sexta-feira, março 31

Parada pra leitura

 


Sem qualidades

Nesse momento ele desejou ser um homem sem qualidades. Mas provavelmente em todas as pessoas se passa algo semelhante. No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com os seus prazeres; a sua visão do mundo, a esposa, o carácter, profissão e realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa. Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude ainda jazia à frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de possibilidades e de vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de repente algo que pode pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como certo dia, de súbito, vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante vinte anos sem a conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente. Mas muito mais estranho ainda é que a maioria das pessoas nem notam isso; adoptam o homem que apareceu nelas, cuja vida viveram; as suas experiências lhes parecem agora a expressão das próprias qualidades, e o destino lhes parece ser seu próprio mérito ou desgraça. Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas e uma mosca: aquilo colou-se nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento, e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia. E então só recordam vagamente sua juventude, quando ainda tinham certa resistência. Essa outra força puxa e gira, não quer ficar em lugar algum e desencadeia uma tempestade de desnorteados movimentos de fuga; a ironia da juventude, sua rebeldia contra o estabelecido, a disposição dos jovens para tudo o que é heroico, o sacrifício pessoal e o crime, sua fervorosa seriedade e sua inconstância — tudo isso não significa senão movimentos de fuga. No fundo, apenas expressam que nada daquilo que o jovem empreende lhe parece necessário e unívoco, nascido do seu interior, embora o manifestem como se tudo aquilo em que agora se precipitam fosse absolutamente inadiável e necessário.

Robert Musil, "O Homem Sem Qualidades"

Era uma vez

Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: "era uma vez...". Para crianças? perguntaram. Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com "era uma vez"; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era fácil de ver porquê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. Mas se eles eram teimosos, eu também. Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava pronta para o verdadeiro "era uma vez". Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu.

E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível. Eu havia escrito: "Era uma vez um pássaro, meu Deus".

Clarice Lispector

quinta-feira, março 30

Leitura monstro

 


A vida de um editor ou como nasceu a Relógio D’Água

No início dos anos 80, era jornalista e gostava de o ser. Assinava uma crónica, escrevia artigos sobre temas atuais, entrevistava quem me parecia ter coisas novas para dizer.

A tiragem de O Jornal ultrapassava mesmo em certos períodos a do Expresso e por isso tinha dezenas de milhares de leitores. Como também ia aparecendo por vezes na televisão, era frequente ver-me a ser lido nos bancos de jardins e autocarros, solicitado para divulgar um livro ou uma peça de teatro ou até para resolver algum urgente problema nacional de que nada sabia.

Tinha amigos na redação, e alcançava o topo da carreira. Gostava de escrever, mas apreciava a acção, e nada me atraía menos do que a criação de uma empresa, mesmo que de livros, com a inerente sedentarização.


No entanto, em dezembro de 1982, fundara uma pequena editora, a Relógio D’Água, com dois colegas de redação, que ia acumulando prejuízos, num período de grave crise económica. É certo que essas dificuldades iniciais eram um desafio. E é também verdade que, em comparação com a dos jornalistas, as vidas dos escritores me pareciam mais discretas e criativas, pois inventam novas realidades através da ficção em vez de se limitarem a comentar a realidade existente.

Conhecia então Hélia Correia, Rui Nunes e José Saramago, sobre cujos livros escrevera, e visitara José Gil no Sul da Córsega. Em casa de José Cardoso Pires, descobri que o seu escritório era um gabinete de curiosidades literárias, onde se podia encontrar velhos números da revista Almanaque, uma fotografia quase solene de Hemingway, a edição ilustrada da Minotauro da Divina Comédia, As I Lay Dying, de Faulkner, e uma 1ª edição de Barranco de Cegos, de Redol.

É claro que poderia ter feito como Rogério Rodrigues e Fernando Dacosta, que decidiram voltar a dedicar-se em exclusivo ao jornalismo.

Este texto sobre a criação da Relógio D’Água é uma tentativa de compreender a decisão que me levou a deixar o jornalismo. Que terá acontecido na minha vida, que ofensa terei feito aos deuses para merecer ser editor num país onde tão pouco se lê?

Nasci em Cabeceiras de Basto, aonde a minha mãe ia propositadamente ter os filhos. Ela era filha do barão de Basto, personagem ainda mais singular do que o primo, o barão que surge na novela do mesmo nome de Branquinho da Fonseca.

O meu pai era filho de um advogado. Dadas as diferenças sociais, o namoro foi contrariado, o que provocou um desenlace camiliano, um rapto consentido e uma perseguição policial.

A família acabou por se fixar em Braga, onde frequentei o Colégio S. Geraldo e depois o Liceu Sá de Miranda. Fui um leitor precoce e indisciplinado. Poucos livros havia em nossa casa, além de obras sobre a II Guerra Mundial, alguns romances de Camilo, Ferreira de Castro, Júlio Dinis e Victor Hugo e folhetins de amor. Mas tive um tio, Felisberto Ferreirinha, escritor, que viveu em Angola.

Os meus pais herdaram-lhe as estatuetas africanas e a biblioteca que incluía as edições de Anna Karenina dos Estúdios Cor e de Guerra e Paz da Inquérito. Tive ainda acesso à coleção da Seara Nova, de que ele foi colaborador, a livros sobre os bantus e a enciclopédias, onde muitas vezes me perdi nos monótonos dias de Braga em que filas negras de seminaristas desciam a Rua de Sta. Margarida e aos domingos mulheres entoavam ave-marias a caminho do Sameiro.

Aos nove anos, tive um primeiro e confuso encontro com Natasha e o príncipe André. Mas as minhas leituras prediletas eram as aventuras de Blake e Mortimer, de Mandrake ou de Flash Gordon, que saíam no Cavaleiro Andante. Devorava os livros de Salgari, ignorando que ele nunca estivera nas florestas de Mompracem e que imaginava as tempestades tropicais martelando as teclas de um piano. Nenhum episódio me voltaria a comover tanto como a expulsão de Sandokan, o Tigre da Malásia, pelos canhoeiros ingleses da sua ilha do Mompracem.

Como os meus irmãos mais velhos frequentavam já a universidade, deram-me a conhecer Camus, Sartre (e o debate entre eles), Garaudy e Fernando Namora. Na biblioteca de Braga, descobri Maugham e Hemingway, e o cinismo aforístico de Pitigrilli.

Tive uma adolescência difícil, dado o autoritarismo do meu pai, que a herança da minha mãe tornara um grande proprietário rural e urbano. De qualquer modo, Braga era uma cidade sem mar, nem rio, onde, no início dos anos 60, os movimentos das raparigas eram rigorosamente vigiados e era impossível uma adolescência feliz.

No Liceu Sá de Miranda, uma professora que parecia acabada de chegar da Grécia antiga fez-me interessar pela filosofia e Américo Barbosa pela poesia de Camões.

O paraíso eram as férias grandes, quando depois de um mês na Póvoa de Varzim, íamos para a quinta de Souto Longal em Cabeceiras, que descia em socalcos até ao rio. À hora das refeições éramos chamados por um sino. No final das férias, estando os meus pais a viajar, já seríamos uns completos selvagens, não fossem as sofisticadas primas lisboetas que traziam livros acabados de sair e discos do Paul Anka, Elvis Presley e Louis Armstrong.

