Um pouco antes do entardecer, uma véspera de Natal, Gabriel colocou sua pá ao ombro, acendeu sua lamparina e se pôs a caminho do velho cemitério, pois tinha uma cova para terminar até a manhã seguinte e, sentindo-se muito tristonho, pensou que aquilo talvez pudesse animá-lo se pegasse logo de uma vez no trabalho. À medida que seguia em seu caminho, pegando a rua antiga, ele enxergava a luz alegre e cintilante das lareiras brilhando por trás das velhas vidraças e ouvia as gargalhadas e os gritos entusiasmados daqueles que se reuniam ao redor do fogo; notava o alvoroço dos preparativos para os festejos do dia seguinte e sentia os diferentes e deliciosos aromas, que escapavam fumegantes pelas janelas das cozinhas, em nuvens. Tudo isso chegava ao coração de Gabriel Grub como corrosivo fel; e, quando bandos de crianças, saindo de suas casas, disparavam porta afora, cruzavam a rua e, antes que pudessem bater na porta da casa em frente, já eram recebidas e rodeadas por meia dúzia de pestinhas exultantes, de cabelos cacheadinhos, enquanto subiam todos juntos até o segundo andar para passar a noite em brincadeiras de Natal, Gabriel sorria de modo sinistro e apertava com mais força ainda o cabo de sua pá, enquanto ia pensando em sarampo, escarlatina, sapinho, coqueluche e outras fontes muito boas de consolo além dessas.
Nessa alegre disposição de espírito, Gabriel seguia a passos largos, respondendo com um resmungo breve e emburrado aos cumprimentos bem- humorados daqueles vizinhos que de vez em quando passavam por ele, até que dobrou uma esquina e entrou na ruela escura que levava ao cemitério. Ora, Gabriel estivera na expectativa de chegar à ruela escura porque ela era, de um modo geral, um lugar agradável, sombrio, fúnebre, onde as gentes da cidade não faziam questão de ir, exceto em plena luz do dia, e isso num dia ensolarado; resulta daí que ele ficou tremendamente indignado ao ouvir um rapazola qualquer cantando em altos brados uma festiva canção sobre um Natal feliz, ali naquele santuário que fora batizado de rua dos Esquifes desde os tempos da velha abadia, desde os dias dos monges de cabeça raspada. À medida que Gabriel seguia em frente e a voz chegava cada vez mais perto, ele descobriu que vinha de um menininho que estava só e se apressava para juntar-se a uma das festinhas da rua antiga e que, um pouco para fazer companhia a si mesmo e um pouco para se preparar para a ocasião, berrava a canção com toda a força de seus pulmões. Então, Gabriel esperou até que o menininho aparecesse e levou-o para um canto e bateu na cabeça dele com a lamparina umas cinco ou seis vezes, para ensiná-lo a modular sua voz. Enquanto o menino fugia correndo, com a mão na cabeça, entoando música bem diferente, Gabriel Grub dava gostosas risadas para si mesmo e entrava no cemitério, fechando o portão atrás de si.
Tirou o casaco, largou a lamparina e, entrando na cova inacabada, trabalhou nela por mais ou menos uma hora, com toda a boa vontade. Mas a terra estava endurecida pela geada, e não era tarefa fácil quebrá-la em pedaços e atirá-la para fora do buraco com a pá; e, embora houvesse uma lua no céu, era o começo da lua crescente, e ela pouco iluminava a cova, que estava na sombra da igreja. Em qualquer outro momento, esses obstáculos teriam deixado Gabriel Grub muito irritado e infeliz, mas ele estava tão contente por ter interrompido a cantoria do menininho que não deu muita atenção ao escasso progresso que tinha feito e olhou para dentro da cova, quando deu por terminado o trabalho por aquela noite, com cruel satisfação, murmurando enquanto recolhia suas coisas:
Admirável acomodação para um e nada mais
Terra fria em cima de uma vida acabada
Pedra tumular – na cabeça, inscrição lapidar
Refeição rica e suculenta os vermes vão cear
Grama verde para a caveira, e o resto é lama
Em solo sagrado, acomodação para um é bacana
– Rá, rá! Rá, rá! – riu-se Gabriel Grub, quando se sentou numa pedra tumular que era um dos seus locais preferidos de descanso e pegou sua garrafa forrada de palhinha. – Um esquife no Natal! Uma caixa das grandes de presente de Natal. Rá, rá, rá!
