritores brasileiros, como Moacyr Scliar, Dalton Trevisan e Lygia Fagundes Telles, a escrever histórias curtas de até 50 letras, sem contar título ou pontuação – o miniconto de Monterroso só tem 37! O resultado pode ser conferido em Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. "Um bom miniconto é aquele que nada mais pode ser tirado e nada mais pode ser incluído", explica Freire, o organizador da antologia. "Escrever curto é difícil, viu? Tem de dizer logo o que se quer e ir embora."
Se Leminski é unanimidade quando o assunto é haicai, Trevisan é apontado como o precursor do miniconto no Brasil. Quem explica é Fabiana Faversani, a gestora de sua obra. Em Lincha Tarado, Meu Querido Assassino e Pão e Sangue, Trevisan intercala textos breves, separados por asteriscos e denominados como haicais, com narrativas longas. Esse processo culmina em Ah, É?, de 1994, livro que renova e recria a forma breve à sua maneira em 187 narrativas sem título, numeradas sequencialmente e chamadas de ministórias. Esse ciclo de fragmentação prossegue em 234 e em Pico na Veia e se fecha em Desgracida.
Em 2025, ano em que completaria um século de vida, Dalton Trevisan ganha antologia, Educação Sentimental do Vampiro, organizada por Felipe Hirsch e Caetano Galindo, e seis reedições de sua obra pela Editora Todavia. "A provocação que as ministórias carregam em si é um 'pico na veia' à apatia do leitor moderno pela capacidade de desconfortos e epifanias que geram a cada (re)leitura", observa Faversani. "Num mundo tão acelerado, a brevidade é um grande atrativo."
Outro gênero do "menos é mais" é o aforismo. "É uma pequena joia de sabedoria: curto e profundo, surpreendente e reflexivo", sintetiza o jornalista Carlos Castelo, de Frases Desfeitas: Mais de 1000 Frases, Aforismos e Máximas Para Ler Antes de Morrer de Rir. "Faz pensar mais do que muito livro grosso."
Se os haicais surgiram no século 7 e os minicontos no século 20, é difícil dizer quando surgiram os primeiros aforismos. Na Grécia, Heráclito de Éfeso já soltava algumas de suas pérolas, como "Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio".
"São brevíssimos apenas na forma. No conteúdo, encerram uma temporalidade longa", pondera o filósofo Francisco Bosco, de Meia Palavra Basta.
Na hora de apontar seu aforista predileto, tanto Castelo quanto Bosco elegem Millôr Fernandes. Já o publicitário Ciro Pellicano, de Atingi a Sabedoria, Mas Só de Raspão, vai de Ambrose Bierce. "Por seu talento e coragem", justifica. "Imagine o que ele faria hoje com padres vigaristas, políticos desonestos, chatos em geral…"
Em 1994, o desenhista Millôr Fernandes reuniu seus 5.142 aforismos em A Bíblia do Caos. No verbete dedicado ao tema, lembra da vez em que traçou um ensopadinho à mineira num boteco vagabundo da Urca com Sérgio Porto. Lá pelas tantas, o alter ego de Stanislaw Ponte Preta pediu dois ovos fritos. E proferiu, na opinião de Millôr, um de seus aforismos mais simples e verdadeiros: "Em matéria de comida não há nenhuma porcaria que dois ovos em cima não melhorem."
Pelo menos dois cronistas brasileiros lançaram coletâneas de aforismos: Carlos Drummond de Andrade, O Avesso das Coisas, e Paulo Mendes Campos, De Um Caderno Cinzento: Crônicas, Aforismos e Outras Epifanias. "Gostava tanto de aforismos que, em seu 'Diário da Tarde', jornal que imaginou fazer, criou uma seção dedicada a aforismos chamada 'Coriscos na Floresta'", explica Elvia Bezerra, organizadora da antologia De Um Caderno Cinzento. "É dessa seção o aforismo 'Nada do que é humano me é estranho; a não ser a joie de vivre' [alegria de viver], composto a partir de um verso de Terêncio, 'Sou homem: eu não considero alheio a mim nada do que é humano'".
Em suas divagações, Bezerra indaga: "Quantos aforismos há, entranhados, em Grande Sertão: Veredas?". Não só na obra-prima de Guimarães Rosa, mas em livros de Clarice Lispector, em peças de Ariano Suassuna ou em músicas de Milton Nascimento. Não por acaso viraram estampas de camisetas: "Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome", de Perto do Coração Selvagem; "Não sei. Só sei que foi assim", de O Auto da Compadecida; e "Amigo é coisa pra se guardar", de Canção da América.
"Durante a pandemia, a música Paciência, do Lenine, abraçou uma causa e ganhou o país. Gerou renda para toda a equipe de produção do artista", recorda Vitor Vizeu, o diretor de marketing da Chico Rei. Por pouco, a marca de camisetas personalizadas não atribuiu a autoria de "Tenho medos bobos e coragens absurdas" a Clarice Lispector. Sua autora é Tati Bernardi. "A internet deixa a gente tão louca que eu mesma me falsifiquei", brincou em 2013 Bernardi, autora de Depois a Louca Sou Eu, entre outros.
A literatura minimalista de Leminski, Trevisan e Millôr inspirou autores da novíssima geração, como Pedro Gabriel, de Eu Me Chamo Antônio, e Pedro Vinício, de Tirando Tudo Tá Tudo Bem. Se o primeiro encanta pelos guardanapos poéticos, como "Quem fica faz arte com as sobras de quem parte", o segundo diverte pelos desenhos bem-humorados, como "Acordo cedo para me atrasar com calma".
Em seu próximo livro, Antôniologia, Gabriel dedica o texto Uma Escuridão Transparente a Leminski. "Sua criação tem corpo de piada, alma de filosofia e ritmo de canção", derrama-se o escritor e ilustrador. "Me ensinou que poesia pode ter profundidade e descontração."
"A concisão pode ser poderosa, sim. Mas, não pode ser confundida com superficialidade", ressalta Estrela Ruiz Leminski. "É aí que meu pai continua tão atual: ele era breve, mas nunca raso." Vida longa aos textos curtos.
O nudista militante
A gravação consistia em fugazes entradas na cabine de locução, separadas por compridos intervalos que eu matava lendo, espiando a dublagem de outras películas ou, mais amiúde, conversando com meu amigo projeccionista, Monsieur Louis. Dizer conversando é um exagero e uma mentira, pois conversar sugere intercâmbio e reciprocidade, e o nosso consistia exclusivamente em eu escutar o que ele dizia e em, de tempos em tempos, me limitar a intercalar em seu monólogo alguma observação banal, para manter a aparência, e dar a ele e a mim mesmo a impressão de que, de fato, conversávamos. Monsieur Louis era um desses homens que não admitem interlocutores: somente ouvintes.
Devia estar beirando os sessenta e era baixo, magro, com uns cabelos brancos que rareavam, uma tez rosada e uns olhinhos azuis muito tranquilos. Tinha uma voz que nunca se elevava nem endurecia, suave, monótona, persistente, ininterrupta. Vestia sempre um avental branco, imaculado como toda a sua pessoa, e seu rosto ostentava em qualquer ocasião um assomo de sorriso que nunca chegava a materializar-se. Poderia-se tomá-lo por um enfermeiro ou um laboratorista pois seu traje, seu semblante e suas maneiras de algum modo faziam pensar em hospitais, doentes e provetas cheias de química. Mas era projeccionista e estava ligado ao cinema desde muito jovem. Alguma vez ouvi que, nos anos trinta, trabalhara como cameraman na filmagem clandestina de curtas pornográficos cujos galãs eram, de preferência, cavalheiros tuberculosos, já que estes, dizia ele, tinham erecções prolongadíssimas que, dada a lentidão da rodagem, facilitavam muito as coisas. Mas Monsieur Louis havia deixado esse trabalho por temor à polícia. Na realidade não gostava de falar sobre isso nem de nada que não fosse o tema de sua vida: o nudismo.
