segunda-feira, outubro 13

Tal qual um menino

Beija o travesseiro e finge que poderia ainda, se quisesse, que conseguiria ainda, se tentasse. Mente a si mesmo, diz que está agora exatamente como era quando menino. Sou um menino, murmura, sou um menino, repete, e, como um menino, chora sobre o travesseiro.

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Mesmo sua sombra já hesitava em segui-lo, e às vezes até se atrasava. Havia em torno dele algo que não se via, mas que se sentia, alguma coisa gélida como o abraço da morte.

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Ele e ela arrastaram o caso por anos e anos e, apesar de algumas lágrimas dele, tudo sempre pareceu mais pastelão do que drama. Estariam nesse lero-lero, ainda, se não fossem o providencial destino e a generosa geografia. Ele morreu atropelado e subiu talvez, embora não merecesse, para os países altos. Ela se casou com um filósofo batavo e foi morar nos Países Baixos. Com exceção do atropelado, que evidentemente não pode se manifestar, os dois outros protagonistas parecem estar muito felizes.

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Lembra-se de que certa madrugada, quando menino, acordou no escuro e, esgueirando-se pela casa, foi até o quintal para ver se era verdade, como lhe tinha dito um amigo, que o sol, quando nascia, dava a impressão de ser um carrossel de fogo girando. Sentou-se embaixo de um limoeiro e esperou. Era muito cedo, o sol não veio e ele dormiu. Acordou encharcado pelo temporal que desabara e, carregado para dentro pela mãe e censurado duramente por ela, foi posto de novo na cama, adormeceu e, ao acordar, às dez horas, viu um filete dourado no assoalho. Correu para abrir a janela, mas o sol não se parecia nada com um carrossel de fogo. Talvez tenha sido nessa manhã que começou a se sentir injustiçado.

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O tempo passa devagar. Talvez a noite não chegue, pensa o menino, recordando mais uma vez aquilo que lhe parece cada vez menos real: a empregada barrando sua passagem na cozinha, abaixando-se e, quase ajoelhada, beijando-lhe a boca e fazendo-lhe a pergunta que há duas horas o atormenta: “Quando seus pais saírem, você vai até o meu quarto?” Poderia se aconselhar com o seu vizinho. Um garoto de dez anos deve saber mais coisas que um de nove. Mas tem medo de que Lucas zombe dele. Se tivesse coragem de falar com o amigo, perguntaria se uma mulher pode devorar um menino. Mas receia que Lucas possa dizer que não.

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Aquela manhã trouxe, além do sol, um passarinho morto que o menininho viu ao abrir o portão. Com nojo de pegá-lo, empurrou-o com o pé para a frente da casa dos vizinhos. A ave morta passaria a ser problema deles. Depois, sentindo-se nojentamente culpado, pensou que deveria colocá-lo em uma caixa ou saco plástico e, com a ajuda de algum amigo da rua, enterrá-lo. Estava pensando em que amigo chamaria e imaginando os ritos fúnebres adequados a um pássaro, quando o gato dos vizinhos, chegando sem que ele o pressentisse, tornou desnecessário qualquer projeto. Seria um alívio pleno se, quando o gato abocanhou o passarinho, o menino não tivesse julgado ouvir um piado fraco, bem fraco.
Raul Drewnick

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