sábado, agosto 16

O destino do capitão Sharkey

Sharkey, o temível Sharkey, que durante dois anos assolara o litoral do Caromandel, voltou a sua existência de pirataria feroz e andava agora ao largo da América Espanhola com um navio gótico, o “Feliz Liberdade”. Pescadores ou comerciantes todos fugiram ao avistar o velame remendado do pirata no mar dos trópicos.

Alguns só foram arriscados pelo oceano, costeando o litoral, os buscadores a buscar refúgio no porto mais próximo e os mais corajosos davam graças a Deus quando punham seu carregamento e seus passageiros sob a proteção de uma cidadela. E não era sem razão esse terror porque de todas as ilhas chegavam quase diariamente notícias de naus incendiadas, corpos exangues, tirados às praias e clarões de mau agouro no horizonte, fingindo inequívocos de que Sharkey recomeçara suas fachadas.

Aquelas águas tranquilas, aquelas ilhas de vegetação maravilhosas eram tradicionais o refúgio dos corsários. O princípio desses saqueadores do mar eram fidalgos aventureiros e bravos, que combatiam pelo patriotismo e só pilhavam os navios de Espanha. Mas essas figuras heroicas desapareceram ao fim de um século e foram remanescentes pelos cucaneiros que eram simplesmente piratas em busca das vítimas mais ricas sem indagar de sua nacionalidade.

No início do século XVIII, o pirata era um inimigo de todos, um ladrão sem pátria nem fé, que vencia pela ferocidade e só tinha um intuito: o saque para enriquecer depressa.

E entre os mais sanguinários daquela época a fama de Sharkey avultava numa auréola de sangue.

Num dos primeiros dias de maio do ano de 1720, o “Feliz Liberdade” esteve a cinco léguas a oeste da Passagem dos Ventos esperando uma presa fácil, uma rica nau de comércios que os bons ventos desviam entregar-lhe sem resistência. Houve, já três dias que ali estava, pequeno ponto negro sinistro na vastidão do oceano. Sharkey irritou-se como tão longa espera e jurou a Ned Gallway, o piloto, que pagaria bem caro essa demora à tripulação do primeiro navio que capturou.

O aposento do Sharkey a bordo do “Feliz Liberdade” era de grande dimensão e decorado com objetos de grande luxo mas com desatino que formava um singular contraste de luxo e desordem. Quadros… tapetes… tudo com manchas de vinho e pólvora.

O capitão e Ned ali estavam jogando cartas. Barbado até os olhos, com uma cabeleira emaranhada e músculos formidáveis, Ned tinha bem o visual do que era um desclassificado de Nova Orleans, brutal, vestido com cores vivas que realçavam suas atitudes de hércules sem lei nem escrúpulos. John Sharkey era bem diferente. Seu rosto magro e zelosamente barbeado tinha uma palidez de cadáver; era quase calvo; apenas umas vagas mechas de cabelo cor de estopa coroavam sua frente alta e estreitas. Os olhos azuis sem brilho apertavam-se junto ao nariz seco; suas mãos ossudas e longas moviam-se constantemente como antenas de um inseto. Seu vestuário era cinzento e muito discreto.

De súbito a porta do aposento se abriu sob um impulso violento e dois homens de aspecto grosseiro entraram rapidamente. Eram Israel Martin, o chefe da tripulação, e Red Folley, o mestre canhoneiro. Sharkey ergue-se com uma pistola em cada mão e um brilho cruel nos olhos.

— O que significa isso, patifes? — exclamou ele. — Positivamente, se eu não abato um de vez em quando, como um cão, vocês acabam por esquecer quem sou. Então entre-se aqui como em uma taverna?

—Capitão — disse Red com ar sombrio. —São essas atitudes que culminaram na situação a que chegamos. E não sei por que temos de arriscar nossa pele defendendo um capitão como o senhor.

Sharkey depôs as pistolas sobre a mesa e, encostando-se na cadeira, disse com voz calma.