– Rá, rá, rá! – repetiu uma voz que soou próxima, atrás dele.
Gabriel parou, com certo alarme, no ato de erguer a garrafa forrada de palhinha aos lábios, e olhou em volta. O fundo da sepultura mais antiga que havia ali não estava mais silencioso e parado que o cemitério da igreja à luz pálida do luar. A geada reluzia nas lápides e cintilava como fileiras de pedras preciosas no meio dos entalhes de pedra da velha igreja. A neve jazia dura e quebradiça no solo e esparramava-se por cima dos muitos montículos de terra a toda volta; era uma cobertura tão branca e tão lisa que parecia que cadáveres jaziam ali, escondidos apenas por lençóis retorcidos. Nem um mínimo farfalhar quebrava a profunda tranquilidade da cena solene. O próprio som parecia estar congelado, por estar tudo tão gelado e imóvel.
– Foi o eco – disse Gabriel Grub, levando a garrafa aos lábios uma vez mais.
– Não foi não – disse uma voz profunda.
Gabriel deu um pulo e ficou enraizado àquele ponto onde estava, tomado de susto e de terror, pois seu olhar pousou em uma forma que fez seu sangue gelar.
Sentada em uma lápide vertical, próxima a ele, estava uma figura estranha e espectral que, Gabriel logo sentiu, não era um ser deste mundo. Suas pernas fantasticamente compridas, que poderiam estar tocando o solo, estavam encolhidas e cruzadas de um jeito bizarro, fantástico; seus braços fortes estavam nus; e suas mãos estavam apoiadas nos joelhos. Sobre o corpo curto e redondo, ele usava uma roupa pesada e enfeitada com pespontos; uma capa curta pendia, balançando, de suas costas; a gola era cortada em curiosas pontas e, no duende, fazia as vezes de uma gola pregueada ou de um lenço de pescoço; e seus sapatos bicudos tinham as longas, enormes pontas enroladas para cima. Na cabeça, usava um chapéu de aba larga, em forma de cone, enfeitado com uma única pena. O chapéu estava branco de geada, e o duende parecia estar sentado muito confortavelmente naquela mesma lápide fazia uns duzentos ou trezentos anos. Estava sentado perfeitamente imóvel; estava pondo a língua para fora, como que por escárnio; e estava mostrando os dentes para Gabriel Grub num sorriso que só mesmo um duende poderia esboçar.
– Não foi o eco – disse o duende.
Gabriel Grub estava paralisado e não pôde responder àquilo.
– O que você está fazendo aqui na véspera de Natal? – perguntou o duende, em tom áspero.
– Vim cavar uma sepultura, senhor – gaguejou Gabriel Grub.
– Que homem perambula entre sepulturas e cemitérios numa noite como esta? – berrou o duende.
– Gabriel Grub! Gabriel Grub! – gritou um coro selvagem que parecia encher o cemitério.
Gabriel olhou em volta, amedrontado: não havia nada à vista.
– O que você tem nessa garrafa? – perguntou o duende.
– Gim holandês, senhor – respondeu o coveiro, tremendo mais do que nunca; pois ele tinha comprado o gim dos contrabandistas e achou que talvez o seu inquisidor pudesse ser um cobrador de impostos dos duendes.
– Quem bebe gim holandês sozinho, e num cemitério, numa noite como esta? – disse o duende.
– Gabriel Grub! Gabriel Grub! – exclamaram as vozes selvagens, mais uma vez.
O duende fitou com maldade o coveiro aterrorizado e, erguendo a voz, exclamou:
– E quem é, então, nosso prêmio justo e legítimo?
A essa pergunta, o coro invisível respondeu com uma melodia que soou como as vozes de muitos coralistas acompanhando o som poderoso do órgão da velha igreja – uma melodia que parecia chegar aos ouvidos do coveiro trazida por um vento selvagem e ia morrendo conforme passava; mas o peso da resposta era sempre o mesmo: “Gabriel Grub! Gabriel Grub!”.
O duende abriu um sorriso ainda maior que antes quando disse:
– Bem, Gabriel, o que você diz diante disso? O coveiro tentou recuperar o fôlego.
– O que você acha disso, Gabriel? – perguntou o duende, chutando os pés para cima, um de cada lado da lápide, e olhando para as pontas enroladas de seus sapatos com muita satisfação, como se estivesse contemplando o par de sapatos Wellington mais chique de toda a Bond Street.