Porque Monsieur Louis era nudista. Passava integralmente seu mês de férias na Île du Levant, uma pequena ilha mediterrânea onde funcionava a única colônia de nudistas autorizada na França nesse tempo. Passava os onze meses restantes economizando, trabalhando e contando as horas que faltavam para, com o sol de Agosto, voltar a viver por trinta dias ao ar livre, fotografando mariposas e casulos, acendendo fogueiras, queimando-se sobre as rochas ou molhando-se no mar, nu como uma foca. Andar nu, rodeado de pessoas nuas, lhe produzia uma ilimitada felicidade e, aparentemente, lhe resolvia todos os problemas. O nudismo era para ele uma dedicação permanente. Dez minutos após conhecê-lo, descobria-se que não só era seu único tema de conversação como também de reflexão e de acção. Porque assim como outros dedicam seus dias e suas noites a catequizar os demais e ganhá-los para a verdadeira religião ou para a verdadeira revolução, Monsieur Louis havia consagrado os seus a esse inconcebível apostolado: ganhar adeptos para o nudismo.
Nossa boa relação provinha de que ele me considerava um catecúmeno. E eu encorajava essa crença, escutando com verdadeiro interesse, entre as gravações de Les Actualités Françaises, os discursos com que ia-me iluminando sobre os fundamentos, segredos, lições e virtudes da filosofia nudista. Explicou-me tudo cem vezes, com argumentos e exemplos que se repetiam, obsessivos, em sua vozinha pausada, confiada, e incansável na propagação da fé. Falou-me da Grécia e da beleza dos corpos que se movem e despregam em liberdade, sem coberturas escravizantes; da comunhão do homem com a natureza, a única que pode devolver-nos a saúde física e a paz espiritual que perdemos por renegar covardemente a nossa primeira nudez; da necessidade de vencer os preconceitos, a hipocrisia, a mentira (em outras palavras: o vestuário) e de restabelecer a sinceridade e a frescura que existem nas relações entre, por exemplo, as aves e os pequenos cervos e que no paraíso terreno existiram também entre os humanos (e a que se devia isso?). Incontáveis vezes assegurou-me que, na Île du Levant, ao despojar-se das roupas, os homens e as mulheres tiravam também os maus pensamentos, os complexos de inferioridade, os vícios. Ouvindo-o, chegava-se quase a convencer-se de que o nudismo era aquela panaceia universal, cura de todos os males, que os alquimistas medievais buscaram com tanto desespero.
As lições não eram somente orais. Monsieur Louis me levava folhetos proselitistas e fotografias coloridas da ilha da liberdade. Aí estavam os nudistas, de corpo inteiro, a aí estava ele, rosáceo, helénico, bebendo o néctar das flores ou picando alegremente uns tomates, enquanto uma jovenzinha de lindos seios e púbis encaracolado refrescava umas alfaces. Durante um bom tempo chegaram em minha casa formulários, boletins de subscrição, convites de clubes nudistas, que nunca preenchi nem respondi.
Porque, apesar de seus esforços, Monsieur Louis não me ganhou para o nudismo. Mas, em compensação, me ajudou a identificar uma variedade humana que, sob diferentes roupas e afazeres, encontra-se pavorosamente estendida pelo mundo. O que recordo dele, sobretudo, é seu olhar: tranquilo, fixo, irredutível, cego para tudo o que não fosse ele mesmo. É um olhar que, em parte graças a ele, reconheço com facilidade e que vi reaparecer, multiplicada, uma e outra vez em religiosos e revolucionários, em intelectuais e em moralistas, sobretudo em ideólogos de toda espécie. É o olhar do que pensa ser dono da verdade, do que não se distrai, do que nunca duvida, do humano mais prejudicial: o fanático.
Mário Vargas Llosa
‘E tudo vai indo ...'
Tinha razão o casal de velhos que, no “cartoon” de uma revista americana, fazia uma imensa fogueira de máquinas em frente à sua casa: geladeira, rádio, televisão, aspirador, enceradeira, torradeira, batedor de bolo, e toda essa parafernália com que vamos diariamente aumentando o nosso inferno cotidiano. E ante o pasmo dos vizinhos, explicavam, sorridentes:
- Resolvemos simplificar nossa vida.
quarta-feira, julho 30
Paisagística
O conforto, a higiene, sim... No entanto, um ranchinho de barro e sapé vai muito melhor com a paisagem.
A solução
Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la, continuando a bater à máquina.
À medida que a amizade de Alice não existia, a amizade de Almira mais crescia. Alice era de rosto oval e aveludado. O nariz de Almira brilhava sempre. Havia no rosto de Almira uma avidez que nunca lhe ocorrera disfarçar: a mesma que tinha por comida, seu contato mais direto com o mundo.
Por que Alice tolerava Almira, ninguém entendia. Ambas eram datilógrafas e colegas, o que não explicava. Ambas lanchavam juntas, o que não explicava. Saíam do escritório à mesma hora e esperavam condução na mesma fila. Almira sempre pajeando Alice. Esta, distante e sonhadora, deixando-se adorar. Alice era pequena e delicada. Almira tinha o rosto muito largo, amarelado e brilhante: com ela o batom não durava nos lábios, ela era das que comem o batom sem querer.
Gostei tanto do programa da Rádio Ministério da Educação, dizia Almira procurando de algum modo agradar. Mas Alice recebia tudo como se lhe fosse devido, inclusive a ópera do Ministério da Educação.
Só a natureza de Almira era delicada. Com todo aquele corpanzil, podia perder uma noite de sono por ter dito uma palavra menos bem dita. E um pedaço de chocolate podia de repente ficar-lhe amargo na boca ao pensamento de que fora injusta. O que nunca lhe faltava era chocolate na bolsa, e sustos pelo que pudesse ter feito. Não por bondade. Eram talvez nervos frouxos num corpo frouxo.
Na manhã do dia em que aconteceu, Almira saiu para o trabalho correndo, ainda mastigando um pedaço de pão. Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não a viu. Uma hora depois esta aparecia de olhos vermelhos. Não quis explicar nem respondeu às perguntas nervosas de Almira. Almira quase chorava sobre a máquina.
Afinal, na hora do almoço, implorou a Alice que aceitasse almoçarem juntas, ela pagaria.
Foi exatamente durante o almoço que se deu o fato.
Almira continuava a querer saber por que Alice viera atrasada e de olhos vermelhos. Abatida, Alice mal respondia. Almira comia com avidez e insistia com os olhos cheios de lágrimas.
– Sua gorda! disse Alice de repente, branca de raiva. Você não pode me deixar em paz?!
Almira engasgou-se com a comida, quis falar, começou a gaguejar. Dos lábios macios de Alice haviam saído palavras que não conseguiam descer com a comida pela garganta de Almira G. de Almeida.
– Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo Alice. Quer saber o que houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é que Zequinha foi embora para Porto Alegre e não vai mais voltar! agora está contente, sua gorda?
Na verdade Almira parecia ter engordado mais nos últimos momentos, e com comida ainda parada na boca.
Foi então que Almira começou a despertar. E, como se fosse uma magra, pegou o garfo e enfiou-o no pescoço de Alice. O restaurante, ao que se disse no jornal, levantou-se como uma só pessoa. Mas a gorda, mesmo depois de feito o gesto, continuou sentada olhando para o chão, sem ao menos olhar o sangue da outra.
Alice foi ao Pronto-Socorro, de onde saiu com curativos e os olhos ainda arregalados de espanto. Almira foi presa em flagrante.
Algumas pessoas observadoras disseram que naquela amizade bem que havia dente de coelho. Outras, amigas da família, contaram que a avó de Almira, dona Altamiranda, fora mulher muito esquisita. Ninguém se lembrou de que os elefantes, de acordo com os estudiosos do assunto, são criaturas extremamente sensíveis, mesmo nas grossas patas.
Na prisão Almira comportou-se com docilidade e alegria, talvez melancólica, mas alegria mesmo. Fazia graças para as companheiras. Finalmente tinha companheiras. Ficou encarregada da roupa suja, e dava-se muito bem com as guardiães, que vez por outra lhe arranjavam uma barra de chocolate. Exatamente como para um elefante no circo.
Clarice Lispector, "Todos os Contos"
Para um amigo
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
Anuska
— Ora diz lá, a senhora sabe que a Ana é um pouco…?
