“Engolidor de fogo”, disse Douglas. “Estou engolindo fogo. Droga, mal posso esperar por aquele lago!”
De repente, lá em frente, havia um homem à beira da estrada.
Camisa aberta revelando o corpo bronzeado até a cintura, os cabelos alourados da cor do trigo maduro de julho, os olhos do homem incandesciam azuis de fogo, em um ninho de rugas de sol. Ele acenava, morrendo de calor.
Neva afundou o pé no freio. Ferozes nuvens de poeira se levantaram, fazendo o homem desaparecer. Quando a poeira dourada assentou, seus olhos quentes amarelados rebrilhavam, ameaçadores, como os de um gato, desafiando o tempo e o vento causticante.
Ele encarou Douglas.
Douglas desviou o olhar, nervosamente.
Dava para ver por onde o homem havia atravessado um campo de grama alta, amarelada, tostada e queimada por oito semanas de nenhuma chuva. Havia uma trilha onde o homem tinha amassado a grama e aberto uma passagem para a estrada. A trilha ia até onde a vista alcançava, descendo em direção a um pântano seco e um leito seco de riacho sem nada além de pedras quentes e tostadas e rochas fritas e areia derretida.
“Mal posso acreditar que você parou!”, gritou o homem raivosamente.
“Mal posso acreditar que parei”, Neva gritou de volta. “Aonde você está indo?”
“Vou pensar em algum lugar.” O homem saltou como um gato e se aboletou no banco de trás. “Vá andando. Está atrás de nós! O sol, quero dizer, é claro!” Ele apontou diretamente para o alto. “Anda! Ou vamos todos enlouquecer!”
Neva enfiou o pé no acelerador. O carro saiu do cascalho e pairou sobre pura poeira ardente, reduzindo apenas de vez em quando ao se desviar de alguma rocha ou ao topar com uma pedra. Eles cortavam a terra ao meio ruidosamente. Acima dela, o homem gritava:
“Acelere para cem, cento e vinte, diabo, por que não cento e cinquenta!”
Neva lançou um rápido olhar crítico ao leão, o homem no banco de trás, para ver se conseguia fechar suas mandíbulas com um olhar. Elas se fecharam.
E é assim, claro, como Doug se sentia com respeito à fera. Não um estranho, não; não um caroneiro, mas um intruso. Apenas dois minutos depois de saltar para dentro do carro muito quente, com seu cabelo de selva e cheiro de selva, ele havia conseguido se indispor com o clima, o automóvel, Doug e sua honorável e perspirante tia. Agora ela se debruçava sobre o volante e guiava o carro por entre tempestades de calor e chicotadas de cascalho.
Enquanto isso, a criatura no assento de trás, com sua grande juba leonina e olhos amarelados de menta fresca, lambia os beiços e olhava direto para Doug no espelho retrovisor. Ele deu uma piscadela. Douglas tentou piscar de volta, mas por algum motivo a pálpebra não quis abaixar.
“Você alguma vez tentou imaginar...”, gritou o homem.
“O quê?”, gritou Neva.
“Você alguma vez tentou imaginar...”, berrou o homem, inclinando-se para a frente entre eles, “...se o tempo está deixando ou não você doido, ou se você já é doido?”
A pergunta foi uma surpresa, que subitamente os refrescou naquele dia de fornalha.
“Não entendi direito...”, disse Neva.
“Nem ninguém!” O homem cheirava como um fosso de leões. Seus braços magros se levantavam e abaixavam entre eles, nervosamente amarrando e desamarrando um cordão invisível. Ele se mexia como se houvesse ninhos de cabelos em chama sob cada axila.
“Num dia como hoje, o inferno todo está solto dentro de sua cabeça. Lúcifer nasceu em um dia assim, em uma desolação como esta”, disse o homem. “Com apenas fogo e chamas e fumaça em toda parte”, disse o homem. “E tudo tão quente que você não conseguia tocar, e as pessoas não querendo ser tocadas”, disse o homem.
