Estava implantado numa grande propriedade com um frondoso arvoredo.
Naquela manhã, enquanto descia a escadaria que partia do terraço fronteiro ao salão de convívio, sentiu no ar o cheiro de mil flores. Poderia distingui-los um a um. E essa sensação acalmou o seu coração. E de repente o Lugar transformou-se. Já não era apenas a cela com grades onde pretendiam enclausurá-la, mas antes o espaço catalisador das fragrâncias da memória adormecida.
Só mais tarde viria a descobrir que o Lugar era tão somente a cela do abandono, a cela do esquecimento.
Olhou à sua volta e viu-se numa rotunda atapetada em calçada à portuguesa, tendo ao centro um lago adornado por um majestoso Neptuno que bramia repuxos de água desenhando na contraluz do horizonte uns arabescos frescos e transparentes que ressoavam pelos ares as notas gotejantes e cadenciadas da água em movimento.
Da rotunda partiam vários caminhos ladeados por árvores ou por pequenos arbustos. A circundar a rotunda estavam distribuídos vários bancos de pedra forrados a azulejo, protegidos pela sombra das acácias que brotavam dos canteiros intercaladas com as rosas, com os cravos, com as dálias , com os jacintos, com as glicínias e com tantas outras flores que naquele momento embriagavam o seu olfacto. Era um jardim esplendoroso.
Sentou-se num banco e respirou profundamente, tentando sorver o ar para não sufocar e gradualmente foi invadida por um torpor que ia adormecendo os receios que renitentemente a vinham há muito atormentando.
E teve vontade de sonhar e, de supetão, recordou Fernando Pessoa e os seus heterónimos pois sempre os entendeu como a vontade de alguém ter várias e diferentes vidas. Os poetas eram os verdadeiros “ fingidores” do devir, os fazedores da palavra redimida, da palavra saldada, da palavra revelada, da palavra validada, da palavra sonhada.
E aqui estava ela sentindo uma outra vida redimida e validada pelas palavras que lhe chegavam de Pessoa no poema “Horizonte”:
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.
Maria José Vieira de Sousa, "O Lugar, memórias de um romance"

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