E dizendo isto, agitou em frente da testa a mão queimada e enrugada como uma folha de castanheiro.
— Imbecil! — respondeu a camponesa. — Não somos nós que devemos…
E assim foi Ana para casa dos Blaha. A maior parte das vezes ficava sozinha durante o dia inteiro. O patrão estava no escritório e a senhora trabalhava em costura fora de casa; não tinham filhos.
Ana passava o tempo sentada na pequena cozinha sombria, uma das janelas da qual dava para o pátio, e esperava a chegada da caixa de música. Vinha todas as tardes, antes do pôr do sol. Inclinava-se então o mais que podia para fora da janela e, enquanto o vento lhe agitava os cabelos claros, dançava interiormente até à vertigem e até que as paredes altas e sujas parecessem balançar-se uma em frente da outra. Quando a dominava o medo da solidão, percorria toda a casa, descia a escada sombria até ao saguão, onde um homem cantava, meio embriagado. Encontrava sempre no seu caminho crianças, que vagabundeavam durante horas sem fim no pátio, sem que os pais notassem a ausência de nenhuma delas, e, coisa estranha, os pequenos pediam-lhe sempre que lhes contasse histórias. Por vezes seguiam-na mesmo até à cozinha. Ana sentava-se então ao lado do forno, escondia o rosto pálido nas mãos e dizia: “Refletir”. As crianças esperavam durante algum tempo. Mas quando Anuska continuava a refletir e o silêncio na cozinha sombria as intimidava, as crianças fugiam, sem verem que a pobre moça se punha a chorar com lamentosa meiguice e que a saudade da terra a torturava. De que tinha ela saudades? Ninguém poderia dize-lo. Talvez até das pancadas que lá lhe davam. A maior parte das vezes não sabia o que era que a fazia sofrer de saudades; talvez alguma coisa que um dia existira, a menos que tivesse sido apenas sonho. À força de refletir sempre que tinha as crianças junto de si, foi-se, pouco a pouco, recordando. A princípio era vermelho, vermelho, depois aparecia uma grande multidão. Ouvia-se então o pesado som de um sino e, em seguida, surgiam um rei, um camponês e uma torre. “Meu senhor rei”, disse o campônio… “Sim”, respondeu o rei em voz altiva, “Já sei”. E, com efeito, como é que um rei poderia ignorar tudo aquilo que um camponês pode ter para lhe dizer?
Algum tempo depois, a patroa levou a mocinha a fazer compras. Como o Natal se aproximava e era à tardinha, as vitrines estavam já iluminadas e providas de uma porção de coisas. Numa loja de brinquedos, Ana viu, de repente, aquilo que era objeto da sua recordação: o rei, o campônio e a torre. Oh! E o coração bateu-lhe com mais força do que os seus passos no lajedo. Mas depressa desviou os olhos e, sem se deter, continuou a seguir a senhora Blaha. Dominava-a o sentimento de que não deveria revelar nada do seu segredo, e o teatro das bonecas ficou atrás delas, como se não o tivessem notado. Com efeito, a senhora Blaha, não tendo filhos, nem sequer tinha feito reparo.
Um pouco mais tarde, Ana teve o seu dia de saída. Não voltou à noite. Um homem, que encontrara à porta de um café, fez-lhe companhia, e não se lembrava com exatidão do lugar aonde ele a conduzira. Afigurava-se-lhe ter estado ausente durante um ano inteiro. E quando, fatigada, voltou, na segunda de manhã, para a pequena cozinha, esta pareceu-lhe ainda mais fria e mais sombria do que habitualmente. Nesse dia, partiu uma terrina, o que lhe valeu uma violenta descompostura. A patroa nem sequer notara a sua ausência durante uma noite inteira. Depois, pelo começo do ano, dormiu fora mais três noites. E, de repente, deixou de passear através da casa, fechou, receosamente, a janela e nunca mais apareceu, nem mesmo quando a caixa de música surgia.
Assim passou o Inverno, e uma pálida e tímida Primavera começou. É uma estação com um aspecto muito particular nos pátios interiores. As casas são negras e húmidas, mas a atmosfera aparece, ali, luminosa e comparável ao linho mais branco. As janelas, mal lavadas, lançam reflexos saltitantes e leves flocos de poeira dançam ao vento, descendo ao longo dos andares. Ouvem-se os ruídos da casa inteira, as caçarolas tilintam com um barulho muito diferente do habitual, com um som mais claro, mais agudo, e até as facas e as colheres têm som diferente.
Nesse tempo, Anuska teve um filho. Foi para ela uma grande surpresa. Depois de se sentir, durante longas semanas, volumosa e pesada, aquilo escapou-se-lhe, uma bela manhã, de dentro, e surgiu neste mundo, vindo sabe Deus donde. Era domingo e toda a gente dormia ainda em casa. Olhou durante um instante a criança, sem o rosto se lhe alterar o mínimo que fosse. Mal se mexia! De repente, porém, uma vozinha aguda saiu do pequenino peito. No mesmo instante, a senhora Blaha chamou e as molas da cama estalaram no quarto de dormir. Anuska agarrou então no avental azul que estava em cima da cama, apertou as fitas em volta do pescocinho delgado e pôs aquilo, como um embrulho, no fundo da mala. Passou depois à cozinha, entreabriu as cortinas e começou a preparar o café.
Num dos dias seguintes, Anuska deitou contas aos salários que até então recebera: eram quinze florins. Fechou depois a porta, abriu a mala e pousou o avental azul, com o que continha, em cima da mesa. Abriu-o, lentamente, olhou a criança, mediu-a dos pés à cabeça com a ajuda de um metro. Depois, pôs, de novo, tudo em ordem e foi à cidade. Que pena! O rei, o camponês e a torre eram muito mais pequenos. Trouxe-os, contudo, e, com eles, outras bonecas ainda, a saber: uma princesa com manchas vermelhas e redondas nas faces, um velhote com uma cruz ao peito e que se parecia com São Nicolau por causa da barba comprida e mais duas ou três outras menos belas e imponentes. Além disso, um teatro cujo pano subia e descia, mostrando ou escondendo o jardim que formava o cenário.
Anuska tinha, finalmente, com que se ocupar durante as suas horas de solidão e de nostalgia. Instalou aquele magnífico teatro (custara doze florins) e colocou-se por detrás dele como convém. Mas, por vezes, quando o pano subia, corria pela frente do teatro, olhava para aquele jardim, e toda a cozinha, pardacenta, desaparecia, então, por detrás das grandes árvores magníficas. Depois recuava alguns passos, pegava em duas ou três bonecas e punha-as a falar. Não era uma verdadeira peça; as bonecas falavam e respondiam umas às outras; também, por vezes, acontecia que duas bonecas, como que aterrorizadas, se inclinavam, subitamente, uma diante da outra, ou faziam um cumprimento ao velhote que não podia curvar-se, por ser todo de madeira. Por isso, a emoção fazia-o em todos esses casos cair para trás.
O boato dessa brincadeira correu entre as crianças, e, em breve, os pequenos da vizinhança, a princípio prudentes e depois cada vez mais atrevidos, apareceram na cozinha dos Blaha, de pé, pelos cantos, quando a noite começava a cair, sem perderem de vista as belas bonecas que repetiam sempre as mesmas coisas.
Um dia, Anuska, com as faces em fogo, disse:
— Tenho ainda uma muito maior!
As crianças tremiam de impaciência. Mas Anuska parecia esquecida do que acabara de dizer. Dispôs todas as personagens no jardim, apoiando contra o cenário as que não podiam ter-se em pé. Nesta ocasião apareceu uma espécie de Arlequim, de grande cara redonda, que as crianças não se lembravam de ter visto. A curiosidade ainda ficou mais excitada com todo aquele esplendor, e os pequenos suplicaram que lhes mostrasse a “maior de todas”. Só uma vez, a “maior de todas”! Por um instante só, a “maior de todas”!
