1
– A gente é cego – disse Carlitos.
Mastigava o talo de um trevo.
Estávamos estendidos no pasto, longe dos outros. O sol branco mal e mal esquentava.
Matias nos ajudou a preparar as costelas na brasa. Comemos e as pessoas conversavam em grupos.
Carlitos tinha passado a vida, contou, fugindo dos seus. Quando descobriu sua mãe, quando aprendeu a vê-la pela primeira vez, ela era uma menininha tombada na cama e só dizia pedaços de coisas cômicas ou loucas e já não ia se levantar nunca.
– A gente é cego – disse Carlitos. – De vez em quando a gente adivinha. De vez em quando, e só.
2
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Volta e meia cruzava o riso e o olhar com uma moça chamada Helena.
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Eu gostava de sua maneira de comer, desfrutando.
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Ela tinha estado conosco todo o fim de semana, mas foi na hora do jantar que eu descobri esse rosto de índia que Siqueiros gostaria de ter pintado. Vi a muita luz desses olhos esverdeados, também seus prantos secos, a dignidade dos pômulos, a boca muito fêmea marcada pela cicatriz: uma mulher assim deveria ser proibida, pensei, com assombro. Eu ainda não sabia que tinha sido um tiro o que havia roçado sua cara, mas talvez já entendesse que nenhum arranhão da garra da morte podia ser capaz de desfigurá-la.
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Depois houve baralho, e ela apostou até o último feijão. Ganhou. Então empurrou tudo o que tinha até o centro da mesa. E perdeu. Não moveu nenhum músculo.
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Caminhamos juntos, no bom frio da noite. A lua, apagada, deixava ver os movimentos da maré das copas das árvores, ondas lentas, e estavam vivas as árvores, estavam cúmplices, e o mundo circulava suave debaixo dos pés.
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– Isto é bom e limpo – falei, ou falou.
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Na noite seguinte choveu forte em Buenos Aires. Não estávamos juntos. Passamos a noite em claro, escutando chover a mesma chuva. E descobrimos que não podíamos dormir separados.
3
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O meu corpo tinha crescido para te encontrar, depois de tanto caminhar e cair e se perder por aí. Não o porto, o mar: o lugar onde vão parar todos os rios e onde navegam os navios e os barquinhos.
4
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Mas uma noite, não sei até hoje como, nos encontramos cantando e dançando em plena estrada, na frente do maior quartel de Buenos Aires. Eric, campeão de tênis que perdia sempre, girava como um pião; Acha e o Gordo brincavam abraçados e proclamavam a candidatura de Vicente ao governo de todos os impérios, monarquias e repúblicas; Vicente dava voltas e pulava e quebrava um pé gritando “que bela é a vida”. Helena e eu celebrávamos nós dois como se fôssemos um aniversário.
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Os refletores nos localizaram, da torre do quartel. A sentinela ergueu a arma e titubeou: quem são esses loucos disfarçados que dançam na rua?
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E não disparou.
Eduardo Galeano, “Dias e noites de amor e de guerra”

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