— Mas eu estou assim tão necessitado de ser defendido?

— A tribulação está reunida em conselho na proa… Seus interesses não são bons e eles podem aparecer aqui de um momento para outro. Nós viemos preveni-lo e somos recebidos como cães…

O capitão extravasou-se e apanhou a espada, mas não teve tempo para pronunciar uma palavra. A porta se abriu de novo e um marinheiro nasceu bradando:

— Um navio!…

A fisionomia de Sharkey ilumina-se. De há muitos dias já ele notava a satisfação e a má vontade dos marinheiros; sabia que de fato seus comandados tinham propostas de reclamação; mas sabia também que diante de uma vítima a perseguir, trucidar e saquear, tudo desaparecia.

De facto os homens corriam os seus postos e já não foram planejados senão no morticínio e na orgia que se desviam.

Sharkey chegou à convenção e julgou por si a situação. Um grande navio com todas as velas soltas visita lentamente e navega mesmo junto do pirata. Semelhante audácia chegou a inquietar os marinheiros, que receberam a armadilha de uma nau de guerra; mas não. O aspecto do imprudente era pacífico. Sharkey tentou uma manobra. Em poucos minutos o navio desconhecido foi abordado, atravancado e como uma horda de demônios, os piratas saltaram para ele. Meia dúzia de tripulantes em serviço no convés morreram em seus postos. Sharkey rebentou a cabeça do subcomandante, que estava na torre do comando e antes que os demais saíssem de seus leitos ou navio estivessem em seu poder.

Verificou-se então que era o “Porto Bello” que vinha de Londres para a Jamaica com revestimento de tecidos e graus de ferro. O carregamento não tinha importância para os piratas, mas o cofre de bordo trazia mil guinéus e havia entre os passageiros ricos negociantes da Jamaica que traziam as bolsas bem garantidas. Feito o saque amarraram os prisioneiros no convés e, um a um, sob o olhar frio de Sharkey os atiraram ao mar… Por fim restou só, de pé, o capitão Hardy, comandante do “Porto Bello”. Vendo que chegara sua vez, Hardy projeta um braço e disse:

— Antes de morrer quero confiar-lhe um segredo.

— Se é com a esperança de nos enganar perde seu tempo — chasqueou o chefe dos piratas.

— Não tenho essa esperança — retrucou o capitão com um sorriso singular. — Submeto-me à fortuna do mar, mas como vi que revistaram todo o navio sem descobrir o melhor tesouro que ele traz…

— Um tesouro! — bradou Sharkey — aproximando-se. — Se não me revele seu esconderijo…

— Para isso comecei a falar — disse Hardy detendo-o com gesto altivo. Não se trata de dinheiro mas de um tesouro bem mais precioso a meu ver: — uma mulher moça e formosa. Chama-se Ignez Ramirez, tem 18 anos e é do mais nobre sangue espanhol. Vinha a bordo com seu pai, porém, tendo disposto de seu coração sem consentimento de D. Ramirez este tentou-me que a prendesse em uma cabine secreta por traz de meu aposento.

Disse isto é sem esperar que o impelissem, desafiando Sharkey com o olhar, saltou para as ondas.

***

Seu corpo não tinha ainda proposto o fundo de areias movidas e já os piratas arrombavam a machado a porta da cabine indicada, arrancando dali e trazendo arrastada uma mulher muito jovem ainda, de singular beleza e que urrava de pavor.

Shakey espalmou a mão suja de sangue sobre seu rosto e declarou com uma risada sinistra.

— É assim que se marcam as ovelhas entre nós. E voltando-se para suas tentativas controladas. — Levem-na para meu aposento com o devido respeito.