Anuska caminhou para a mala. A noite caía. As crianças e as bonecas estavam de pé, umas em frente das outras, silenciosas e quase iguais. Mas, dos grandes olhos abertos do Arlequim, que pareciam esperar qualquer espetáculo terrível, espalhou-se, de súbito, um tal pavor pelas crianças que soltando agudos gritos, fugiram sem exceção. Um grande objeto azulado se destacava nas mãos de Anuska que, de repente, tinham começado a tremer. A cozinha, abandonada pelas crianças, ficara estranhamente vazia e silenciosa. Anuska não sentia medo. Riu docemente, derrubou o teatro com um pontapé, depois espezinhou as travessazinhas de madeira que tinham figurado o jardim, e, quando a cozinha ficou mergulhada na noite, andou à volta dela, a machucar o crânio a todas as bonecas, incluindo a azul, a maior.
terça-feira, julho 29
O artista brinca sempre
Mas não tenho de as fazer!
A qualidade de desenvoltura artística não preenche os espaços, todos os espaços, de uma composição literária.
Histórias, saber contar histórias (mesmo nestas horas chatas e banais, vazias, do tempo individual) deve ser agradável. E ver depois que se contaram bem, muitíssimo agradável!
M. contou histórias novas. Sem bizararia. O seu mérito foi esse. Achou histórias para contar, e deu-lhes alma. Caiu aqui, levantou-se ali... mas carregou-as, insuflou-as de ardência, de espectáculo e de modéstica, de personalismo afectivo.
I. achou (foi lúcida) que era uma portuguesa. E que os portugueses são todos assim, mas porquê? desenganados, quase cépticos, deplorativos.
Sim, há excessivo subjectivismo, excesso de intromissão pessoal na narrativa dos portugueses. Põem-se demasiado ao espelho nas suas obras. Hábito? Moda fatalmente transmitida? Comodidade? Restrição de estilo?
Mas M. contou, soube contar coisas de grande afinidade, todas sujeitas a um nexo. Coisas de um lado, de uma janela da sua visão. E bateu-as, encheu-as dos seus sentimentos.
A vida, vista, presenciada, é plana, insinuosa, sem vulto. M. deu-lhe vulto; pela anedota? Sim, mas também pelo seu comentário e o fervor com que apresenta a anedota.
M. mostrou-nos a sociedade que conhece, mas com que não lida, com que se não comprometeu. Porque M. tem no seu livro muitos dos seus sentimentos e ressentimentos, mas não as suas atitudes, o seu espírito mundano, convivente, nem o seu 'savoir-faire'.
Esta é a grande dificuldade ou cautela do artista: dar-se, comprometendo-se. Deseja e foge a comprometer-se. O artista brinca sempre. Consciente e inconsciente. Defende-se dos outros, seus próximos. Dos outros e do seu próprio constrangedor, pesante, imediato ambiente.
Irene Lisboa, “ Solidão II”
Eu queria ...
Eu queria fazer parte do orvalho como as pedras.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu não poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem.
Porque o homem não se transfigura senão pelas palavras.
E isso era mesmo.
Futuro sem hora
O Homem das Neves acorda antes do amanhecer. Ele fica deitado, imóvel, ouvindo a maré encher, uma onda atrás da outra derramando-se sobe as diversas barricadas, wish-wash, wish-wash, no ritmo do coração. Ele gostaria tanto de acreditar que ainda estava dormindo.
A leste, no horizonte, há uma névoa cinzenta, iluminada por um clarão rosa e mortal. Estranho como essa cor ainda parece delicada. As torres próximas à praia projetam suas silhuetas escuras contra ela, erguendo-se improvavelmente da superfície rosa e azul da lagoa. Os gritos dos pássaros aninhados ali e o oceano distante batendo nos sucessivos recifes de pedaços enferrujados de carros, tijolos amontados e entulhos soam quase como o tráfego de um feriado.
Por hábito, ele olha o relógio - caixa de aço inoxidável, pulseira de alumínio, ainda lustroso embora não funciona mais. Ele o usa agora como único talismã. Uma face vazia é o que ele mostra agora: zero hora. Essa ausência de um tempo oficial causa-lhe um arrepio de terror. Ninguém, em lugar nenhum, sabe que horas são.
Margaret Atwood, "Oryx e Crake"
Ou eu ou ela...
— O quê?
— Macunaíma é o nome dela. Um livro de Mário de Andrade que me fascinou na juventude: Nunca ouviu falar? Macunaíma é o herói sem nenhum caráter.
— O autor?
— O personagem. E esta cadela que também é dona de muita personalidade. Feia como você está vendo. Raça passou longe dela. Mas ficou sendo a dona e rainha desta casa. Come na mesa, se duvidar no meu prato, sobe na minha cama à hora que bem entender, arrasou com minhas plantas, roeu meus tapetes persas. Fiquei sendo a melhor freguesa de seu Lauro, ali da Parede. Não há uma semana que não lhe leve um tapete, chame para acolchoar um braço de poltrona. Perdi uma empregada de anos, um jardineiro que tinha sido de minha mãe. Deixei de fazer uma excursão pela Europa.
— Manda embora esse bicho. Dá pra alguém, há tanta gente que gosta de cachorro. A vida é uma só...
— E eu não sei disso? Essa vira-lata não estava há um mês em minha casa quando vi tudo o que ia ser o meu futuro. Soube a que ponto chegariam as minhas agruras com essa cadela de focinho triste. Vai longe com esse focinho.
— E o Luiz não implicou?
— Ameaçou sair de casa no dia em que a viu aqui dentro. Quis mudar para o clube. Cachorro em casa? Era o que faltava! O pior é que era mesmo e eu, burra, não percebi. O homem acabou criando carinho pelo bicho. Achei graça, logo o Luiz que não é dessas coisas. As caras que ela fazia quando ele chegava. Deu de esperar no portão, latindo quando o carro ainda estava longe. De manhã o acompanhava, fazendo festa até desaparecer na esquina, fazendo focinho triste quando o via descer a escada.
— Cheia de truques?
— O truque, minha filha. O próprio. Uma bastarda dessas, quem diria. Se o Luiz me escutasse! O homem deu de chegar em casa mais cedo. Quietarrão como você sabe, ficava lendo o jornal na poltrona, o raio desse bicho, muito quieta, encostada na barriga da perna, seguindo-lhe cada gesto com esses olhos mansos. Às vezes que ficou chorando baixinho na porta do nosso quarto.
— Até que ele abriu.
— Como é que você sabe? Nunca mais dormiu noutro lugar. Só come da mão dele. Jejua se ele fica resfriado. Emburra comigo se tenho a veleidade de discutir com seu amo e senhor. Ficou dois dias sem comer, chorando perto da porta, quando ele foi para o Algarve sem ela. A empregada contou tudo quando ele chegou. E isso a instalou nas profundas do seu coração.
— Aí você começou a implicar?
— Não aguento mais a cara desse bicho. Olha o focinho, o jeito de nem-te-ligo com que me olha, a descarada. Queria que você visse o Luiz entrando pela porta. A gritaria...
— Os latidos?
— Os latidos, seja. Os abraços e beijos. A festa. A lua de mel daqueles dois. Nasceram um para o outro. São almas irmãs, inseparáveis. Passei a acreditar na transmigração das almas, na metempsicose, nessas esquisitices todas. Meu marido está irreconhecível, é outro homem. Vi-lhes as lágrimas correndo pela barba no dia em que foi atropelada. Uns arranhões à toa. E o homem queria tirar revólver, chamar a polícia.
— É... O negócio está grave... Eu, no seu caso, tomava uma resolução.
— Tomei. Ele que decidisse. Eu não aguentava mais esta senhora dentro da minha casa, seus estragos, prejuízos, caprichos. Aquela lamechice toda. Ele que escolhesse, ela ou eu.
— Você tinha todíssima razão. Quando é que ela vai embora?
— Acho que só a morte nos vai separar. Ele escolheu ela. E de desaforo, fiquei.
segunda-feira, julho 28
Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?
Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.
Apelo
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero na salada – o meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia furada. Que fim levou o sacarrolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
Dalton Trevisan
Menino triste
Pensava então naquilo que junto de gente eu não podia pensar. Já estava no engenho há mais de quatro anos. Mudara muito desde que viera de Recife.