Politicamente, o meu pai era conservador, amigo de vários dirigentes da União Nacional, mas, em 1958, apoiou a candidatura presidencial de Humberto Delgado. A nossa casa de Braga encheu-se de panfletos contra Salazar e foi esse o início da minha politização.

Como os meus irmãos mais velhos já ocupavam os outros “cursos sérios”, ou seja, Direito e Medicina, optei pela alínea F, com intenção de seguir Engenharia.

A minha ida para a Universidade do Porto coincidiu com a rutura com o meu pai. Como tinha sido bom aluno em Desenho, Física e Matemática, vivi de explicações e, quando fiz algumas cadeiras de Engenharia, dei também aulas em colégios. E foi no movimento estudantil que despertei para a ação política organizada contra a ditadura de Salazar.

Não me interessava o Partido Comunista, pois achava que a URSS era dominada por uma burocracia que exercia o poder contra os trabalhadores, com a agravante de o fazer em seu nome. O maoismo parecia-me uma pueril simplificação de Marx. Liguei-me a um grupo de influência trotskista, tendo como companheiros o poeta Manuel Resende, que citava Paul Éluard pelos cafés, o hoje cineasta João Botelho, que lia Lévi-Strauss e jogava futebol, e o filósofo Francisco Sardo, que nos falava de Espinosa, Kant e Hegel.

Politicamente, mantive-me sempre um heterodoxo. Além de Trotsky, apreciava Rosa Luxemburgo e Gramsci, não apenas pelas suas ideias, mas por serem excelentes escritores que partilharam um fim trágico.

Ingressei no Teatro Universitário do Porto, onde fui ator na peça Ana Kleiber, de Alfonso Sastre, que estreou no Teatro Nacional São João. Li Beckett e Brecht — este foi-me “revelado” pela peça O Círculo de Giz Caucasiano que o João Lourenço levou em digressão ao Porto no Grupo 4.

Participei nas concentrações do 1.º de Maio nos Aliados e nas manifestações estudantis contra a Guerra Colonial no final dos anos 60 e início dos 70, com o seu inevitável cortejo de cargas policiais.

Em 1972, fui suspenso do ensino superior, sob a acusação de ser um dos dirigentes da ocupação da Faculdade de Ciências, onde, para impedir a invasão da polícia, ameaçámos destruir o computador que era o orgulho da universidade, pois ocupava uma sala inteira e fora inaugurado por Américo Tomás.

Pouco depois, formou-se uma organização em Lisboa e no Porto que viria a ligar-se à IV Internacional. No Porto, intervínhamos não apenas no meio estudantil, como sucedia em Lisboa, mas também nos bairros operários. No início de 1973, fui preso quando atravessava a “Praça dos Leões”. Consegui fugir, mas tive de passar à clandestinidade, que se prolongou até abril de 1974.

Já em Lisboa, fui um dos dirigentes, com Francisco Louçã e Cabral Fernandes, que participou na legalização da LCI, de que me distanciei nos anos seguintes, enquanto ela se transformava em PSR e se unia à UDP e ao grupo de Miguel Portas para formar o Bloco de Esquerda. Nas minhas estantes, Stendhal, Pessoa, Tolstoi, Rimbaud, Alexandre O’Neill passaram a ocupar lugares antes reservados a Marx, Trotsky ou Karl Korsch.

Pensava já em concluir um curso que nunca me entusiasmara, quando, através de José Cardoso Pires, me surgiu a oportunidade de colaborar na revista espanhola Triunfo e, depois, de ingressar no semanário Extra, onde colaboravam José Saramago e Eduardo Lourenço. Era fascinante a sensação de ver o que escrevíamos multiplicado em poucos dias por milhares de exemplares.

Um ano depois estava no Diário de Lisboa, que tinha como diretor-adjunto o historiador Fernando Piteira Santos. O chefe de redação era Fernando Assis Pacheco. Nas secretárias próximas, o exuberante Luís de Sttau Monteiro parecia estar sempre de partida para Paris, e a muito discreta Maria Judite de Carvalho desperdiçava talento traduzindo artigos de Le Monde.

Em 1980, aceitei um convite para o semanário O Jornal, para onde entretanto Assis Pacheco se mudara. Colaborei também no Jornal de Letras de José Carlos Vasconcelos (que acumulava com a direção de O Jornal) e que teve Assis Pacheco e António Mega Ferreira a dirigir a redação em dois dos seus períodos mais inovadores.

A minha imaginação jornalística foi-se esgotando ao longo de alguns anos de entrevistas, reportagens, artigos e, a dada altura, de uma crónica semanal. Fiz ainda uma tentativa improvisada de jornalismo em zonas de conflito, viajando em reportagem para o Kosovo, então em revolta contra os sérvios, e para a Síria, envolvida na guerra civil libanesa.

Num caso, acabei com a reportagem feita mas as fotos apreendidas; no outro, retido no aeroporto de Alepo, onde se desconhecia a existência de Portugal (de facto, não figurava nos mapas militares que me mostraram), impedido de chegar a Beirute e com ordem de expulsão, quando aguardava uma entrevista com o ministro dos Negócios Estrangeiros sírio.

Em 1982, resolvi juntar-me a dois colegas, Rogério Rodrigues e Fernando Dacosta, para fundar uma editora. As minhas referências eram a Hogarth Press de Virginia e Leonard Woolf, a Adelphi e a Faber & Faber, a Portugália e a Ulisseia; a Afrodite de Ribeiro de Mello e a & etc de Vítor Silva Tavares eram exemplos pelo seu grafismo inovador.

Faltava-nos uma ideia clara do espaço que iríamos ocupar, o que é essencial para uma editora. Mas sobravam-nos pretensões. Além de publicar os nossos originais, a Relógio D’Água iria subverter a vida cultural portuguesa. Não é verdade que os grandes autores portugueses começaram em pequenas editoras (Pessoa na Monteiro & Co., Lobo Antunes na Vega, Saramago na Moraes, Agustina na Guimarães)?

Juntaram-se a nós Fernando Paulouro, que dirigia o Jornal do Fundão, onde os livros seriam impressos, um gráfico e um gestor. Começámos com O Número dos Vivos, de Hélia Correia, Quem da Pátria ‘Sai a Si Mesmo Escapa?’, de Rui Nunes, A Casa Suspensa, de Maria Ondina Braga, Adeus, Princesa, de Clara Pinto Correia, O Spleen de Paris, de Baudelaire, os Poemas de Hölderlin, O Amor Incerto, de Elisabeth Badinter e O Livro por Vir, de Blanchot, obras de Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Lillian Hellman, Thomas Bernhard e Marguerite Yourcenar. A partir de 1983, as capas foram feitas por João Botelho e Luís Miguel Castro, e algum tempo depois por Jorge Colombo.

Passados dois anos de dificuldades, a equipa inicial dispersou. Tinha agora uma ideia mais nítida do editor que desejava ser. Queria que o catálogo da Relógio D’Água pudesse ser a expressão individual dos meus gostos e de quem viesse a continuar o projeto, o que significava que não poderia editar mais de dez livros por mês (só assim poderia manter com os escritores relações de simpatia e até de amizade e acompanhar o percurso das suas obras).