Ele deu uma cutucada no cotovelo dela, uma cutucada no rapaz.
Eles saltaram mais de um quilômetro.
“Vê?” O homem sorriu. “Num dia como hoje, você começa a pensar montes de coisas.” Ele sorria. “Não é este o verão em que os dezessete anos de gafanhotos devem voltar como num puro holocausto? Pragas simples, mas multitudinárias?”
“Não sei.” Neva dirigia rápido, olhando sempre para a frente.
“Este é o verão. O holocausto está logo ali na esquina. Estou pensando tão rápido que meus olhos doem, minha cabeça racha. Sou capaz de explodir em uma bola de fogo a um simples pensamento desconectado. Ora... ora... ora.”
Neva engoliu em seco. Doug suspendeu a respiração.
Muito subitamente, eles ficaram aterrorizados. Pois o homem simplesmente continuava tagarelando, olhando para as árvores de fogo verde-ondulantes de calor que passavam queimando de um lado e de outro, aspirando a poeira grossa e quente que se levantava em torno do carro de lata; sua voz não estava nem alta nem baixa, mas firme e calma agora, ao descrever sua vida:
“Sim, senhor, há mais no mundo do que as pessoas dão valor. Se pode haver dezessete anos de gafanhotos, por que não dezessete anos de pessoas? Já pensaram nisso?”
“Nunca pensei”, disse alguém.
Provavelmente eu, pensou Doug, pois sua boca se movera como um camundongo.
“Ou que tal vinte e quatro anos de pessoas, ou cinqüenta e sete anos? Quero dizer, estamos tão acostumados a pessoas crescendo, casando, tendo filhos, que nunca paramos para pensar que talvez haja outras maneiras de elas virem ao mundo, talvez como gafanhotos, de vez em quando, quem sabe, um dia quente, no meio do verão!”
“Quem sabe?” Lá estava o camundongo novamente. Os lábios de Doug tremiam.
“E quem pode dizer que não há maldade genética no mundo?”, perguntou o homem ao Sol, olhando diretamente para o alto, para o Sol, sem piscar.
“Que tipo de maldade?”, perguntou Neva.
“Genética, madame. Ou seja, no sangue. As pessoas que nasceram más, cresceram más, morreram más, sem nenhuma mudança até o fim da linha.”
“Uau!”, disse Douglas. “Você quer dizer pessoas que começaram malvadas e continuaram assim?”
“Captou a mensagem, garoto. Por que não? Se existem pessoas que todo mundo acha que são uns anjos de candura desde o primeiro doce suspiro até o último, por que não vileza pura e simples, de primeiro de janeiro a dezembro, trezentos e sessenta e cinco dias por ano?”
“Nunca pensei nisso”, disse o camundongo.
“Pense”, disse o homem. “Pense.”
Eles pensaram por mais de cinco segundos.
“Agora”, disse o homem, apertando um dos olhos ao olhar para o lago fresco a oito quilômetros de distância, o outro fechado para dentro da escuridão e ruminando ali sobre um monte de fatos. “Ouçam. E se o calor intenso, quero dizer, o calor realmente quente, quente de um mês como este, em uma semana como esta, em um dia como hoje, simplesmente produzisse um Homem Mau, feito de lama do rio assada. Que estava ali, enterrado na lama por quarenta e sete anos, como uma maldita larva, esperando vir à luz. E ele despertasse com uma sacudida e olhasse em volta, totalmente adulto, e saísse da lama quente para o mundo e dissesse: ‘Acho que vou comer um verão’.”
“Como é mesmo?”
“Comer um verão, garoto; verão, madame. Simplesmente devorá-lo inteiro. Olhe para as árvores, não são um jantar inteiro? Olhe para aquele campo de trigo, não é um banquete? Aqueles girassóis à beira da estrada, puxa vida, ali está um café-da-manhã. Papel de alcatrão no telhado daquela casa, ali está o almoço. E o lago, bem lá adiante, minha nossa, é o vinho do jantar, beba-o todo!”