– Para o ano – diziam – iria para o colégio.
E o que seria esse colégio? Os meus primos contavam tanta coisa de lá, de um diretor medonho, de bancas, de castigos, de recreios, de exercícios militares, que me deixavam mesmo com vontade de ir com eles. Mas o engenho tinha tudo para mim. Tia Maria tomava conta de mim como se fosse mãe. E a lembrança de minha mãe enchia os meus retiros de cinza. Por que morrera ela? E de meu pai, por que não me davam notícias? Quando perguntava por ele, afirmavam que estava doente no hospital. E o hospital ia ficando assim um lugar donde não se voltava mais. Via gente do engenho que ia para lá, com carta do meu avô, não retornar nunca. E as negras quando falavam do hospital mudavam a voz: 'Foi para o hospital.' Queriam dizer que foi morrer.
Tinha um medo doentio da morte. Aquilo da gente apodrecer debaixo da terra, ser comido pelos tapurus, me parecia incompreensível. Todo o mundo tinha que morrer. As negras diziam que alguns ficavam para semente. Eu me desejava entre estes felizardos. Por que não podia ficar para semente? Dentro de um navio, enquanto o mundo todo se acabasse. E nesse barco eu me via cercado de tudo que era bicho, e a minha tia Maria, a negra Generosa, a vovó Galdina, o meu avô, tudo que me amava estaria comigo. Esta horrível preocupação da morte tomava conta da minha imaginação.
Fiquei um menino medroso. De dia, porém, esperando meus canários, amava a solidão. Era ela que deixava falar o que eu guardava por dentro – as minhas preocupações, os meus medos, os meus sonhos. O mundo de um menino solitário é todo dos seus desejos. Tudo eu queria ter nesses meus retiros: o tesouro da história de Trancoso, o cavalinho de sela, aquela vara mágica das fadas, que viravam em tudo que a gente quisesse. Eu desejava também que a velha Sinhazinha morresse. Então começava a ver a minha inimiga trucidada, com os cavalos desembestados puxando-lhe o corpo pelos espinhos.
Além da amendoeira
Seria em março — as frutinhas do verde já baladas? Pode que em abril: as folhas birutas, com lustro sem murcho, dando ponto às sanguíneas e às amarelinhas de esmalte. Se em maio, aí que, por entre, frequentam e se beliscam um isto de borboletas, quase límpidas, e amadurecem as frutas, cheirando a pêssego e de que os morcegos são ávidos? Talvez em junho, que as drupas caídas machucam-se de ilegíveis roxos. Também julho, quando se colorem ainda mais as folhas, caducas, no enrolar-se, vistosas que nem as dos plátanos de Neuilly ou de San Miníato al Monte, e as amêndoas no chão são tantas? Seja em agosto — despojadas. Ou em setembro, a desfolha espalhando nas calçadas amena saropueira, em que feerem ainda árduos rubros. Sei não, sempre é tempo de amendoeira.
Mas, pois, descíamos a rua nossa vizinha e simpática, eu a considerar na mudável imutabilidade das coisas, o Sung a puxar-me pela trela, quando, eis senão, passávamos rente a uma casa, inusual, tão colocada, suposta para recordar as da outra idade da gente, no Belorizonte. Dita que era uma aparição, conforme se ocultava, às escuras, o que dola se abrindo sendo só uma varanda do arco, perfeita para o escuro, e que se trazia de estórias — a casa na floresta, da feiticeira. Sob cujo efeito, sorte de adivinhamento, refiz-me fiel ao que, por onde ando, muito me aconselho: com um olho na via, o outro na poesia.
De de-dentro, porém, e reta para a varanda, pressentia-se tensa presença. Súbito, com elástico pé-ante-pé, alguém avançara de lá, a furto. Já de noite, às pardas, à primeira não se distinguia: sombra ou resumo de vulto. Se bem que entre luz e fusco o vulto avultasse, permanecendo, para espreita; apenas lobrigável, não visório. Até que por viva alma decifrei-o — ao bruxo de outras artes. Drummond. E só então deve de ter-me reconhecido. Ele morava ali, à beira da amendoeira.
Sabia-o adicto e professo nessa espécie de árvores, seu mestre de fala. Mas, a que se via que havia, entre calçada e varanda e o fementido asfalto, e que era o objeto que ele cocava, não passasse de uma varinha recém-fincada, simples e débil caule, e por isso amparada, necessitando uma estaca de tutela. Drummond de tudo me instruiu, e de como não fora de mero recreio, agora, aquela sua tocaia. E, como eu não pudesse aceitar de entrar, que o Sung discordava, confabulamos mesmo assim, ele no âmbito de seu rincão, semilunar, eu à sombra futura da menos que amendoeira.
Era que, no lugar, falhara uma, sucumbida ao azar ou aos anos, e ele arranjara que plantassem outro pé, no desfocado. Mais de uma vez. Porque vinham os vadios e malignos, a criançada ingrata, e destruíam demais, sendo indispensável acautelá-la contra essa gente de ralo juízo ou de iníqua índole. Para o mister, Drummond já requererá a prestança de um guarda. Por enquanto, porém, velava-a ele mesmo, às horas, dali de seu promontório de Sagres.
Sendo que falávamos, um pouco sempiternamente, unidos pelo propósito de tão estimável circunstância, isto é, da amendoeira-da-índia ou molucana, transplantada do Malásia ou de Sequimeca, quer dizer, árvore aventurada, e, pois, de praia e areia, de marinha e restinga, do Posto 6.
Elas pintam bem, têm outono. Dão-se com frente e perfil. Abrem-se a estórias e hamadríadas. Convêm, sem sombra de dúvida, com as beira-atlânticas cigarras. Despeito das folhas graúdas, compõem-se copas amabilíssimas, de donaire. Prezam-se de folhagem sempre a eldorar-se, em alegria e aquarela. E também ensinam acenos. São de sólita serventia.
Ultra que a amendoeira é a que melhor resiste aos ventos, mesmo os de mais rojo, sob o tiro de qualquer tufão ela sustenta o pairo. Nem se dizendo que seja uma árvore castigada. Sua forma se afez a isso, desde a fibra, e no engalhamento, forçoso flexível, e nos ramos que se entregam com eficaz contravontade. Se ao vendaval, as grandes amendoeiras se entornam, desgrenham, deploradoras, ele roda-as, rodopia-as, contra o céu, baço, baço. Mas há uma técnica nesse renhimento, decerto de aquisição milenar: no que temperam o quanto de sustentação de choque com a cessão esquiva ou o dobrar-se submisso, o volver os eixos para furtar-se ao abalo. E fingem a mímica convulsiva, como quando cada uma se estira, vai, volta, voa; isto, sim: a amendoeira procelária.
Bem, a nossa conversa não se copiando talvez precisamente esta, pode mesmo ser que falássemos de outras coisas; mas o substrato de silêncio, que insiste por detrás de todo palavreado. Só a fim de recordar. Eu com o Sung à tira, conforme ele já se estendera chato no chão, desistente. E Drummond de constantes olhos em seu fiozinho de amendoeira-infante. O amor é passo de contemplação; e é sempre causa.
Afinal, a vigilância da amendoeira se exerce indefinida, e volve-se sem intervalos sua desconfiança. Veja-se como responde, pendulativo, à aragem mais fina, só zéfiro. Toque o primeiro leve e ligeiro sopro, e já as folhas estremecem, apalpando o que haja, o tronco ensaia um balanço preventivo, os ramos a sacudir-se, diversamente, para o equilíbrio: e fazendo face. Nada apanha-os de surpresa. Fio, e me argumentei, que devem de trocar sinais entre si, e manter uma sempre de sentinela, contra o ar e o mar, Drummond concordaria comigo. Ou vice-versa, pois. Era uma célebre noite. E, se esmorecíamos, era pelos inadiáveis deveres do introvertimento.