E não queria ser apenas o editor de livros que os leitores esperam, seguindo as tendências de mercado, conhecidas pelos tops de vendas ou empresas de marketing. Pretendia entusiasmá-los com o que me parecia mais criativo e autêntico em literatura e ensaio. Sabia que qualquer editor se pode enganar, que só a ignorância do papel do acaso nos faz pensar que merecemos todos os êxitos, que um escritor que parecia uma promessa pode não confirmar as expectativas, e que às épocas de criação fecunda se sucedem as estéreis.

Tive de vender a quinta onde nasci a um irmão para pagar as dívidas e relançar a editora. Ao fazê-lo, sabia que não poderia falhar, que a Relógio D’Água teria de ser o projeto da minha vida.

A Relógio D’Água tem hoje no seu catálogo mais de dois mil títulos, nenhum deles escolhido apenas a pensar nas vendas. Inclui a maior parte dos clássicos ingleses, russos, franceses, alemães e até alguns latinos; uma coleção de ficção traduzida com centenas de romances e contos; uma outra de poesia reconhecida pela qualidade; e ensaios que foram marcantes no pensamento.

Entre os autores portugueses contemporâneos, além dos já referidos, estão Agustina, Cardoso Pires, José Gil, António Barreto, Maria Filomena Mónica, e, entre os mais novos, Gonçalo M. Tavares, Ana Teresa Pereira, Ana Margarida de Carvalho, Djaimilia Pereira de Almeida, Alexandre Andrade, H. G. Cancela e Norberto Morais.

E, no entanto, o projeto permanece inacabado, pois, tal como a água que transportamos nas mãos em concha, várias intenções foram-se escoando entre os dedos da sua realização e aguardam um novo impulso. 

Paz e guerra

Eu estava atrasado para a guerra; tive de tomar um táxi. Uma contrariedade: com o recente aumento do preço da corrida, aquilo era uma despesa imprevista e inoportuna, um abalo em meu orçamento. Contudo, cheguei justo a tempo de marcar o ponto, evitando assim transtornos maiores. A fila junto ao relógio de ponto era grande: eu não era o único retardatário. Ali estava o Walter, meu colega de trincheira, resmungando: também ele tivera de tomar um táxi. Éramos vizinhos e tínhamos entrado na guerra quase ao mesmo tempo. Na segunda quinta-feira de cada mês tomávamos o ônibus na esquina de nossa rua, para participar nas ações bélicas.

Estou farto deste negócio, disse Walter. Eu também, respondi. Suspirando, batemos o ponto e nos dirigimos ao barracão da intendência, onde estava instalado, provisoriamente (mas isso há mais de quinze anos), o vestiário. Atrasados, hoje? — perguntou o rapazinho que tomava conta do vestiário. Não respondemos. Recebemos as chaves dos nossos armários. Rapidamente trocamos de roupa, vestindo nossos velhos uniformes de campanha; apanhamos os fuzis e a munição (vinte cartuchos) e nos dirigimos para a linha de combate.

O conflito bélico tinha como cenário um descampado nos arredores da cidade. O campo de batalha estava cercado por uma cerca de arame farpado com tabuletas: Guerra, afaste-se. Advertência desnecessária: pouca gente vinha ali, àquele local de bucólicas chácaras e sítios.

Nós, os soldados, ocupávamos uma trincheira de cerca de dois quilômetros de extensão. O inimigo, que nunca víamos, estava a cerca de um quilômetro, também entrincheirado. O solo, entre as duas trincheiras, estava juncado de destroços: blindados e tanques destruídos misturavam-se a ossadas de cavalos, recordando um tempo em que a luta havia sido feroz. Agora o conflito tinha entrado em sua fase estável — de manutenção, nas palavras do nosso comandante. Combates não mais ocorriam. A única recomendação que nos faziam era não sair da trincheira. Um problema, para mim: meu filho menor queria uma cápsula vazia de obus, que eu não tinha como conseguir. O garoto reclamava; eu nada podia fazer.

Descemos para a trincheira, Walter e eu. O lugar não era de todo desconfortável. Tínhamos mesas, cadeiras, um pequeno fogão, utensílios de cozinha, sem falar num aparelho de som e uma TV portátil. Propus a Walter um joguinho de cartas. Depois, ele disse. Examinava seu fuzil com testa franzida e ar de desgosto: esta porcaria não funciona mais, sentenciou. Ora, eu disse, tem mais de quinze anos, já deu o que tinha que dar. E ofereci-lhe minha arma: não pretendia disparar tiro nenhum. Naquele momento ouviu-se um estampido e o silvo de uma bala sobre nossas cabeças. Essa passou perto, eu disse. Esses idiotas, resmungou Walter, um dia vão acabar ferindo alguém. Pegou minha arma, pôs-se de pé e deu dois tiros para o ar. Que lhes sirva de advertência, bradou, e tornou a se sentar. Um servente apareceu, com um telefone sem fio: sua esposa, seu Walter. Mas que diabo, exclamou ele, nem aqui essa mulher me deixa em paz. Pegou o telefone:

– Alô! Sim, sou eu. Estou bem. Claro que estou bem.

Não, não me aconteceu nada, já te disse que estou bem. Eu sei que você fica nervosa, mas não há motivo. Está tudo bem, estou bem abrigado, não está chovendo. Ouviu? Tudo bem. Não precisa se desculpar. Eu compreendo. Um beijo.

Que mulher chata, disse, devolvendo o telefone ao servente. Eu não disse nada. Também tinha um problema com minha mulher, só que diferente: ela não acreditava que estivéssemos em guerra. Suspeitava que eu passava o dia num motel. Eu gostaria de lhe explicar que guerra era aquela, mas a verdade é que não sabia. Ninguém sabia. Era uma coisa muito confusa; tanto que havia uma comissão estudando a situação do conflito. O presidente dessa comissão às vezes vinha nos visitar e se queixava do automóvel que tinham lhe dado para as viagens de inspeção: uma lata velha, segundo ele. De fato, era um carro bem antigo. Não o trocavam por medida de economia. A manhã transcorreu serena; um dos nossos deu um tiro, os do outro lado responderam, e foi tudo. Ao meio-dia serviram o almoço. Salada verde, carne assada, arroz à grega; de sobremesa um pudim insosso. Isto aqui está cada vez pior, queixou-se Walter. O garçom perguntou-lhe se ele achava que estava num restaurante ou o quê. Walter não respondeu.

Deitamos para a sesta e dormimos tranquilamente. Quando acordamos, estava anoitecendo. Acho que vou indo, eu disse a Walter. Ele não podia me acompanhar: estava de plantão naquela noite. Fui ao vestiário, troquei de roupa. Como foi a guerra, perguntou o rapazinho saliente. Bem, respondi, muito bem. Passei na administração, recebi meu cheque de um funcionário de cara azeda, assinei as três vias de um recibo. E cheguei no ponto de ônibus bem na hora.

Em casa, minha mulher me esperava em sua malha de ginástica. Estou pronta, disse, seca. Fui até o quarto, vesti o abrigo esportivo. Dirigimo-nos ao estúdio, montamos nas bicicletas ergométricas. Onde estávamos, mesmo? — perguntei. Você nunca sabe, respondeu, num tom de censura. Apanhou o mapa, estudou-o um instante e disse:

– Bisceglie, na costa do Adriático.