– É… é… muito curioso, senhor – respondeu o coveiro, quase morto de susto. – Muito curioso e muito bonito, mas eu acho que vou voltar e terminar o meu trabalho, se o senhor me der licença.
– Trabalho! – disse o duende. – Que trabalho?
– A cova, senhor, fazer a cova – gaguejou o coveiro.
– Ah, fazer a cova, hein? – disse o duende. – Quem é que cava sepulturas numa época em que todos os outros homens estão festejando e sente prazer nisso?
Novamente, as vozes misteriosas responderam: “Gabriel Grub!
Gabriel Grub!”.
– Receio que os meus amigos queiram você, Gabriel – falou o duende, empurrando a língua contra a bochecha o mais que podia. E que língua assombrosa! – Receio que os meus amigos queiram você, Gabriel – repetiu.
– Por favor, senhor – respondeu o coveiro, dominado pelo pavor –, eu acho que eles não têm por que me querer. Eles nem me conhecem, senhor. Acho que os cavalheiros nunca me viram, senhor.
– Ah, mas eles viram, sim – respondeu o duende. – Nós conhecemos o homem rabugento e de rosto carrancudo que veio pela rua esta noite, olhando com crueldade as crianças e agarrando mais e mais forte a sua pá de cavar sepulturas. Nós conhecemos o homem que bateu no menino com a maldade invejosa de seu coração, só porque o menino sabia ser feliz, e ele não. Nós o conhecemos! Nós o conhecemos!
Nesse ponto, o duende, rindo muito alto, soltou uma gargalhada esganiçada, e o eco devolveu-a vinte vezes mais alta e esganiçada. Jogando as pernas para o ar, plantou bananeira, ou melhor, apoiou o peso do corpo na ponta do seu chapéu em cone, na beirada estreita da lápide; nisso, ele deu um salto mortal com extraordinária agilidade, indo parar exatamente aos pés do coveiro, onde plantou-se numa pose em que os alfaiates costumam sentar-se para costurar.
– Eu… eu acho que preciso ir agora – disse o coveiro, fazendo um enorme esforço para se mover.
– Precisa ir! – disse o duende. – Gabriel Grub precisa ir! Rá, rá, rá! Enquanto o duende ria, o coveiro notou, por um instante, uma iluminação brilhante dentro das janelas da igreja, como se todo o prédio estivesse iluminado; desapareceu; o órgão ressoou com uma melodia alegre e tropas inteiras de duendes, em exato contraponto ao primeiro duende, derramaram-se pelo cemitério e começaram a brincar de pular carneirinho com as lápides; faziam isso sem parar para tomar fôlego; pulavam sobre a lápide mais alta de todas, um após o outro, com surpreendente destreza. O primeiro duende era um pulador incrível, e nenhum dos outros conseguia chegar nem perto do que ele fazia; mesmo no máximo de seu sentimento de terror, o coveiro não pôde deixar de observar que, enquanto os amigos do primeiro duende satisfaziam-se em saltar sobre as lápides de tamanho comum, o primeiro pulava por cima dos jazigos de famílias, por cima das balaustradas de ferro e por cima de tudo o mais, com tanta facilidade como se todos aqueles obstáculos fossem placas de rua.
Por fim, o jogo atingiu o seu ápice; o órgão tocava cada vez mais rápido, e os duendes pulavam com velocidade cada vez maior; encolhendo- se, rolando em cambalhotas no chão e ricocheteando sobre as lápides como se fossem bolas de futebol. O cérebro do coveiro girava com a mesma rapidez dos movimentos que ele contemplava, e suas pernas cederam quando os espíritos voaram diante de seus olhos; quando o rei dos duendes de repente veio a toda em sua direção, pousou a mão em sua gola e afundou com ele terra adentro.
Quando Gabriel Grub teve tempo de retomar o fôlego que a velocidade da descida havia roubado dele por um momento, viu que estava dentro do que parecia ser uma enorme caverna, rodeado de todos os lados por multidões de duendes, feios e sinistros; no centro do salão, em um trono mais elevado, ali estava o seu amigo do cemitério da igreja; e bem pertinho, ao lado dele, ali estava Gabriel Grub, o próprio, incapaz de se mexer.
– Noite fria – disse o rei dos duendes –, muito fria. Um copo de bebida quente, aqui!