Mas, de longe, ainda as amendoeiras, que mútuas são, e pertinentes. Isto é, Drummond não ficara sabendo que moro também entre elas, íntimas, de janela; no verão suas sombras comovem-se nas venezianas do quarto, conforme jogam, de manhã. Vejo uma, principalmente, a um tempo muda e loquaz. Ela fez oito anos. Digo: que ele morreu, uma noite fria, de um julho, ali debaixo dela o enterramos, muito, muito. Um gato. Apenas. Chamava-se Tout-Petit, e era só um gato, só um gato, um gato... Além. Ah, as amendoeiras. A de Drummond, amendoeirinha de mama, ainda sem nem sussurros. A minha, a quem, então, às vezes, peço:— Cola, amendoeira…
domingo, julho 27
O menino e o arco-íris
Mais tarde pôde passar para o quintal e descobriu as galinhas e as plantas. Já eram mais interessantes, sobretudo as galinhas, que falavam uma língua incompreensível e bicavam a terra.
Conheceu o peru, a galinha-d´Angola e o pavão. Mas logo se acostumou a todos eles, e continuou entediado como sempre.
Não pensava, não indagava com palavras, mas explorava sem cessar a realidade.
Quando pôde sair à rua, teve novas esperanças: um dia escapou e percorreu o maior espaço possível, ruas, praças, largos onde meninos jogavam futebol, viu igrejas, automóveis e um trator que modificava um terreno. Perdeu-se. Fugiu outra vez para ver o trator trabalhando. Mas eis que o trabalho do trator deu na banalidade: canteiros para flores convencionais, um coreto etc. E o menino cansou-se da rua, voltou para o seu quintal.
O tédio levou o menino aos jogos de azar, aos banhos de mar e às viagens para a outra margem do rio. A margem de lá era igual à de cá. O menino cresceu e, no amor como no cinema, não encontrou o que procurava. Um dia, passando por um córrego, viu que as águas eram coloridas. Desceu pela margem, examinou: eram coloridas!
Desde então, todos os dias dava um jeito de ir ver as cores do córrego. Mas quando alguém lhe disse que o colorido das águas provinha de uma lavanderia próxima, começou a gritar que não, que as águas vinham do arco-íris. Foi recolhido ao manicômio.
E daí?
Ferreira Gullar, "O menino e o arco-íris"
O vitral
- Ora... Temos tantos... - respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.
- Está bem. Você não quer...
(A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)
- Suas tolices, Matilde... Quando é isso?
Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
- Em setembro - dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...
- Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.
Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e a repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.
Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo mais se tornara inexpressivo.
- Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice.
- O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
- Não. Vou assim mesmo.
Abriu a porta, saíram. Flutuavam nas raras nuvens brancas, as folhas das aglaias tinham um brilho seco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.
Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
- Manhã linda! - murmurou. Hoje eu queria ser menina.
- Você é.
A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente.
Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, n~´ao um participante de seu júbilo, mas a causa mesmo de tudo que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido?
Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
- Aproveite - aconselhou ele. Isso passa.
- Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.
As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.
- Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.
Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à rua, abriram um portão, desapareceram.
Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça - pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo".
Sentia que a luz do sol a trespassava, como um vitral.
Osman Lins, "Os cem melhores contos brasileiros do século"
A vazia sandália de S. Francisco
nunca pautaram o curso dos meus dias.
"Fiquem onde estão!",
foi a minha ordem para a macieira e para o gato,
anda bem exteriores ao meu fraco por eles.
Salvei-os (e salvei-me!) de uma fábula
cuja moral necessariamente devia ser eu, o parlante
amigo de macieiras e conhecido de gatos.
Dá um certo desconforto malbaratar assim amigos
em dois reinos da natureza.
Mas também dá liberdade.
Há uma gente que desponta do outro lado do vale.
Está a correr para cá.
São os meus semelhantes.
Com eles vou desentender-me (mais que certo!),
mas a ideia que deles faço
é ainda um laço.
Repousem em paz as macieiras e os gatos.
Carta a uma senhorita em Paris
Você sabe por que vim a sua casa, a sua tranquila sala festejada de sol. Tudo parece tão natural, como sempre, que não se sabe a verdade. Você foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da Calle Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência, até que setembro traga-a de novo a Buenos Aires e me atire a alguma casa onde talvez... Mas não lhe escrevo por isso, envio esta carta por causa dos coelhinhos, parece-me justo informá-la; e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.
Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levavam a parte nenhuma, que a quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das maletas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria instalarme, e subi de elevador. Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não acredite que por deslealdade, mas naturalmente a gente não vai ficar explicando a todos que,de quando em quando, vomita um coelhinho. Como isso sempre me tem sucedido estando só, escondia o fato como se escondem tantos detalhes do que acontece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total. Não me censure. Andrée, não me censure. De quando em quando me acontece vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que a gente tenha de se envergonhar e estar isolado e andar se calando.
Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é rápido e higiênico, transcorre em um brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco e inteiramente um coelhinho. Ponho-o na palma da mão, levanto sua penugem com uma carícia dos dedos, o coelhinho parece satisfeito de haver nascido e bole e esfrega o focinho na minha pele, mexendo-o com essa trituração silenciosa e cosquenta do focinho de um coelhinho contra a pele de uma mão. Procura comer, e então eu (falo de quando isto ocorria em minha casa de campo) o levo comigo à varanda e o ponho no grande vaso onde cresce o trevo que plantei com esse fim. O coelhinho levanta suas orelhas, envolve o trevo novo com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir embora, continuar por algum tempo uma vida não diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas.
Entre o primeiro e o segundo andar. Andrée, como um aviso do que seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era surpresa? Não, medo da mesma surpresa, talvez), porque antes de deixar minha casa, só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e estava livre por um mês, por cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido inteiramente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na varanda de minha outra casa, vomitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de um mês, quando suspeitava que de um momento para outro... então dava o coelho já crescido à sra. de Molina, que pensava ser um hobby meu e se calava. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo novo e apropriado, eu esperava sem preocupação a manhã em que a cosquinha de uma penugem subindo fechava-me a garganta, e o novo coelhinho repetia desde aquela hora a vida e os costumes do anterior. Os costumes. Andrée, são formas concretas do ritmo, são a cota do ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão terrível vomitar coelhinhos uma vez que isso havia entrado no ciclo invariável, no método. Você quererá saber por que todo esse trabalho, por que todo esse trevo e a sra. de Molina. Teria sido preferível matar em seguida o coelhinho e... Ah, você teria de vomitar tão somente um, pegá-lo com dois dedos e colocá-lo na mão aberta, ainda aderido a você pelo ato mesmo, pela aura inefável de sua proximidade apenas rompida, Um mês distancia tanto; um mês é tanto, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, um mês é um coelho, faz de verdade um coelho; mas o minuto inicial, quando a mecha morna e bulidora encobre uma presença imutável... Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão da gente que a gente mesmo... depois tão não a gente, tão isolado e distante em seu raso mundo branco tamanho mapa.
Decidi, contudo, matar o coelhinho mal nascesse. Eu viveria quatro meses em sua casa: quatro — talvez, com sorte, três — colheradas de álcool no focinho, (Você sabe que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne então sabe melhor, dizem, embora eu... Três ou quatro colheradas de álcool, logo o banheiro ou um pacote somando-se ao lixo,).
Ao passar o terceiro andar o coelhinho se mexia em minha mão aberta. Sara esperava em cima, para ajudar-me a entrar com as malas... Como explicar-lhe que um capricho, uma lojinha de animais? Envolvi o coelhinho em meu lenço, coloquei-o no bolsinho do sobretudo, deixando o sobretudo solto para não espremê-lo. Mal se mexia. Sua miúda consciência devia estar revelando fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um click final, e que é também um céu baixo, branco, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno.
Sara não viu nada, fascinava-a muito o duro problema de ajustar seu sentido de ordem a minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência diante de suas demoradas explicações, onde abunda a expressão "por exemplo". Tão logo pude, me fechei no banheiro; matá-lo agora, Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era branquíssimo e acho que mais lindo do que os outros. Não me olhava, somente bulia e estava contente, o que era o mais horrível modo de me olhar. Encerrei-o no pequeno armário vazio e me voltei para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, não culpado, não ensaboando as mãos para tirar delas uma última convulsão.
Compreendi que não podia matá-lo. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho negro. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.