Pusemo-nos a pedalar furiosamente; duas horas depois, quando paramos, estávamos perto de Molfetta, ainda na costa adriática. Contamos fazer a Itália em um ano. Depois, veremos. Eu não gosto de planos a longo prazo; por causa da guerra, naturalmente, mas sobretudo porque a incógnita do futuro é para mim motivo de permanente excitação.
Moacyr Scliar

quarta-feira, março 29

Compulsivo volta a casa

 


Um Poeta

Um poeta
É um ser único
Em montes de exemplares
Que só pensa em versos.
E só escreve em música
Sobre assuntos diversos
Uns vermelhos outros verdes
Mas sempre magníficos

Boris Vian, "Não Queria Patear"

A verdade

Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo. O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade! E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado. O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a ver­dade!!

E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não. Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!

Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me pas­sou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta con­fessei a verdade:

Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de­-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...
Almada Negreiros, "A Invenção do Dia Claro"

Gente demais

Ah, vida penosa! Tudo tão difícil, tão sofrido, tão sem jeito. A discórdia, as disputas, as mentiras. O grevismo. Pensando bem, quem sabe os males do mundo não decorrem do fato de, neste mesmo mundo, estar havendo gente demais? Já não se morre tanto como antigamente. A perspectiva de vida das pessoas subiu de modo incrível. Na época da nossa independência, o tempo médio de vida dos brasileiros talvez não passasse dos 40. Hoje alcançou os 70 e, nas áreas mais adiantadas, já estão falando em 80. A medicina evoluiu tanto que, neste final de século, andam esquecidas quase todas as grandes doenças que outrora dizimavam populações. Ninguém morre mais de varíola, de bubônica, de tifo, de febre amarela. O impaludismo acaba onde chega o mata-mosquito. Quase não se morre mais de parto, de apendicite, de hérnia. Fora das faixas de grande pobreza, baixam muito os índices de mortalidade infantil. A tuberculose, a grande Peste Branca, ficou para trás, contemporânea da Dama das Camélias. Até lepra hoje se cura. Os males da velhice são combatidos com êxito e o milagre da ponte de safena já se faz nos hospitais públicos, deixando de ser privilégio dos ricos.

E quando a ciência se mostra ainda impotente, como acontece com o câncer e com a Aids, os sábios enfrentam com tal gana o desafio que, com certeza, em breve o vencerão.


E agora eu pergunto: estará mesmo dentro dos planos de Deus tanta gente pululando na fase da terra? Mais de um bilhão de chineses, por exemplo, estriam previstos no Gênese, quando o Senhor contemplou a sua criação e achou que tudo estava bem? Não haverá chineses demais, e russos, e americanos, e indianos – e brasileiros?

Os criadores de gado e de outros bichos sabem que não se pode ter rebanho acima das possibilidades de pasto. Passando certo limite, tem que vender, mandar para o corte, embora com uma dor no coração. Então nós, que somos o rebanho do Senhor, não teremos excedido as possibilidades do nosso sustento, não careceremos de ser reajustados? Como Deus não dendê corpos (o próprio Diabo só se interessa por almas), Ele então suscita epidemias, terremotos, enchentes, revoluções, guerras. E como tem conosco o compromisso de nos permitir o livre-arbítrio, deixa que a podagem a façamos nós mesmos – e por isso é ela tão imperfeita. Guerras por exemplo: são um método seguro de fazer com que minguem populações. Mas em vez de se recrutarem os inúteis, os descartáveis, os velhos, os estropiados, os frágeis – não: convoca-se para a guerra a fina flor da população, os que estão no esplendor da juventude. Idade entre 18 e 25 anos, boa altura, boas proporções, saúde perfeita. Nem os míopes são aceitos. Dentes impecáveis, como se nas guerras de hoje ainda se brigasse às dentadas. Exemplares perfeitos, hígidos – pra quê? Para fazer deles carne de canhão. Parece que as juntas do recrutamento militar não têm ideia da crueza da guerra; só cuidam de bonitos soldadinhos em parada. Por mim, em caso de guerra, afora os especialistas indispensáveis (que, no caso, precisam é de bons cérebros, não de higidez física), pegaria para carne de canhão somente os dispensáveis, os que são um peso para si e para os outros e – por que não? – os velhos como nós. Passou dos 70, está automaticamente alistado. O prejuízo não seria tão grande, nós já estamos mesmo na hora do ajuste de contas. Nos romances de cavalaria há sempre a figura do velho herói que, somando as cansadas forças ao imperecível valor, ganha a vitória com o seu sacrifício. Lembram-se da última campanha do Cid Campeador? Até depois de morto venceu o combate, correndo à frente no seu corcel de guerra, atado numa grade que o sustinha à sela, preso na mão esquerda o pendão de batalha. Pois há muito velho por aí, ansioso por acabar em glória, numa façanha assim.

E então ficariam só os moços, os belos, os saudáveis, para repovoar a terra.
Rachel de Queiroz

terça-feira, março 28

Leitura embalada

 


Bibliotecas

A biblioteca não é um local de passagem, é um destino. Tem a beleza do silêncio, da contemplação, da interrupção da pressa e da voragem da miríade de afazeres e apelos quotidianos, está fora do tempo, ou melhor, tem o seu próprio tempo e o seu próprio espaço: quando entramos numa biblioteca e vemos estantes e cadeiras e mesas, é porque ainda não estamos verdadeiramente na biblioteca, assim como quando olhamos para um livro e vemos letras e papel é porque ainda não o estamos a ler. Foi numa biblioteca que visitei pela primeira vez a China, pela mão de Hergé, foi numa biblioteca que cavalguei pelas estepes com Tarass Bulba e os cossacos de Zaporígia, junto às margens do Dnieper, foi também numa biblioteca que conheci o padre Brown.

Essa dimensão extraordinária de uma biblioteca, ao criar um espaço-tempo próprio onde é possível penetrar em diversos universos paralelos, ao interromper o frenesim da vida e — mais importante ainda —, ao quebrar a rotina e os comportamentos mecânicos, encarna e reclama para si uma dimensão sagrada, sem no entanto deixar de ser secular: “Para lá da educação artística cultural dos mais jovens, a biblioteca ou a mediateca podia ser o centro dessa transmissão cultural que hoje faz falta a muitas pessoas que levam uma vida conturbada (e por transmissão entendo aqui, como terão compreendido, não só uma transmissão ‘vertical’, intergeracional, mas múltiplas formas de intercâmbio ‘horizontal’). Ser um lugar onde se pode pensar de maneira transversal, nesta época em que os saberes, as funções, os espaços, a gerações, os tempos da vida estão compartimentados, fragmentados, e em que as artes, pelo contrário, transpõem cada vez mais as fronteiras. Onde nos podemos apropriar das tecnologias de ponta e das lendas antigas, dos escritos, das imagens ou das músicas da regiões próximas como de terras distantes. Onde tanto se dá importância à luz como à sombra, às experiências mais íntimas como a momentos compartilhados” (Michèle Petit, Ler o mundo, 2020).

A biblioteca é também um lar ou, pelo menos, um refúgio: “De modo explícito ou intuitivo, bibliotecários, professores, psicólogos estão bem cientes disto, usando-o com crianças, adolescentes ou adultos exilados, desalojados, ou cujo quadro de vida foi destruído ou alterado, como sucedeu por exemplo na Colômbia, na periferia de Medellín, onde alguns bibliotecários desenvolveram um programa chamado O refúgio dos contos, quando uma parte da população se viu obrigada a deixar as suas casas devido aos combates entre grupos armados.

