quinta-feira, outubro 30

Em um lugar do cárcere

Foi ferido e mutilado pelos turcos. Foi assaltado pelos piratas e açoitado pelos mouros. Foi excomungado pelos curas. Esteve preso em Argel e em Castro del Río. Agora está preso em Sevilha.

Sentado no chão, na frente da cama de pedra, duvida. Molha a pluma no tinteiro e duvida, os olhos fixos na luz da vela, a mão útil quieta no ar.

Valerá a pena insistir? Ainda dói a resposta do rei Felipe, quando pela segunda vez lhe pediu um emprego na América: Busque por aqui no que se lhe faça mercê. Mudaram as coisas desde então, mas para pior. Antes teve, pelo menos, a esperança de uma resposta. Há tempos que o rei de negras roupas, ausente do mundo, não fala com ninguém além de seus próprios fantasmas, entre os muros do Escorial.

Miguel de Cervantes, solitário em sua cela, não escreve ao rei. Não pede nenhum cargo disponível nas Índias. Sobre a folha nua, começa a contar as desventuras de um poeta errante, fidalgo dos de lança em riste, adaga antiga, cavalgadura magra e galgo corredor.

Soam tristes ruídos no cárcere. Não os escuta.

Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"

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