Você deve gostar do belo armário do seu quarto, com a grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera da minha roupa. Agora guardo os ali. Ali dentro. Verdade que parece impossível; nem Sara acreditaria. Porque Sara não desconfia de nada, e não desconfia de nada por causa da minha horrível tarefa, uma tarefa que consome meus dias e minhas noites num só golpe de gatilho e vai me queimando por dentro e endurecendo como aquela estrela-do-mar que você pôs sobre a banheira e que a cada banho parece encher o corpo da gente de sal e açoites de sol e grandes rumores de profundidade.
De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a porta fechada, o armário é uma noite diurna somente para eles, lá dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao sair para o trabalho. Sara deve pensar que ponho em dúvida sua honradez e olha-me desconfiada, noto todas as manhãs que está para me dizer algo, mas por fim se cala, e eu fico tão contente... (Quando arruma o quarto, das nove às dez, faço ruído na sala, ponho um disco de Benny Carter que toma todo o ambiente, e como Sara é também amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e talvez esteja, porque para os coelhinhos agora é noite e hora de descanso.).
Seu dia principia nessa hora que vem depois da janta, quando Sara leva a bandeja com um miúdo tilintar de pinças de açúcar, deseja-me boa-noite — sim, deseja. Andrée, o mais triste é que me deseja boa-noite — e fecha-se em seu quarto e imediatamente estou só, só com o armário condenado, só com meu dever e minha tristeza.
Deixo-os sair, lançarem-se ágeis pela sala, cheirando vivamente o trevo que meus bolsos ocultavam e agora fazem no tapete efêmeras rendas que eles alteram, removem, consomem num instante. Comem bem, calados e corretos, até aquele instante nada tenho a dizer, somente os olho do sofá, com um livro inútil na mão — eu que queria ler todos os seus Giraudoux. Andrée, e a história argentina de Lopez que você tem na prateleira mais baixa —; e comem o trevo.
São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as lâmpadas da sala, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pulam pelo tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas movimentam-se como uma constelação móvel, de um lado para outro, embora eu quisesse vê-los quietos, vê-los a meus pés e quietos — um pouco o sonho de todo deus. Andrée, o sonho jamais cumprido dos deuses —, não assim, insinuando-se atrás do retrato de Miguel de Unamuno, em torno do grande jarro verde-claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de Lopez.
Não sei como resisto. Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não é culpa minha se de quando em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro — não é nominalismo, não é magia, apenas que as coisas não podem mudar assim de pronto, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando você esperava a bofetada direita... Assim. Andrée, ou de outro modo, mas sempre assim.
Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas escrevo-lhe na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror. Andrée! Agora me chamam ao telefone, são os amigos que se inquietam com minhas noites recolhidas, é Luis que me convida a caminhar ou Jorge que reservou entrada para um concerto. Quase não me atrevo a dizer-lhes que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de má saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E quando volto e subo de elevador — aquela passagem, entre o primeiro e o segundo andar — renovo noite a noite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.
Faço o que posso para que não destrocem suas coisas. Roeram um pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará escondidos para que Sara não note. Você gostava muito de seu lampião com o ventre de porcelana cheio de mariposas e cavaleiros antigos? O trincado mal se percebe, trabalhei toda a noite com um cimento especial que me venderam em uma casa inglesa — você sabe que as casas inglesas têm os melhores cimentos — e agora fico ao lado dele para que nenhum o alcance outra vez com as patas (é quase belo ver como gostam de se pôr em pé, lembrança do humano distante, talvez imitação de seu deus deambulando e os olhando carrancudo; além disso você terá percebido — em sua infância, talvez — que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, de pé, as patinhas apoiadas e muito quieto horas e horas).
Às cinco da manhã (dormi um pouco, estirado no sofá verde e despertando a cada corrida aveludada, a cada tilintar) coloco-os no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo em ordem, embora às vezes eu tenha notado nela algum assombro contido, um ficar olhando um objeto, uma leve descoloração do tapete, e de novo o desejo de perguntar-me algo, mas eu assobiando as variações sinfônicas de Franck, de maneira que nada. Para que contar-lhe. Andrée, as minúcias desventuradas desse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho entredormido levantando cabos de trevo, folhas soltas, pêlos brancos, aos encontrões nos móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa. Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que já estará se perguntando se... para que continuar tudo isto, para que continuar esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas.
Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não virão mais. Faz 15 dias segurei na palma da mão um último coelhinho, depois nada, somente os dez comigo, sua diurna noite e crescendo, agora feios e nascendo- lhes o pêlo comprido, agora adolescentes e cheios de necessidades e caprichos, saltando sobre o busto de Antínoo¹ (é Antínoo, verdade, aquele rapaz que olha cegamente?) ou se perdendo no living onde seus movimentos criam ruídos ressonantes, tanto que dali devo tirá-los, com medo de que Sara os ouça e apareça horripilada, talvez em camisola — porque Sara deve ser assim, de camisola —, e então... Somente dez, pense você nessa pequena alegria que tenho, afinal de contas, na crescente calma com que dou volta aos duros céus do primeiro e do segundo andar.
Interrompi esta carta porque devia participar de um trabalho de comissões. Continuo-a aqui em sua casa. Andrée, sob um mudo e grisalho amanhecer, É de fato o dia seguinte. Andrée? Um pedaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une meu escrito de ontem ao meu escrito de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo terminou, onde você vê a ponte aberta ouço eu quebrar-se a cintura furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado da minha carta não continua a calma com que eu vinha escrevendo, quando a deixei para participar de um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem 11 coelhinhos; talvez agora mesmo, mas não, não agora — no elevador, logo, ou ao entrar; já não importa onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.
Agora chega, escrevi isto porque me interessa provar-lhe que não fui tão culpado na destruição irrecuperável de sua casa. Deixarei esta carta esperando-a, seria sórdido que o correio a entregasse em alguma clara manhã de Paris, À noite passada repus os livros da segunda estante; já os alcançavam, pondo-se de pé ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes — não por fome, têm todo o trevo que lhes compro e armazeno nas gavetas da escrivaninha. Rasgaram as cortinas, os forros das cadeiras, a moldura do autoretrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram dando voltas sob o lampião, em círculo e como me adorando, e logo gritavam, gritavam como eu não acredito que gritem os coelhos.
Quis em vão tirar os pelos que estragam o tapete, arranjar a moldura da tela roída, fechá-los de novo no armário. O dia chega, talvez Sara se levante agora. É quase estranho que Sara não me importe. E quase estranho que não me importe vê-los correr em busca de brinquedos. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem reparados com o cimento que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para evitar-lhe um desgosto... Quanto a mim, do dez ao 11 há como um vazio insuperável. Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Mas não com 11, porque dizer 11 é certamente dizer 12. Andrée, 12 que será 13. Então está o amanhecer e uma fria solidão na qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez tantos outros. Está esta sacada sobre Suipacha cheia de aurora, os primeiros sons da cidade. Não acho que seja difícil juntar 11 coelhinhos salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem os notem, atarefados com o outro corpo que convém levar logo, antes que passem os primeiros colegiais.
Julio Cortázar, "Bestiário"
sábado, julho 26
Modinha do empregado de banco
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.
Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos pra não fazerem nada com eles.
Também se o Diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.
A cidade
Eclesiastes, X, 15
Destinava-se a uma cidade maior, mas o trem permaneceu indefinidamente na antepenúltima estação.
Cariba acreditou que a demora poderia ser atribuída a algum comboio de carga descarrilado na linha, acidente comum naquele trecho da ferrovia. Como se fizesse excessivo o atraso e ninguém o procurasse para lhe explicar o que estava ocorrendo, pensou numa provável desconsideração à sua pessoa, em virtude de ser o único passageiro do trem.
Chamou o funcionário que examinara as passagens e quis saber se constituía motivo para tanta negligência o fato de ir vazia a composição.
Não recebeu uma resposta direta do empregado da estrada, que se limitou a apontar o morro, onde se dispunham, sem simetria, dezenas de casinhas brancas.
— Belas mulheres? — indagou o viajante.
— Casas vazias.