»De colete à prova de bala, Consuelo Marín ia assim ler em voz alta àqueles que estavam agrupados num liceu do bairro. Uma manhã, ouviu tiros a aproximar-se e quis interromper a leitura, mas o jovens ouvintes exigiram ouvir o fim da história: ‘Estes meninos e meninas que passaram as noites a chorar pelos corredores do liceu como medo do escuro da noite, como uma segunda pele, pele da alma que não podiam tirar, não queriam perder o fim de um conto’“ (Ibidem).

A beleza deste trecho evidencia o poder encantatório de uma história, mostrando que a necessidade de as terminar é tão poderosa que não teme a morte, pois a vida que desejamos viver é a vida com sentido, que preenche todo o potencial possível e sugerido. Isto encerra também aquilo a que chamo “efeito Xerazade”, o adiar da morte até que haja uma consumação e uma plenitude, o necessário final que dá sentido à história, que dá sentido à vida.

A morte também parece ser sensível à narrativa, também ela interrompe os seus afazeres, como qualquer leitor, fascinada por um bom conto ou ideia. Por esse motivo, os leitores vivem, literalmente, mais do que quem não lê (vale a pena conferir o estudo A chapter a day: Association of book reading with longevity, onde se lê: “Book readers experienced a 20% reduction in risk of mortality over the 12 years of follow up compared to non-book readers”.

Na Colômbia, durante o período mais conturbado do narcotráfico, em especial nas últimas décadas do século passado, as bibliotecas eram mais seguras do que qualquer outro lugar. Disse-me um bibliotecário de Medellín: “Lembro-me de terem atacado igrejas para matar quem se refugiou nelas, mas nunca atacaram bibliotecas.”

Série Vaga-Lume: os 50 anos da coleção que estimulou prazer da leitura em milhões de jovens

São Paulo, novembro de 1976. Marcos Rey (1925-1999) estava em um supermercado, acompanhado da mulher, Palma, quando, na hora de pagar as compras, flagrou trechos de uma conversa no caixa ao lado.

“O que você está achando dessa novela que acabou de estrear?”, perguntou uma moça, referindo-se à história do trambiqueiro que se passava por milionário para dar um golpe.

O autor de Tchan, a Grande Sacada, embora estivesse de costas, conseguiu ouvir a resposta da balconista: “É boa. Mas é muito lenta!”.

Ao chegar em casa, o autor da tal novela “boa, mas muito lenta” começou a mexer nos capítulos já escritos. Cortou uma cena aqui, mudou um diálogo ali. Quinze dias depois, o telefone de sua casa tocou.

Era Roberto Talma (1949-2015), diretor de teledramaturgia da Tupi. “Pô, Marcos, o que é que houve? Que melhorada você deu na novela!”, elogiou. “A crítica daquela balconista salvou meu emprego!”, brincou o autor em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo de 4 de setembro de 1983.

Nascido Edmundo Donato, Marcos Rey ficou famoso como escritor de livros adultos, como O Enterro da Cafetina (1967) e Memórias de Um Gigolô (1968), e roteirista de novelas e seriados de TV, como A Moreninha (1975) e O Sítio do Picapau Amarelo (1977).

Mas, no começo dos anos 1980, recebeu um convite que mudaria sua carreira: escrever romances infantojuvenis para a Vaga-Lume.

“Houve muita resistência por parte dele”, conta a editora Carmen Lúcia Campos, que trabalhou por mais de 20 anos na Ática, entre a década de 1980 e o início dos anos 2000.

“Nunca tinha escrito para o público juvenil e seus temas adultos eram proibidos para menores”.

Seu primeiro livro na coleção foi O Mistério do Cinco Estrelas (1981). Em apenas 15 dias, esgotou a tiragem de 200 mil exemplares. Logo, vieram outros: O Rapto do Garoto Dourado (1982), Um Cadáver Ouve Rádio (1983), Sozinha no Mundo (1984)...

Não por acaso, é o recordista em títulos da Vaga-Lume: 16, sendo um deles, O Menino que Adivinhava (2000), pela Vaga-Lume Júnior, selo derivado surgido em 1999. Só O Mistério do Cinco Estrelas, segundo estimativa do editor Jiro Takahashi, teria vendido entre dois e três milhões de exemplares.

“O autor precisava cativar seu público até a página sete”, explica ele, um dos idealizadores do projeto. “Se a história demorasse a decolar, as chances de o leitor se cansar dela eram grandes”.

Marcos Rey foi o primeiro autor especialmente convidado para escrever para a coleção. Até então, a Vaga-Lume só publicava títulos que já tinham sido lançados por outras editoras.

É o caso de O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida (1910-2005). Um dos best-sellers da coleção, foi publicado originalmente pela revista O Cruzeiro, entre 10 de outubro e 26 de dezembro de 1953, e adaptado para o cinema em 2016.

“A Vaga-Lume seguia uma fórmula imbatível de sucesso: livros escritos para o leitor jovem, com personagens jovens, se deparando com questões típicas da juventude. Textos leves, com muita aventura, mistério e humor”, sintetiza Carmen Campos.

“A coleção fez gerações de jovens descobrirem o prazer da leitura.”

Luiz Puntel, autor de sete títulos na coleção,
 teve "Meninos Sem Pátria" proibido por um colégio do Rio

O título que inaugurou a Vaga-Lume, há 50 anos, foi A Ilha Perdida (1973), de Maria José Dupré (1898-1984). Publicada pela Brasiliense em 1944, é a recordista da coleção: 5 milhões de exemplares.

Na pesquisa que fez para seu doutorado, À Sombra da Vaga-Lume (2007), com mais de 200 alunos do Curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Cátia Toledo Mendonça constatou que A Ilha Perdida é o título mais amado — ou lembrado — da coleção.

“Os textos da Vaga-Lume encantam gerações há 50 anos. Mesmo assim, não eram estudados pela academia. Há preconceito em relação à literatura de entretenimento”, admite a doutora em Letras.

“Vários entrevistados declararam ter começado a gostar de ler por causa da Vaga-Lume”.

No mesmo ano de A Ilha Perdida, a Ática lançou mais três volumes: Cabra das Rocas, de Homero Homem (1921-1991); Coração de Onça, de Ofélia (1902-1986) e Narbal Fontes (1899-1960); e Éramos Seis, também de Maria José Dupré.

Alguns livros, como Éramos Seis, e O Feijão e O Sonho (1981), de Orígenes Lessa (1903-1986), fizeram tanto sucesso que ganharam adaptações para a TV.

Só Éramos Seis já foi adaptada cinco vezes: em 1958, pela Record; em 1967 e 1977, pela Tupi; em 1994, pelo SBT; e em 2019, pela TV Globo.

Cada volume tinha em torno de 120 páginas e trazia um suplemento de trabalho com proposta lúdica. Em geral, a Ática lançava quatro títulos por ano.

Mas houve época em que, dependendo da demanda, foram lançados só dois ou até cinco. O nome do mascote da coleção, Luminoso, foi escolhido através de concurso. O vencedor foi um funcionário da editora que trabalhava no Rio de Janeiro.

