sábado, outubro 25

Areias de Portugal

No meio do quintal, ao lado da casa, havia a mangueira, enorme, de um de seus ramos o pai pendurara um balanço que teve seus dias de glória até que meu irmão dele se despencou. Minha mãe iniciou campanha feroz e bem-sucedida, o balanço serviu de lenha numa fogueira de Santo Antônio.

Naqueles dias, Humberto de Campos publicara uma página de suas memórias, evocando o cajueiro de sua infância. Meu pai lera a crônica para mim. Recortei-a do jornal e quase a decorei. Pior: procurei imitar o menino que subia nos galhos mais altos e gritava: "Assobe, assobe, gajeiro, naquele topo real, para ver se tu avistas terras de Espanha, Otolina, areias de Portuga!!".

Passei a subir nos galhos mais altos, onde descobri um nicho no meio das folhas verdes e perfumadas – como só as mangueiras sabem ter. E lá de cima eu também gritava aos ventos da Boca do Mato, garantindo que via terras de Espanha, quando, na verdade, via apenas os tetos cor de moringa da vizinhança, ao longe a torre mais-que-branca da Matriz de Nossa Senhora da Guia e, depois, a formidável massa azulada do pico da Tijuca.

Pois ontem, tantos anos depois, sonhei com a mangueira dos dias antigos do passado. No sonho, ela surgia destacada, talvez mais alta e mais espetacular. E como na paisagem do sonho era quase noite, ela parecia iluminada por dentro, um pouco fosforescente, mas sem dúvida era a minha mangueira, intacta, esperando por mim.

Olhei-a bem e não foi difícil encontrar, em seus ramos mais altos, o nicho de folhas verdes e perfumadas – como só as mangueiras sabem ter. Lá estava ele, também, intacto, reconheci até mesmo o galho mais forte em que me segurava com maior confiança, deixando a outra mão livre para proteger os olhos do sol e dos ventos do mar largo. E de onde o menino, que nada vira do mundo até então, assombrado, avistava terras de Espanha, areias de Portugal.
Carlos Heitor Cony

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