Depois de incendiar o navio aprisionado, os piratas retornaram para sua nau e festejaram a vitória bebendo desregradamente. Dois homens fizeram companhia ao capitão em seu aposento: eram o quartel-mestre e Stable, o cirurgião de bordo, um médico que foi convocado a partir de Charleston, de um dia para outro, por ter apressado a morte de um parente de quem era o único herdeiro. Nessa noite Stable tinha, como os outros, bebido em demasia e foi o primeiro a lembrar a Sharkey a linda prisioneira. O capitão deu ordem ao criado negro que a trouxesse para ali.

Ignez Ramirez veio com passo firme e tranquilo. Pelas palavras de seus guardas ela conhecia agora toda a situação; sabia que seu pai fora massacrado e que sua situação naquele local era mais horrenda do que a morte. Mas com o conhecimento da realidade uma grande calma se fazia em sua alma: mais ainda — houve em seus olhos um brilho cruel como se ela entrevisse desde já uma desforra implacável contra seus algozes.

Entrou no aposento do capitão com ar sereno, convidou Sharkey e sem hesitar foi se sentar sobre seus joelhos.

— Perdão… Perdão — bradou o médico cambaleando. — O artigo sexto do nosso contrato diz que toda vítima de valor pertence a todos.
— Sim — confirmado o quartel-mestre. — O artigo sexto assim o diz.

Mas o capitão lisonjeado com a escolha da prisioneira que lhe enlaçava o pescoço e a acariciava a cabeça sacou do cinto uma pistola, observando:

— Foi a mim que ela preferiu, está se mostrando bem digna de ser uma esposa de um pirata. Meto uma bala no primeiro que pretender arrancá-la de meus braços.

Entretanto, como Ignez continuou a passar as mãos carinhosas e repetidamente pela cabeça, as faces e o pescoço de Shakey o médico deteve-se com os olhos dilatados pela atenção e logo encontrou-se com um grito de horror indizível.

— Suas mãos… suas mãos… — balbuciou ele final com voz entrecortada.

Sharkey olhou para a mão que Ignez passava em seus lábios. Era lívida, com os dedos unidos por uma espécie de pelica amarela e luzente, coberta com um esbranquiçado.

Erguendo-se num salto repeliu a espanhola. Ela, com um grito de triunfo, precipitou-se para o médico que fugiu e se refugiou embaixo da mesa, com urros hediondos.

Foi preciso metê-la num círculo de lançamento para conseguir que ela se recolhesse a uma cabine resistente quando a fechasse.

Então o médico explicou, com os dentes tilintando de medo:

– Uma lepra. O capitão Hardy vingou-se como um “Pele Vermelha”. Deixou-nos essa desgraçada para nos transmitir a lepra!… Ainda bem que ela não me tocou…

— Nem a mim — bradou o quartel-mestre… Mas o capitão…

— Diga-me com franqueza — murmurou Sharkey mais pálido do que nunca e esfregando furiosamente as faces com uma estopa. — julgo que terei esperança de me salvar?…

O deslocamento fez um gesto negativo. — Mentir em caso de tal seria uma infâmia. Quando as escamas da lepra pousam sobre um homem nada mais pode purificar seu corpo.

O capitão deixou-se cair sobre uma cadeira, sem uma palavra, sem um grito.

Só apresentou a cabeça quando viu um grupo de marinheiros cercá-lo com ar resoluto.

— O que você quer? — bradou ele pondo-se de pé com uma pistola em cada mão. — Galloway, Folley Martin! Venham me ajudar a varrer esse canal do meu caminho. Mas os oficiais mantiveram-se à distância, imóveis, silenciosos.

— É inútil resistir, capitão. — Nós não podemos conservá-lo a bordo. É coisa resolvida.

Sharkey disparou uma pistola, um marinheiro caiu; mas a segunda pistola não chegou a ser disparada. Agarrado por dez mãos robustas, o mísero foi atirado no fundo de uma bota.

A mulher ria frenéticamente, o capitão de pé com as mãos amarradas desafia-os com o olhar.

Fez-se uma manobra das velas e o “Feliz Liberdade” demorou-se deixando o pequeno bote abandonado no mar imenso.
Arthur Conan Doyle

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