sábado, setembro 20

Drummond toca a campainha

Carlos Drummond de Andrade, com aquele jeito protocolar, se viesse tocar nossa campainha, não pensaríamos na hipótese dele estar nos trazendo um poema fresquinho. Olharíamos desconfiados pela cortina, já decididos a não atender, e algum de nós talvez dissesse: “Acho que é o homem do IBGE…”

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Penso agora, quando já não há remédio, que em todas as situações importantes de minha vida eu deveria ter me declarado idiota, antes que o fizessem.

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Com Dom Quixote aprendemos que o herói pode morar na nossa rua, ter cara de gerente de loja e chamar-se Wilson de Sousa. O herói podemos ser nós, porque os deuses há muito se desinteressaram pela literatura. Bocejam agora, navegam pela internet, resolvem palavras cruzadas e moram num lugar tão prosaico que Jorge Luis Borges não tolerou ficar ali mais que um dia.

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No parque, o menino arrancou uma folha do caderno, fez um aviãozinho e o atirou para o alto. O vento entrou na brincadeira e conduziu o aviãozinho até um bonito pouso no chapéu de um senhor que cochilava num banco. Ele acordou, pegou o chapéu, o aviãozinho e, não vendo ninguém por perto, levantou o pescoço e olhou feio para a árvore.

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Depois de por muitos anos exaltar a bem-amada em milhares de maus versos, o poeta ainda teve a presunção de lhe perguntar se ela às vezes não sentia ciúme de si mesma, por inspirar tanta beleza.

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Aspirava agora aos cantos escuros, aos braços da noite, à umidade e à decomposição. Fechava-se em casa e vedava todos os lugares por onde pudesse imiscuir-se o sol, mas mesmo assim, sabendo-o pleno e majestoso na rua, rondando a casa, enfiava-se embaixo da cama e só saía de lá quando supunha que a noite houvesse chegado. Então, pela primeira vez no dia, no seu rosto se esboçava um rabisco semelhante a um sorriso.

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