“Estou mesmo com sede”, disse Doug.
“Com sede, diacho, rapaz, ‘com sede’ nem mesmo começa a descrever o estado de um homem, venhamos e convenhamos, que é alguém que esteve esperando na lama quente por trinta anos e nasceu, só para morrer em um dia! Com sede! Pelos deuses! Sua ignorância é total.”
“Bom”, disse Doug.
“Bom”, disse o homem. “Não apenas com sede, mas faminto. Faminto. Olhe em volta. Não apenas comer as árvores e depois as flores abrasadas à beira das estradas, mas depois os cães ofegantes mortos de calor. Lá está um. Lá está outro! E todos os gatos do país. Lá estão dois, acabaram de passar três! E se, então, o feliz glutão começar simplesmente a... ora, por que não... começar a sair por aí... vou lhe dizer, que tal isto... comendo gente? Quero dizer... pessoas! Pessoas fritas, cozidas, fervidas e parboilizadas. Belezas de pessoas bronzeadas. Velhos, jovens. Chapéus de velhinhas e depois as velhinhas debaixo dos chapéus e depois cachecóis de jovens moças e jovens moças e, em seguida, calções de banho de jovens rapazes, meu Deus, e jovens rapazes, cotovelos, tornozelos, orelhas, artelhos e sobrancelhas! Sobrancelhas, puxa vida, homens, mulheres, rapazes, moças, cães, completando o cardápio, afiem seus dentes, lambam os beiços, o jantar está servido!”
“Espere aí!”, alguém gritou.
Eu não, pensou Doug. Eu não disse nada.
“Um momento aí!”, alguém gritou.
Era Neva.
Ele viu o joelho dela se levantar como por intuição e se abaixar como por uma decisão irrevogável.
Pá! Bateu o calcanhar no chão.
O carro freou. Neva abriu a porta do carro, apontando, gritando, apontando, gritando, a boca nervosa, uma das mãos estendida agarrando a camisa do homem e rasgando-a.
“Fora. Saia!”
“Aqui, madame?” O homem estava atônito.
“Aqui, aqui, aqui, fora, fora, fora!”
“Mas, madame...!”
“Fora, ou você está acabado, acabado”, gritou Neva, descontroladamente. “Tenho uma carga de bíblias no porta-malas, uma pistola com uma bala de prata aqui, debaixo do volante. Uma caixa de crucifixos debaixo do banco! Uma estaca de madeira presa ao eixo, junto com um martelo. Tenho água benta no carburador, abençoada antes de ferver, hoje de manhã cedo e três igrejas no caminho: a católica de São Mateus, a batista da Torre Verde e a episcopal Cidade do Sião. Essa energia vai acabar com você. Seguindo a gente, um quilômetro atrás e devendo chegar a qualquer momento, está o reverendo bispo Kelly de Chicago. Lá no lago, está o padre Rooney de Milwaukee, e Doug, ora, Doug aqui tem em seu bolso traseiro, neste minuto, uma espiga de acônito e dois pedaços de raiz de mandrágora. Saia! Saia! Saia!”
“Ora, madame”, gritou o homem. “Já saí.”
E saiu.
Bateu no chão e rolou na estrada.
Neva arrancou o carro a toda a velocidade.
Lá atrás, o homem se compunha e gritava:
“Você deve ser louca. Deve ser maluca. Louca. Maluca.”
“Eu, louca? Eu, maluca?”, disse Neva, e resmungou: “Puxa!”.
“... louca... maluca…”
A voz foi sumindo.
Douglas olhou para trás e viu o homem sacudir o punho e então rasgar a camisa e jogá-la no cascalho e saltando para fugir de grandes nuvens de poeira quente, com os pés descalços.
O carro explodia, corria, acelerava, avançava estourando freneticamente, sua tia ferozmente colada ao volante quente, até que a pequena figura suada do homem tagarela desapareceu nos pântanos batidos de sol e no ar abrasador. Por fim, Doug respirou:
“Neva, eu nunca vi você falar daquele jeito.”
