segunda-feira, setembro 1

Levar a vida na flauta

Acho uma grande injustiça dizer mal do meu amigo Belarmino, só porque ele leva a vida na flauta. Há quem o diga um pândego, senão um irresponsável. Nada disso. Belarmino não ama a folga, não vive de brisa e pega no batente. Compreendam o meu amigo; ele é simplesmente um homem de alma leve, para quem só o fato de estar vivo já é uma enorme graça. Nasceu com vocação da felicidade. Prefere enxergar sempre o lado bom das coisas, e principalmente o das pessoas. Das pessoas em geral, mas em particular daquelas com quem ele vive, cujos defeitos ele vê, mas faz de conta que não vê e, por puro instinto, sem qualquer cálculo, deles sabe se cuidar. Em compensação, enaltece encantado as virtudes dos amigos, porque amizade é para ele a fina flor da vida. Encontra prazer no lance mais trivial de cada dia: o passarinho cantando, a moça que passa, o cheiro denso do mar, o bife enrolado com farofa de ovo, um chorinho da velha guarda ou uma canção do Roberto Carlos.


Não estou dizendo que para ele tudo são flores e que a vida sempre lhe vai às mil maravilhas. Muito pelo contrário. Como todo mundo, de vez em quando ele sente o gosto amargo da vida, conhece contingências ásperas, o dinheirinho mingua, doença na família, o seu time perde, o carro deu o prego. Mas ele jamais dá com o rabo na cerca. A diferença é que ele possui um misterioso mecanismo, localizado suponho que no cerebelo e não-acionado pela vontade consciente, que não permite que as contrariedades e os desagrados jamais o apoquentem, além de determinado limite. Por isso é que o Belarmino nunca perde o aprumo, a serenidade nem o riso.

Não, não vive rindo para as paredes. Sorri até mais do que ri, só que o seu riso transmite confiança e é sinal de uma indisfarçável alegria de viver. Curioso, não é um melódico, não tem a virtude musical da risada do Newton Freitas, a quem Rubem Braga chamou de Flauta da Noite. É a brandura do seu olhar que lembra a suavidade de certos fraseios da flauta conversando com a harpa, no concerto de Mozart.

É possível que a leveza da vida de Belarmino lhe venha um pouco, ou mais do que um pouco, da mulher que ele tem: além de bonita e bondosa, vive para lhe fazer as vontades, que ele nem precisa manifestar, ela adivinha. Mas ninguém calcule que ele é desses para quem tudo está bom, do tanto faz como tanto fez. Tem opinião própria, reclama, discorda, mas sempre em termos, de modos amáveis.

E, como todo bom filho de Deus, Belarmino também sofre neste mundo, mas sem permitir que a dor ultrapasse os limites da sua filosofia – “Deus dá o frio conforme o cobertor" – que aliás não é nem dele nem minha, mas do Adoniran Barbosa.

Estive com meu amigo faz pouco tempo. Soube que ele acabara de perder um filho, logo o caçula; fui visitá-lo. Recebeu delicado o meu abraço comovido, e sabem o que ele fez? Me convidou para uma partida de xadrez. Jogava com os cotovelos na mesa, as mãos sustentando o rosto enfiado no tabuleiro, e assoviando baixinho. Já com boa hora da partida, eu aguardava de olhar fixo o lance do seu cavalo, quando vi uma lágrima grossa cair bem em cima da coroa do rei. Condoído, quis lhe dar alguma palavra, mas ele falou antes de mim:

-- Está aí o teu xeque-mate.

Meu amigo é assim. Pelo requinte com que ele assovia um choro de Pixinguinha, desconfio que o nosso Belarmino poderia perfeitamente ganhar a vida na flauta.

Thiago Mello, "O Povo sabe o que Diz"

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