Editor da Vaga-Lume entre 1973 e 1984, Takahashi pedia aos autores uma sinopse de três páginas sobre a história que gostariam de contar.

Em seguida, enviava aquele resumo, sem mencionar o nome do autor, para 3.000 alunos das redes pública e particular do Rio, São Paulo e Minas. Sob a orientação de professores, os estudantes avaliavam desde a trama até os personagens. Em alguns casos, davam notas. Em outros, sugeriam ajustes.

Foi assim, conta Takahashi, que Marcos Rey incluiu um personagem cadeirante em O Mistério do Cinco Estrelas e mudou o gênero da protagonista de Sozinha no Mundo. “Se os alunos liam rápido demais a sinopse, era sinal de que o livro era bom. Se demoravam, hummm… algo estava errado”, raciocina Takahashi.

“Um livro é bom quando termina a aula, começa o recreio e os alunos não param de falar dele.”

Ao todo, a Vaga-Lume é composta de 106 livros. O mais recente é Os Marcianos (2021), de Luiz Antônio Aguiar.

“Como a coleção é voltada para o público jovem, as histórias têm que ter muita aventura”, ensina Aguiar, que já tinha escrito Operação Nova York (2000) para a série. “Mas tem que ser aventura mesmo, com boas histórias, daquelas que seduzem o leitor, e bons personagens”.

No auge da coleção, ou seja, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, cada título vendia, em média, 120 mil exemplares. Na pior das hipóteses, emplacava 40 mil.

“Os livros vendiam muito porque o preço era baixo. E os preços eram baixos porque os livros vendiam muito”, explica Takahashi. À época, cada livro da coleção não podia custar mais do que um exemplar de uma revista semanal, como Veja ou IstoÉ.

Com o sucesso de vendas, a Ática lançou, em 1976, outra coleção infantojuvenil: a Para Gostar de Ler, que reunia cronistas como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Rubem Braga (1913-1990), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Fernando Sabino (1923-2004). E, em 1999, o selo Vaga-Lume Júnior, com 25 títulos.

Aos poucos, novos autores foram convidados a integrar a coleção. Mineiro de Guaxupé, Luiz Puntel foi um deles. Quando morava em Ribeirão Preto (SP), se comunicava, por carta, com Marcos Rey, na capital paulista.

“Apesar da deformação nos dedos, era um furacão para escrever”, afirma Puntel, referindo-se à hanseníase que o colega contraíra aos 10 anos de idade. “Escrevia maravilhosamente bem. Morria de inveja dele”, ri.

Para a Vaga-Lume, Puntel escreveu sete livros, de Deus me Livre! (1984) a O Grito do Hip-Hop (2005). Desses sete, considera dois imbatíveis: Açúcar Amargo (1986), sobre boias-frias, e Meninos Sem Pátria (1988), sobre exilados políticos. “Nunca sofri censura da Ática. Sofri do Santo Agostinho, no Rio”, lamenta Puntel.

Em 2018, a direção suspendeu a leitura de Meninos Sem Pátria a pedido dos pais de alguns alunos do sexto ano. Ao colégio, alegaram que o livro “doutrina crianças com ideologia comunista”. A história foi livremente inspirada na vida do jornalista mineiro José Maria Rabelo (1928-2021). Depois da repercussão, a direção da escola evitou comentou o assunto.

“Escrevia meus livros como se fossem roteiros de filmes de ação, com capítulos curtos e diálogos ágeis.”

Logo, colégios do Brasil inteiro começaram a convidar os autores da Vaga-Lume para participar de debates com seus alunos.

Um dos mais requisitados foi Raul Drewnick, autor de oito títulos: de Um Inimigo em Cada Esquina (1994) a A Noite dos Quatro Furacões (2005). Só Marcos Rey publicou mais livros pela Vaga-Lume do que ele.

Os dois, aliás, trabalharam juntos na revista Veja. Foi Marcos Rey que, em 1992, indicou o nome de Drewnick aos editores Carmen Lúcia Campos e Fernando Paixão.

“De dez em dez páginas, nos reuníamos e íamos tocando o projeto, discutindo forma e conteúdo”, recorda o autor.

A princípio, Drewnick recusava todo e qualquer convite para visitar escolas. “Dizia não ter jeito com criança”, entrega Carmen Campos. Até que, um dia, se rendeu e não parou mais.

Não bastasse ter inspiração para novos livros, ainda aprendia o linguajar dos jovens. Num dos colégios, ouviu de um aluno: “O senhor é celebridade?”. Rindo, respondeu que não, de forma alguma.

Mas outro aluno rebateu: “É claro que é! Tem até jatinho”. “Um típico caso em que a imaginação do leitor é muito mais rica que a do mais criativo dos escritores”, ele cai na risada.

Noutra ocasião, Marcos Rey conheceu um aluno do Colégio Magno que se apresentou como filho do editor da Global, Luiz Alves Júnior. Anos depois, os dois voltaram a se encontrar na sede da editora, em São Paulo.

“Não gostava de apertar a mão das pessoas porque tinha os dedos comprometidos. Apesar disso, escrevia muito rápido. Geralmente, à noite e, quase sempre, acompanhado de um copo de uísque”, relata Richard Alves, diretor geral da Global, que relançou 14 dos 16 títulos publicados por Marcos Rey na Vaga-Lume.

A Ática não recebia apenas convites para seus autores visitarem escolas. Recebia também cartas. Centenas delas.

“Sempre fiz questão de responder uma por uma”, garante Sersi Bardari, autor de A Maldição do Faraó (1991), Ameaça nas Trilhas do Tarô (1992) e O Segredo dos Sinais Mágicos (1993).

“Era um tempo sem internet, e-mail e redes sociais. Dava prazer receber e responder a essas cartas. Levá-las ao correio era um dos meus programas favoritos”.

Muitos alunos cresceram e viraram escritores. E hoje se orgulham de fazer parte da coleção que despertou neles o prazer da leitura. É o caso do jornalista e escritor Marcelo Duarte, muito conehcido pela série Guia dos Curiosos.

Autor de cinco títulos, de Jogo Sujo (1997) a Meu Outro Eu (2003), tinha 11 anos quando leu O Caso da Borboleta Atíria (1975), de Lúcia Machado de Almeida. Gostou tanto do livro — “O desfecho é maravilhoso!” — que emendou outros suspenses da autora.

“Eram razoavelmente baratos e fáceis de ler”, elogia. “Li uns para a escola e outros por pura diversão”.

Quando a Ática lançou O Mistério do Cinco Estrelas, Duarte ficou encantado. Decidiu que, quando crescesse, queria escrever igual ao Marcos Rey.

“Tinha um sonho, quase uma obsessão, de, um dia, lançar algo pela coleção que tanta importância teve na minha vida”, explica.

Mas, quando entregou a sinopse de Jogo Sujo, recebeu um tsunami de críticas de alunos e docentes. Alguns reclamaram de personagens mal construídos. Outros, de tramas mal amarradas.

“Fiquei chateado. Achei que não fosse conseguir. Mas reescrevi a história e deu certo”, orgulha-se.

Assim que Jogo Sujo saiu da gráfica, Carmen Lúcia mandou um exemplar para Marcos Rey. Em retribuição, o veterano enviou um exemplar autografado de Gincana da Morte (1997) e parabenizou o novato por ingressar no time da Vaga-Lume.

