A tendência de expansão das livrarias de rua insere-se como novo capítulo da história curiosa, longa e importante do livro e leitura em São Paulo. Esses espaços começam a se consolidar ainda no século XIX, com a fundação da Academia de Direito do Largo São Francisco, e multiplicam-se nas primeiras décadas do século XX no Centro – especialmente em ruas como Barão de Itapetininga, Direita e São Bento. No mesmo período, surgem livrarias que viriam a se tornar referências, como a Livraria Teixeira e a Saraiva, esta fundada inicialmente como Livraria Acadêmica no Lago do ouvidor.
É principalmente a partir dos anos 1950, porém, que as livrarias ganham fôlego, com o surgimento de relevantes editoras nacionais. Nessa época, ainda, as livrarias universitárias se fortalecem e despontam casas que viriam a ser simbólicas, como a Livraria Cultura, fundada em 1947. Já na década de 1970, em meio à violência da ditadura civil-militar, livrarias paulistanas se convertem em polos de resistência cultural, acolhendo debates, saraus, grupos de teatro e divulgação de obras que circulavam à margem da censura oficial.
Nos anos 1990 e 2000, com a popularização dos shoppings e o fortalecimento do varejo de grande escala, São Paulo assiste ao surgimento das megastores. No entanto, já por volta de 2010, a emergência do e-commerce e as transformações na cadeia produtiva do livro em consequência da era digital provocariam uma crise sem precedentes no mercado editorial.
As grandes redes colapsam, entram em recuperação judicial e o setor como um todo passa a enfrentar desafios grandiosos, inclusive relativos a mudanças nos hábitos de consumo de livros, com a introdução do formato digital. Entram em cena as grandes plataformas. Por concentrarem, hoje, a fatia mais significativa das vendas, as plataformas detêm poder incomparável de negociação e promovem uma concorrência predatória, pressionando para baixo as margens de editoras e livrarias, ao mesmo tempo que programam seus algoritmos para promover especialmente best sellers, sufocando, assim, também a bibliodiversidade. Como têm no livro mero chamariz para sua imensa e diversificada vitrine virtual, podem vendê-lo sem margem de lucro ou até por preço inferior ao de custo, prejudicando todo o ecossistema editorial.
A disputa ainda por cima é por um mercado que encolhe, pois o brasileiro lê cada vez menos. A pesquisa Retratos da Leitura de 2024 aponta que nos quatro anos anteriores àquele ano houve uma redução de 6,7 milhões no número de leitores no país.
Curiosamente, é nesse cenário improvável que as livrarias independentes ressurgem com força em São Paulo, num movimento de pura resistência, mas com base em diferenciais que plataforma nenhuma jamais poderá oferecer. Muitas livrarias são especializadas, de bairro, idealizadas por livreiras e livreiros que apostam no diálogo com a rua, na formação leitora da comunidade, na curadoria cuidadosa e na programação cultural autoral. Mais do que pontos de venda de livros, a maior parte se constitui de espaços culturais, de encontros, trocas e construção do imaginário coletivo.
Diante dos desafios em comum, várias livrarias de rua de São Paulo passaram a se reunir nos últimos dois anos para compartilhar ideias e criar ações para fortalecer a atividade e o ecossistema editorial como um todo. As pautas passaram rapidamente das especificidades dos integrantes do grupo (pequeno, mas diverso, com livrarias de curadoria geral e especializadas) a temas de conjuntura, como a falta de regulamentação do mercado, a ausência de políticas públicas de fomento para abertura e manutenção de livrarias independentes, o impacto das plataformas digitais e também das feiras universitárias de livros. Estas absorvem boa parte do orçamento do ano de um sem número de leitores. Eles concentram as compras nesses eventos para aproveitar descontos agressivos que nenhuma livraria independente teria condições de conceder.
Dos encontros surgiu, primeiramente, a campanha “Ame os livros o ano todo. Visite as livrarias de rua”, que teve boa repercussão e chegou a ser notícia de alguns veículos de comunicação, o que estimulou o grupo a pensar novas iniciativas. Veio a Festa do Livro das Livrarias de Rua, simultaneamente à Festa do Livro da USP, para mostrar que as livrarias podem oferecer descontos também, embora mais modestos, e em compensação proporcionam verdadeiras experiências culturais.
O grupo cresceu e este ano decidiu lançar o Mapa de Livrarias de Rua de São Paulo, com endereços e informações das 37 livrarias que aderiram à ideia, em versão online e impressa, esta com tiragem inicial de 40 mil exemplares para distribuição gratuita. Com projeto gráfico do artista visual MZK, o Mapa apresenta as fachadas das 37 livrarias participantes em desenhos da ilustradora Isadora Ferraz. A proposta ganhou apoios e patrocínios de cerca de 30 editoras e algumas outras empresas da cadeia do livro, além da simpatia manifesta de vários setores da sociedade, numa demonstração de reconhecimento da importância das livrarias independentes em São Paulo.
Num país que perde leitores a cada ano, testemunha apático a canibalização do mercado editorial e patina em políticas públicas para o livro e leitura, abrir e manter uma livraria independente é em si um ato de resistência. Criar uma união profícua dos resistentes é um ato político e necessário.

Nenhum comentário:
Postar um comentário