“E nunca mais verá, Doug.”
“O que você disse era verdade?”
“Nem uma só palavra.”
“Você mentiu, quero dizer, você mentiu?”
“Menti”, Neva piscou. “Você acha que ele estava mentindo também?”
“Não sei.”
“Tudo o que sei é que, às vezes, é preciso uma mentira para acabar com outra, Doug. Desta vez, pelo menos. Não deixe que isso se torne um hábito.”
“Não, madame.” Ele começou a rir. “Fale novamente aquela coisa de raiz de mandrágora. Fale daquela coisa de acônito no meu bolso. Fale da pistola com uma bala de prata, diga.”
Ela falou. Os dois começaram a rir.
Gritando e fazendo algazarra, eles se foram em seu carrinho lata-velha sobre trilhas de cascalho e lombadas, ela falando, ele escutando, olhos apertados, gargalhando, caçoando, tagarelando.
Só pararam de rir quando caíram dentro d’água em suas roupas de banho e saíram todo sorridentes.
O sol estava quente no meio do céu e eles brincaram na água alegremente por cinco minutos antes de começarem realmente a nadar nas frescas ondas mentoladas.
Somente ao entardecer, quando o sol de repente se foi e as sombras se projetavam das árvores, é que eles se lembraram que tinham de descer de volta aquela estrada solitária atravessando todos aqueles lugares escuros e passando pelo pântano deserto para chegar à cidade.
Ficaram ao lado do carro e olharam para baixo, para aquela longa estrada. Doug engoliu em seco.
“Nada pode nos acontecer no caminho de casa.”
“Nada.”
“Pule!”
Eles saltaram para os assentos e Neva deu partida no motor com gosto e eles arrancaram.
Dirigiram passando debaixo de árvores cor de ameixa e entre colinas de veludo púrpura.
E nada aconteceu.
Dirigiram por uma estrada larga de cascalho grosso que estava ficando da cor de ameixas e sentiram o cheiro do ar fresco-morno, que parecia com o de lilases, e entreolhavam-se, esperando.
E nada aconteceu.
Neva começou finalmente a cantarolar de lábios fechados.
A estrada estava deserta.
E então não estava mais deserta.
Neva riu. Douglas apertava os olhos e ria com ela.
Havia um garotinho, de uns nove anos talvez, vestido com um terno de verão cor de baunilha, sapatos brancos e gravata branca, o rosto rosado e lavado, esperando à beira da estrada. Ele acenou.
Neva freou o carro.
“Indo para a cidade?”, perguntou o garoto, alegremente. “Me perdi. O pessoal do piquenique foi embora sem mim. Que bom que vocês apareceram. É assustador por aqui.”
“Suba!”
O menino subiu e eles arrancaram, o garoto no banco de trás, e Doug e Neve na frente, olhando de vez em quando para ele, rindo e depois silenciando.
O garotinho ficou em silêncio por um longo tempo atrás deles, sentado ereto, rígido e limpo e vivaz e fresco e novo em seu terno claro.
E eles dirigiram pela estrada vazia sob um céu que agora estava escuro, com umas poucas estrelas e o vento que esfriava.
E finalmente o menino falou e disse algo que Doug não conseguiu ouvir, mas viu Neva enrijecer e seu rosto ficar pálido como o sorvete de onde foi tirado o terno do garotinho.
“O quê?”, perguntou Doug, lançando um olhar para trás.
O garotinho o olhou diretamente, sem piscar, e sua boca se mexeu sozinha como se estivesse separada do rosto.
O motor do carro rateou e morreu.
Eles foram diminuindo até parar totalmente.
Doug viu Neva pisando e pelejando com o acelerador e a ignição. Mas, sobretudo, ele escutou o garotinho dizer no silêncio novo e permanente:
“Algum de vocês já pensou alguma vez...”
O menino tomou fôlego e concluiu:
“...se existe algo como maldade genética no mundo?”
Ray Bradbury, "A cidade inteira dorme e outros contos breves"

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