“Muitos tentaram, mas poucos conseguiram”, dizia a dedicatória. “Nunca fiquei tão emocionado. Guardo esse livro até hoje como troféu”, emociona-se Duarte.

Quem também fala com carinho da Vaga-Lume é Marçal Aquino, autor de quatro títulos, entre eles A Turma da Rua Quinze (1989) a O Primeiro Amor e Outros Perigos (1996).

No finalzinho da década de 1980, ele trabalhava como redator do Jornal da Tarde de São Paulo quando seu chefe, o também escritor Fernando Portela, perguntou se ele não estaria interessado em escrever um livro infantojuvenil para a coleção.

Na Ática, Aquino deu de cara com dois problemas: a sinopse (“Sempre gostei de escrever sem saber muito sobre o livro. É o prazer maior da coisa”) e o prazo (“Um colega estava enfrentando um ‘bloqueio criativo’ e eu teria três meses para entregar o livro”). Mesmo assim, topou o desafio e entregou o manuscrito no tempo estipulado.

Dos quatro livros que escreveu, seu preferido é O Jogo do Camaleão (1992). Como a trama fazia menção ao tráfico e ao consumo de drogas, sofreu restrições.

“Não vi problema em dar uma ‘amansada’ no texto porque não tirava em nada o impacto da narrativa”, avalia. “É a melhor trama que criei para a Vaga-Lume, com direito a um plot-twist radical que nenhum leitor consegue desvendar”, orgulha-se.

O escritor, desenhista e roteirista Rubens Francisco Lucchetti, o R. F. Lucchetti, também precisou fazer ajustes no único texto que lançou pela Vaga-Lume: O Fantasma do Tio William (1994).

Antes de ser lançado pela Ática, o livro foi publicado pela Cedibra, em 1974, e relançado pela Melhoramentos, em 1982.

“Quando foi lançada, a história se passava na Inglaterra e se destinava ao público adulto. Depois, tive que adaptá-la para o Brasil. E, mais adiante, torná-la mais infantil”, relata o autor de 93 anos.

“De todas, prefiro a versão adulta”. Uma curiosidade: Lucchetti criou a história, por volta de 1945, para distrair uma de suas irmãs, Célia, que estava doente, com câncer.

A Vaga-Lume prosseguiu até 2008, quando foi lançado O Mestre dos Games, de Afonso Machado. Doze anos depois, a Somos Educação retomou a coleção, com o lançamento de Ponha-se no Seu Lugar (2020), de Ana Pacheco.

“Quando enviei os originais para a editora, não imaginava que meu livro seria lançado pela Vaga-Lume. Soube depois que aceitaram e fiquei feliz da vida”, confessa a autora.

Baseado no conto O Nariz (1836), de Nikolai Gogol (1809-1852), conta a história de um estudante de classe alta que, certa manhã, acorda sem nariz.

“O mote é absurdo, mas as consequências são reais. Dá oportunidade para alunos e professores debaterem temas atuais, como padrão de beleza, classe social e cirurgia plástica.”

A Somos Educação disponibiliza 68 títulos em seu catálogo, sendo 13 da Vaga-Lume Júnior. E não deve parar por aí.

“Futuramente, pretendemos lançar novos títulos. Queremos manter a coleção viva e dar espaço a mais autores”, adianta Laura Vecchioli do Prado, coordenadora da Somos Educação.

Jiro Takahashi não cabe em si de orgulho por ter ajudado a criar uma série editorial tão longeva e bem-sucedida. Mas lamenta o fato de não ter pensado lá atrás no licenciamento de produtos, como o boneco do Luminoso, o mascote da coleção, por exemplo.

Ou, ainda, na adaptação de filmes, peças e jogos baseados nos livros da série. “Hoje em dia, você encontra de tudo: de álbum de figurinha do D.P.A. (Detetives do Prédio Azul) a parque temático do Harry Potter!”, espanta-se.

“Muitos adultos vêm falar comigo. Uns dizem: ‘Ó, meu vaga-lume favorito é O Escaravelho do Diabo’. É uma coleção que ajudou a formar leitores.”

segunda-feira, março 27

Leitura com agasalho

 

Jean Martin



Cosmogonia

Como o calor está muito forte, entro numa igreja e me ponho a rezar. Com um picolé na mão esquerda, ensaio com a direita um sinal da cruz de pura gentileza e logo caio em êxtase diante do silêncio do templo, como sempre me ocorre em circunstâncias semelhantes.

Nenhum padre à vista, graças a Deus, e apenas uma velha discreta num dos bancos da frente, com o seu rosário entre as mãos. Dá-me vontade de pedir-lhe o rosário emprestado apenas por uma hora, mas o picolé na mão esquerda me lembra que eu não poderia manejá-lo à vontade, e desisto do intento. De resto, o verdadeiro misticismo não depende de pequeninas bolas de osso enfiadas num pedaço de barbante — e eu felizmente sou um místico verdadeiro, embora sem Deus. Portanto, Ave Maria, cheia de graça...


As palavras, aliás, também são desnecessárias, como o provam os mudos de nascença, e ao pensar nas palavras estarei prejudicando o mistério da minha união perfeita com as forças absolutas do nada — ou o nirvana, como dizia o meu professor de budismo. O certo mesmo seria eu me despir até da roupa do corpo, cueca inclusive, e colocar-me nu como nasci diante do Supremo Artífice do Universo, ou que outro nome tenha, para receber-lhe as graças em sua plenitude, sem interferência de qualquer corpo estranho. E para começar jogo longe, embora a contragosto, o picolé de abacaxi que estava uma delícia, e arranco fora o paletó e a gravata, e me ponho a tirar a camisa e os sapatos, segundo a expressa recomendação do Cristo aos que quisessem segui-lo até a morte. Em pouco tempo estou mais nu do que são Sebastião no altar da direita, e me prostro cheio de arrepios sobre a laje fria, o coração pulsando-me forte como um motor de explosão.

O tempo em que assim fico não sei dizer, mas o grito da velha beata logo me põe, de um salto, na posição vertical, embora ainda místico e tocado de divinos arrepios. Duas outras pessoas, que mal acabavam de entrar, põem-se a gritar ainda mais forte do que a velha, e logo me vejo cercado por uma pequena multidão de curiosos, que pretende linchar-me em nome de Deus Padre Todo-Poderoso. Todos, embora gritando, examinam-me dos pés à cabeça em minha esplêndida nudez, sobretudo à altura do sexo e das nádegas, que é o que parece despertar-lhes mais curiosidade e escândalo — e eu fico como um animal acuado de encontro à parede fria, justo sob uma imagem de são Jorge e o Dragão.
Com a chegada do padre e de dois soldados da polícia, que também me examinam o sexo e as outras partes pudendas, vejo-me intimado a vestir-me mais depressa do que é do meu hábito fazer, sempre sob o olhar vigilante da velha devota e de duas senhoritas indignadas, que parecem querer estudar anatomia à minha custa. Levado à presença do delegado, procuro identificar-me como sobrinho do presidente da República, mas sem êxito, e acabo trancafiado numa enxovia sem o mínimo de conforto e de higiene, ao lado de elementos desclassificados e em tudo iguais aos que tenho encontrado em todas as enxovias do mundo, seja na China como na ilha de Madagáscar. Como eu já não tinha onde dormir, e os bancos de jardim nunca me apeteceram, chego a achar cômoda a situação a que me acabou levando o meu cristianismo ortodoxo, mesmo porque aqui não me poderão linchar tão facilmente como lá fora e eu sinto necessidade de um longo repouso para refazer minhas energias e minha paz de espírito, tão abalada pelos últimos acontecimentos políticos.

