segunda-feira, novembro 24

Divagações sobre a palavra prata

Puxou a linha e tirou do anzol um pedaço de prata espasmodicamente belo que atirou para o balde no fundo do barco, onde outros pedaços tinham acabado de agonizar.

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Se gaivotas, como o homem, estão sujeitas a males súbitos, ele gostaria de ser uma e sofrer um desses males numa tarde plena de verão, no instante em que estivesse se lançando bem do alto ao avistar a prata de um cardume denunciado impiedosamente pelo sol.

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Acreditamos, um dia, que enlouquecer por amor era a mais lícita das atitudes. Enlouquecemos, então, e não houve médico que nos curasse. Todos os que subiram à torre onde fazemos colares com resíduos de estrelas acabaram se interessando por esse nosso artesanato e abandonaram as clínicas. É possível vê-los na rua, com as mãos cheias de uma prata que só se encontra no céu, esmerando-se nos colares, e também em pulseiras, enquanto declamam estrofes de trovadores da Idade Média. Os versos que dizem se transformam, assim como os que digo, em fiapos insubstanciais que logo se põem a flutuar, como delicadas almas de pássaros.

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Pensarei em flores, frutos, árvores centenárias que guardam entre as folhas todas as histórias que lhes contou o vento. Pensarei em coisas amenas, simples. Se cochilar à tarde, tentarei sonhar com um rio manso como um cordeiro, fluindo tão silenciosa e vagarosamente que parecerá um riozinho de tela ou de gravura. Talvez eu possa, no sonho, ser um peixe desses bem pequenos, que não ocupam espaço nem a atenção de ninguém, e levar a minha prata até um menininho que nunca pescou peixe nenhum. Ele me pegará na mão, vitorioso, e, se for um bom menino, me soltará de volta à água. Se não for, não importa. Que falta pode fazer um peixe ao mundo?

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Por um segundo o peixe rebrilhou – prata contra o céu azul. Depois, ali onde ele estivera, só a gaivota, soltando seu grito triunfal sobre as ondas.

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Chegará o dia em que, fisgados e atirados a um balde cheio de gelo, agonizaremos ao sol. Perturbaremos com nossos espasmos a recém-conquistada paz dos outros peixes, até que tenhamos direito à nossa própria morte e à nossa própria paz. Serão belas nossas contorções de prata, até que, finalmente serenados, já não nos importe nada, nem a evisceração nem o preço que atribuírem a nós, numa quinta-feira de ofertas no supermercado.

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