Ao comando dele, meia dúzia de zelosos duendes com um eterno sorriso na cara, que Gabriel Grub imaginou fossem cortesãos, justo por aquela razão, desapareceram muito apressadamente e logo retornaram com uma taça de fogo líquido, que entregaram ao rei.
– Ah! – gritou o duende, cujas faces e garganta eram transparentes, enquanto engolia de um trago a chama. – Isto esquenta qualquer um, de verdade! Tragam um cálice cheio até a borda desta mesma bebida para o sr. Grub.
Em vão o infeliz coveiro protestou, argumentando que não tinha o hábito de tomar bebidas quentes à noite; um dos duendes segurou-o, enquanto outro derramava o líquido em chamas em sua goela; toda a assembleia de duendes guinchava de tanto rir enquanto ele tossia e se afogava e enxugava as lágrimas que jorravam de seus olhos após ter engolido a bebida que lhe desceu queimando a garganta.
– E agora – disse o rei, cutucando de forma fantástica, com a ponta aguda de seu chapéu em forma de cone, o olho do coveiro, ocasionando-lhe a mais perfeita de todas as dores –, e agora mostrem ao homem do sofrimento e da tristeza alguns dos quadros do nosso enorme depósito.
Assim que o duende disse isso, uma nuvem espessa, que obscurecia até o mais remoto canto da caverna, foi gradualmente se abrindo, dissipando-se, para revelar, aparentemente a uma grande distância, um apartamento pequeno e com pouquíssimos móveis, mas limpo e arrumado. Uma porção de crianças pequenas agrupava-se perto do fogo brilhante da lareira e agarrava-se ao vestido da mãe e brincava ao redor da cadeira onde estava sentada. A mãe vez que outra levantava-se e afastava a cortina da janela, como se tentasse enxergar algum objeto esperado; uma refeição frugal estava pronta e servida à mesa; e uma cadeira de braço estava posicionada perto do fogo. Alguém bateu à porta; a mãe abriu, e as crianças agruparam-se ao redor dela e bateram palminhas de alegria quando o pai entrou. Ele estava molhado e exausto e sacudiu a neve de seus trajes enquanto as crianças agrupavam-se ao redor dele e, recebendo o seu capote, o chapéu, a bengala e as luvas, correram, com cuidado e alvoroço, para fora da sala, carregando aquilo tudo. Então, quando ele se sentou para sua refeição diante da lareira, as crianças subiram no seu colo, e a mãe sentou-se ao seu lado, e tudo parecia ser felicidade e conforto.
Mas uma transformação ocorreu naquele quadro, de modo quase imperceptível. A cena foi alterada para um pequeno quarto de dormir, onde a criança mais novinha e mais bonitinha estava na cama, morrendo; o rosado de suas bochechas havia sumido, e também havia sumido a luz de seus olhos. E, bem quando o coveiro olhou para o menininho com um interesse que jamais sentira ou conhecera antes, ele morreu. Os irmãozinhos e irmãzinhas agruparam-se ao redor da caminha e pegaram sua mão, tão pequeninha, tão gelada e tão pesada; e, àquele toque, eles recuaram e olharam com temor o rosto do bebê; mesmo que ele estivesse calmo e tranquilo, e dormindo em paz no seu repouso – como parecia estar aquela linda criança –, eles entenderam que ele estava morto e sabiam que ele agora era um anjo olhando de lá de cima para eles aqui embaixo e abençoando-os de onde ele estava: num céu brilhante e feliz.
Uma vez mais a nuvem etérea atravessou o quadro, e uma vez mais o cenário mudou. O pai e a mãe estavam envelhecidos e sem o vigor de antes, e o número dos que lhes rodeavam havia diminuído em mais da metade; mas a satisfação e a animação transpareciam em cada rosto e iluminavam cada olhar quando agrupavam-se à volta da lareira e contavam e escutavam velhas histórias de outros tempos, de tempos que já não voltam mais. Vagarosa e pacificamente, o pai afundou para dentro de sua sepultura e, logo em seguida, aquela que partilhou de todos os seus desvelos e problemas seguiu-o até seu local de descanso. Os poucos que ainda sobreviviam àqueles dois ajoelharam-se ao lado de onde estavam enterrados e com lágrimas aguaram a grama que cobria o local; depois, ergueram-se e foram embora com tristeza, enlutados, mas sem gritos amargos, sem lamentações desesperadas, pois sabiam que um dia iriam ao encontro deles; e, uma vez mais, misturaram-se ao mundo de pessoas atarefadas e sua satisfação e sua animação foram restauradas. A nuvem estabilizou-se sobre o quadro e escondeu-o da visão do coveiro.