Percebeu logo que tinha pela frente um cretino. Apanhou as malas e se dispôs a subir as íngremes ladeiras que o conduziriam ao povoado.
A escalada foi lenta e cansativa. O suor escorria pela sua testa, enquanto seus olhos se sentiam cada vez mais atraídos pela leveza das pequeninas edificações.
Uma vaga tristeza rodeava o lugarejo. As janelas e portas das casas estavam fechadas, mas os jardins pareciam ter sido regados na véspera. Experimentou bater em alguns dos chalés e não o atenderam. Caminhou um pouco mais e, do topo da montanha, avistou a cidade, tão grande quanto a que buscava. Vinte mil habitantes, soube depois.
Desceu vagarosamente. Os homens (e por que não as belas mulheres?) deveriam encontrar-se lá embaixo.
Várias vezes voltou a cabeça, procurando fixar bem a paisagem que deixava para trás. Tinha o pressentimento de que não regressaria por aquele caminho.
Durante todo o percurso, desde as vias secundárias à avenida principal, os moradores do lugar observaram Cariba com desconfiança. Talvez estranhassem as valises de couro de camelo que carregava ou o seu paletó xadrez, as calças de veludo azul. Mesmo sendo o seu traje usual nas constantes viagens que fazia, achou prudente desfazer qualquer mal-entendido provocado pela sua presença entre eles:
— Que cidade é esta? — perguntou, esforçando-se para dar às palavras o máximo de cordialidade.
Nem chegou a indagar pelas mulheres, conforme pretendia. Pegaram-no com violência pelos braços e o foram levando, aos trancos, para a delegacia de polícia:
— É o homem procurado — disseram ao delegado, um sargento espadaúdo e rude.
— Já temos vadios de sobra nesta localidade. O que veio fazer aqui? — perguntou o policial.
— Nada.
— Então é você mesmo. Como é possível uma pessoa ir a uma cidade desconhecida sem nenhum objetivo? A menos que seja um turista.
— Não sou turista e quero saber onde estou.
— Isso não lhe podemos revelar agora. Poderia prejudicar as investigações.
— E por que as casas do morro estavam fechadas? — atalhou o desconhecido, agastado com a falta de polidez com que o tratavam.
— Se não tomássemos essa precaução você não desceria.
Cariba compreendeu tardiamente que a sedução das casinhas brancas fora um ardil para atraí-lo ao vale.
— As testemunhas! — gritou o delegado.
Introduziram na sala um homem de rosto chupado, os cabelos grisalhos. Fez uma reverência diante da autoridade e encarou o preso com visível repugnância:
— Não tenho medo de sua cara.
— A sua coragem pouco nos importa — aparteou, áspero, o sargento. — Cinja-se ao que for interrogado e responda logo se conhece este sujeito.
— Não. Nunca o vi antes, mas tenho a impressão de que foi ele quem me abordou na rua. Pediu-me informações sobre os nossos costumes e desapareceu.
O militar se impacientou:
— Venham os outros idiotas!
Um de cada vez, vários homens depuseram e não esclareceram muita coisa. A uns, o estranho fizera indagações de pouca importância: "Esta cidade é nova ou velha?" — a outros, dirigira perguntas inconvenientes: "Quem são os donos do município?".
Muitos viram-no de perto, sem que o suspeito lhes dissesse sequer uma palavra. Só num ponto estavam de acordo, tanto os que lhe ouviram a voz ou lhe divisaram apenas o semblante: não sabiam descrever seu aspecto físico, se era alto ou baixo, qual a sua cor e em que língua lhes falara.
Já saíra a última testemunha, quando o delegado, exultante, deu um murro na mesa:
— Tragam a Viegas, ela sabe!
Duas horas se passaram até que chegasse a mulher. Entrou desembaraçada, os lábios ligeiramente pintados, as sobrancelhas pinçadas e um sorriso que deixou Cariba enamorado.
Rendido ao encanto da prostituta que, por seu lado, trazia os olhos fixos nos dele, o forasteiro não ouvia o que ela falava. Aos poucos, reencontrou-se com a realidade e começou a prestar atenção ao depoimento:
— Quis fugir, porém ele me agarrou pelos pulsos e perguntou: "Como vai seu pai? Ainda mora com as tias velhas?". — Não obtendo resposta, indagou pelos meus filhos. O senhor bem sabe que sou solteira e papai, quando morreu, morava sozinho. Por isso, antes que terminasse de falar, já suspeitava dele e me apressei em libertar-me dos seus braços. Não consegui. Segurou-me com mais força e, obrigando-me a encostar o ouvido nos seus lábios, dizia: "É preciso conspirar". — Na expectativa de convencê-lo a ir embora, mostrei-lhe o perigo a que se expunha enfrentando uma polícia tão rigorosa quanto a nossa. Sem demonstrar temor, respondeu-me: "Não é necessária a polícia".
Cariba sentiu uma grande inveja de quem abraçara a mulher. Que corpo tivera nas mãos!
O policial, porém, não se contentou com o que ouvira:
— E reconhece este homem como sendo o que a abraçou na rua?
— Não me lembro do seu rosto, mas um e outro são a mesma pessoa.
O delegado ficou satisfeito. Virou-se para o indiciado e lhe afirmou que, mesmo tendo elementos para ultimar o inquérito, ouviria novamente as testemunhas na sua presença, o que de fato fez com a habitual grosseria:
— Então vocês viram o cara e não sabem descrevê-lo, seus idiotas!
À exceção da Viegas, permaneceram todos em silêncio. Ela, fixando os olhos maliciosos no desconhecido, confirmou:
— Sim, é ele.
Animados, os outros também falaram, repetindo o que disseram antes: não reconheciam o prisioneiro, mas deveria ser o mesmo indivíduo que lhes perguntara coisas tão estranhas.
O sargento chegara a uma conclusão, entretanto divagava:
— O telegrama da Chefia de Polícia não esclarece nada sobre a nacionalidade do delinquente, sua aparência, idade e quais os crimes que cometeu. Diz tratar-se de elemento altamente perigoso, identificável pelo mau hábito de fazer perguntas e que estaria hoje neste lugar.
Cariba, já incomodado com a perspectiva de ficar detido até que se desfizesse o equívoco, ponderou:
— Nada disso faz sentido. Não podem me prender com base no que acabo de ouvir. Cheguei aqui há poucas horas e as testemunhas afirmam que me viram, pela primeira vez, na semana passada!
O delegado impediu que prosseguisse:
— O comunicado do setor de segurança é claro e diz textualmente: "O homem chegará dia 15, isto é, hoje, e pode ser reconhecido pela sua exagerada curiosidade".
O policial encerrou os interrogatórios, declarando que os depoimentos ali prestados eram suficientes para incriminar o acusado, porém, não desejava precipitar-se. Aguardaria o aparecimento de alguém que reunisse contra si indícios de maior culpabilidade e eximisse Cariba das acusações que lhe pesavam.
— Quer dizer que permanecerei preso esse tempo todo?
A resposta do delegado desanimou-o: ficaria encarcerado até a captura do verdadeiro criminoso.
E se o culpado não existisse?
Cinco meses após a sua detenção, ele não mais espera sair da cadeia. Das suas grades, observa os homens que passam na rua. Mal o encaram, amedrontados, apressam o passo.
Pressente, às vezes, que irão perguntar qualquer coisa aos companheiros e fica à espreita, ansioso que isso aconteça. Logo se desengana. Abrem a boca, arrependem-se, e se afastam rapidamente.
Só resta esperar pela Viegas, que, sensual e perfumada, vem vê-lo ao fim da tarde. Sorri, e diz com uma invariabilidade que o enternece:
— É você.
Quando ela se despede — o corpo tenso, o suor porejando na testa — Cariba sente o imenso poder daquela prisão.
Caminha, dentro da noite, de um lado para outro. E, ao avistar o guarda, cumprindo sua ronda noturna, a examinar se as celas estão em ordem, corre para as grades internas, impelido por uma débil esperança:
— Alguém fez hoje alguma pergunta?
— Não. Ainda é você a única pessoa que faz perguntas nesta cidade.
Murilo Rubião, "O pirotécnico Zacarias"