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Penso agora, quando já não há remédio, que em todas as situações importantes de minha vida eu deveria ter me declarado idiota, antes que o fizessem.
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Com Dom Quixote aprendemos que o herói pode morar na nossa rua, ter cara de gerente de loja e chamar-se Wilson de Sousa. O herói podemos ser nós, porque os deuses há muito se desinteressaram pela literatura. Bocejam agora, navegam pela internet, resolvem palavras cruzadas e moram num lugar tão prosaico que Jorge Luis Borges não tolerou ficar ali mais que um dia.
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No parque, o menino arrancou uma folha do caderno, fez um aviãozinho e o atirou para o alto. O vento entrou na brincadeira e conduziu o aviãozinho até um bonito pouso no chapéu de um senhor que cochilava num banco. Ele acordou, pegou o chapéu, o aviãozinho e, não vendo ninguém por perto, levantou o pescoço e olhou feio para a árvore.
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Depois de por muitos anos exaltar a bem-amada em milhares de maus versos, o poeta ainda teve a presunção de lhe perguntar se ela às vezes não sentia ciúme de si mesma, por inspirar tanta beleza.
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Aspirava agora aos cantos escuros, aos braços da noite, à umidade e à decomposição. Fechava-se em casa e vedava todos os lugares por onde pudesse imiscuir-se o sol, mas mesmo assim, sabendo-o pleno e majestoso na rua, rondando a casa, enfiava-se embaixo da cama e só saía de lá quando supunha que a noite houvesse chegado. Então, pela primeira vez no dia, no seu rosto se esboçava um rabisco semelhante a um sorriso.

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