– O que você pensa disso? – perguntou o duende, virando o seu enorme rosto para Gabriel Grub.
Gabriel murmurou algo sobre aquilo ser muito bonito e pareceu ficar um pouco envergonhado, enquanto o duende jogava seu olhar causticante sobre ele.
– Você, um homem sofrido! – disse o duende, num tom de voz que traduzia excessivo desprezo. – Você!
Ele parecia disposto a acrescentar mais alguma coisa, mas a indignação sufocava a sua fala, de modo que ele ergueu uma de suas pernas muito flexíveis e, com ela fazendo um pequeno floreio acima da cabeça, para assegurar-se de seu alvo, deu um tremendo chute em Gabriel Grub; imediatamente depois disso, todos os duendes à espera agruparam-se ao redor daquele coveiro desgraçado e chutaram-no sem misericórdia, de acordo com o costume estabelecido e invariável dos cortesãos desse mundo: chuta-se aqueles a quem a realeza chutou e abraça-se aqueles a quem a realeza abraçou.
– Deem-lhe mais do mesmo tratamento! – disse o rei dos duendes.
A essas palavras, a nuvem desencantou, e uma paisagem muito rica e muito linda descortinou-se à visão; existe uma paisagem exatamente igual ainda hoje, a meia milha da cidade da velha abadia. O sol brilhava num céu claro e muito azul, a água brilhava sob seus raios, e as árvores pareciam mais verdes e as flores mais viçosas sob sua influência vibrante. A água corria ondulante, com um som agradabilíssimo; as árvores farfalhavam ao vento suave que murmurava entre suas folhas; os passarinhos cantavam nos galhos; e a cotovia entoava canções em alto e bom som, dando as boas-vindas à manhã de um novo dia. Sim, havia amanhecido; era verão, e a manhã estava radiante e era um bálsamo; a menor folha, a folhinha da grama, por mínima que fosse, tudo estava impregnado de vida. A formiga caminhava para sua labuta diária, a borboleta adejava as asas e repousava no ar aquecido pelos raios do sol; miríades de insetos estendiam suas asas transparentes e regozijavam-se em sua existência breve, mas feliz. O homem andava sempre em frente, empolgado com a cena; e tudo era brilho e esplendor.
– Você, um homem sofrido! – disse o rei dos duendes num tom de voz que traduzia ainda mais desprezo que antes.
E, de novo, o rei dos duendes fez um floreio com a perna; de novo, ela desceu sobre os ombros do coveiro; e, de novo, os duendes serviçais imitaram o exemplo de seu chefe.
Muitas vezes a nuvem sumiu e voltou, e muitas lições ela ensinou a Gabriel Grub, que, embora tivesse os ombros ardendo de dor dos frequentes chutes dos duendes, continuava olhando com um interesse que nada conseguia diminuir. Ele viu que os homens que trabalhavam duro e ganhavam o escasso pão de cada dia com vidas inteiras de muita labuta eram pessoas animadas e felizes; e que, para os mais ignorantes, a doce face da natureza era uma fonte incessante de animação e alegria. Ele viu aqueles que haviam sido criados com delicadeza e educados com carinho: eram otimistas diante das privações e superiores ao sofrimento que teria arrasado muitos homens de formação mais dura – isso porque traziam dentro do peito a matéria bruta de que são feitas a felicidade, a satisfação e a paz de espírito. Ele viu que as mulheres, as mais suaves e mais frágeis dentre as criaturas de Deus, eram na maioria das vezes superiores ao sofrimento, à adversidade e às preocupações; e viu que isso se dava porque elas traziam em seus corações um manancial inexaurível de afeição e devoção. Acima de tudo, ele viu que homens como ele, que rosnavam para as celebrações e a animação dos outros, eram as piores ervas daninhas da bela superfície da terra; e, separando tudo o que há de bom no mundo de tudo o que há de mau no mundo, ele chegou à conclusão de que, afinal, era um tipo de mundo bem decente e respeitável. Nem bem chegara a essa conclusão e a nuvem que se fechara sobre o último quadro pareceu estacionar em seus sentidos e niná-lo para que ele repousasse. Um por um, os duendes sumiram de vista; e, quando o último deles desapareceu, Gabriel Grub afundou no sono.
O dia já havia clareado quando Gabriel Grub acordou e viu que estava deitado ao comprido numa pedra tumular no cemitério da igreja, com a garrafa forrada de palhinha ao seu lado e vazia; seu casaco, a pá e a lamparina, todos bem branquinhos da geada da noite anterior, estavam atirados pelo chão. A lápide onde ele vira pela primeira vez o duende sentado estava ali, ereta, reta, aprumada e empertigada diante dele, e a cova na qual estivera trabalhando na noite anterior, esta não estava longe dali. Primeiro, ele chegou a duvidar da realidade de suas aventuras, mas a dor aguda nos ombros quando tentou levantar-se assegurou-lhe de que os chutes dos duendes com certeza não foram imaginários. Ficou perplexo uma vez mais ao observar que não havia vestígios de pegadas na neve onde os duendes haviam brincado de pular carneirinho com as lápides, mas logo encontrou a explicação dessa circunstância quando lembrou que, por serem espíritos, eles não iriam deixar impressões visíveis para trás. Assim, Gabriel Grub levantou-se da melhor maneira que pôde, dada a dor nas costas, e, sacudindo a geada de seu casaco, vestiu-o; e voltou seu olhar para a cidade.
Mas ele era um outro homem e não podia suportar a ideia de voltar para um lugar onde o seu arrependimento seria motivo de piada e onde a sua transformação seria desacreditada. Hesitou por alguns momentos e então deu as costas à cidade para pensar em que outro lugar ele poderia tentar ganhar o seu pão de cada dia.
A lanterna, a pá e a garrafa forrada de palhinha foram encontradas, naquele mesmo dia, no cemitério da igreja. A princípio, houve grandes especulações sobre o destino do coveiro, mas logo ficou definido que ele havia sido levado embora pelos duendes; e não faltaram testemunhas respeitáveis que tivessem visto com nitidez ele ser carregado rapidamente pelo ar, montado num cavalo de pelo castanho e cego de um olho, com a traseira de um leão e o rabo de um urso. No fim, tudo isso virou uma história em que todos acreditavam piamente; e o novo coveiro costumava exibir aos curiosos, por um dinheirinho de nada, um pedaço de bom tamanho do galo da rosa dos ventos da igreja que fora acidentalmente chutado pelo cavalo acima mencionado em seu voo de fuga; pedaço esse que fora recolhido por ele mesmo no cemitério da igreja coisa de um ou dois anos atrás.
Infelizmente, essas histórias ficaram um pouco atrapalhadas pelo inesperado ressurgimento do próprio Gabriel Grub uns dez anos mais tarde, desta vez um velhinho reumático, maltrapilho e contente da vida. Ele contou sua história ao pároco e também ao prefeito; e, no decorrer do tempo, essa história começou a ser aceita como fato histórico e é dessa forma que ela continua a ser contada até os dias de hoje. Quanto aos que tinham acreditado na lorota do galo da rosa dos ventos, uma vez tendo depositado sua confiança na história errada, não foram facilmente persuadidos a trocar de história e, portanto, de modo que parecessem tão sábios quanto possível, davam de ombros, levavam a mão à testa e murmuravam alguma coisa sobre Gabriel Grub ter bebido todo o gim holandês e então ter pegado no sono deitado na pedra da sepultura; e eles faziam questão de explicar aquilo que Gabriel Grub supunha ter testemunhado na caverna dos duendes, dizendo que ele simplesmente tinha visto o mundo e ficara mais sábio. Mas essa opinião, que definitivamente não se popularizou em nenhum momento, foi gradualmente esquecida. Seja lá como for, uma vez que Gabriel Grub sofreu de reumatismo até o fim de seus dias, esta história pelo menos tem uma moral, se não servir para ensinar coisa melhor; e a moral da história diz que, se um homem se torna rabugento e bebe desacompanhado na temporada de festas natalinas, ele pode ter certeza de que não será um homem melhor por causa disso; que os espíritos sejam sempre os melhores possíveis, ou então que sua presença esteja a muitos graus de distância do teor de uma prova concreta, como os espíritos que Gabriel Grub viu na caverna dos duendes.
Charles Dickens

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