Pelo relógio do enforcado, que guardo como um talismã no bolso posterior das calças, são exatamente sete horas e quarenta e cinco minutos — presumo que da noite.

Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"

As palavras e a moda

As palavras têm moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais viajadas.

Depois dizem-nos adeus e ainda voltam depois de nos terem dito adeus.

Enfim – toda essa “tourné” maravilhosa que nos põe a cabeça em água até ao dia em que já somos nós quem dá corda às palavras para elas estarem a dançar.

Almada Negreiros, "A invenção de um dia claro"

Era um dia frio

Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.

O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos, mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.



Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.

Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos redemoinhos de vento levantavam em pequenas espirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, estalava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.

Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.

Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sobre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou ele com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista Nº 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas províncias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em todas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de reboco revoluteava no ar e o mato crescia ao acaso sobre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colônias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, exceto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.

O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sobre terraço, trezentos metros sobre o solo. De onde estava, Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido: GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA. Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sobre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.

O Ministério do Amor era realmente atemorizante. Não tinha janela alguma. Winston nunca estivera lá, nem a menos de um quilômetro daquele edifício. Era um prédio impossível de entrar, exceto em função oficial, e assim mesmo atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos de metralhadoras. Até as ruas que conduziam às suas barreiras externas eram percorridas por guardas de cara de gorila e fardas negras, armados de porretes articulados.

Winston voltou-se abruptamente. Afivelara no rosto a expressão de tranquilo otimismo que era aconselhável usar quando de frente para a teletela. Atravessou o cômodo e entrou na cozinha minúscula. Saindo do Ministério àquela hora, sacrificara o almoço na cantina, e sabia que não havia na casa mais alimento que uma fatia de pão escuro, que seria a sua refeição matinal, no dia seguinte. Tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco em que se lia GIN VITÓRIA. Tinha um cheiro enjoado, oleoso, como de vinho de arroz chinês. Winston serviu-se de quase uma xícara de gim, contraiu-se para o choque e engoliu-a de vez, como uma dose de remédio.

Instantaneamente, ficou com o rosto rubro, e os olhos começaram a lacrimejar. A bebida parecia ácido nítrico, e ao bebê-la tinha-se a impressão exata de ter levado na nuca uma pancada com um tubo de borracha. No momento seguinte, porém, a queimação na barriga amainou e o mundo lhe pareceu mais ameno. Tirou um cigarro da carteira de CIGARROS VITÓRIA e imprudentemente segurou-o na vertical, com que todo o fumo caiu ao chão. Puxou outro cigarro, com mais cuidado. Voltou à sala de estar e sentou-se a uma pequena mesa à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa tirou uma caneta, um tinteiro, e um livro em branco, de lombo vermelho e capa de cartolina mármore.

Por um motivo qualquer, a teletela da sala fora colocada em posição fora do comum. Em vez de ser colocada, como era normal, na parede do fundo, donde poderia dominar todo o aposento, fora posta na parede mais longa, diante da janela. A um dos seus lados ficava a pequena reentrância onde Winston estava agora sentado, e que, na construção do edifício, fora provavelmente destinada a uma estante de livros. Sentando-se nessa alcova, e mantendo-se junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que respeitava à vista. Naturalmente, podia ser ouvido mas, contanto que permanecesse naquela posição, não podia ser visto.

Em parte, fora a extraordinária topografia do cômodo que lhe sugerira o que agora se dispunha a fazer, mas fora também sugerido pelo caderno que acabara de tirar da gaveta. Era um livro lindo. O papel macio, cor de creme, ligeiramente amarelado pelo tempo, era de um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Era de ver, entretanto, que devia ser muito mais antigo. Vira-o na vitrina de um triste bricabraque num bairro pobre da cidade (não se lembrava direito do bairro) e fora acometido imediatamente do invencível desejo de possuí-lo. Os membros do Partido não deviam entrar em lojas comuns (“transacionar no mercado livre,” dizia-se), mas o regulamento não era estritamente obedecido, porque havia várias coisas, como cordões de sapatos e giletes, impossíveis de conseguir de outra forma. Relanceara o olhar pela rua e depois entrara, comprando o caderno por dois dólares e cinquenta. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para nenhum propósito definido. Levara-o para casa, às escondidas, na sua pasta. Mesmo sendo em branco, o papel era propriedade comprometedora.

O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido por pena de morte, ou no mínimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. Winston meteu a pena na caneta e chupou-a para tirar a graxa. A pena era um instrumento arcaico, raramente usada, mesmo em assinaturas, e ele conseguira uma, furtivamente, com alguma dificuldade, apenas por sentir que o belo papel creme merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um lápis-tinta. Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falaescreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um tremor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo. Com letra miúda e desajeitada escreveu:

4 de abril de 1984
George Orwell, "1984"

domingo, março 26

Protegidos

 

Yevhenia Haidamaka

Serenidade

Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com a das doces manhãs primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas iguais à minha. Sou tão feliz, meu amigo, e de tal modo mergulhado no tranquilo sentimento da minha própria existência, que esqueci a minha arte. Neste momento, ser-me-ia impossível desenhar a coisa mais simples; e, no entanto, nunca fui tão grande pintor. Quando em torno de mim os vapores se elevam do meu vale querido, e o sol a pino procura devassar a impenetrável penumbra da minha floresta, mas apenas alguns dos seus raios conseguem insinuar-se no fundo deste santuário; quando, à beira da cascata, ocultas sob os arbustos, descubro rente ao chão mil diferentes espécies de plantazinhas; quando sinto mais perto do meu coração o formigar de um pequeno universo escondido em baixo das ervinhas, e são os insectos, moscardos de formas inumeráveis cuja variedade desafia o observador, e sinto a presença do Todo-Poderoso que nos criou à sua imagem, o sopro do Todo-Amante que nos sustenta e faz flutuar num mundo de ternas delícias...; então, meu amigo, é quando o meu olhar amortece, e o mundo em redor, e o céu infinito adormecem inteiramente na minha alma como a imagem da bem-amada; muitas vezes, então, um desejo ardente me arrebata e digo a mim mesmo: "Oh! Se tu pudesses exprimir tudo isso! Se tu pudesses exalar, sequer, e fixar no papel tudo quanto palpita dentro de ti com tanto calor e plenitude, de modo que essa obra se tornasse o espelho de tua alma, como tua alma é o espelho de Deus!..." meu amigo!... este arroubamento me faz desfalecer; sucumbo sob a força dessas visões magníficas. 

Johann Wolfgang von Goethe, "Werther"

Espaço e obra: as cabanas de trabalho dos escritores

Leonardo da Vinci decía que “las pequeñas habitaciones y refugios disciplinan la mente, mientras las grandes la debilitan”.

En Walden, Henry David Thoreau da la razón a Da Vinci, cuando se refiere a la pequeña cabaña junto al lago donde viviría durante dos años y dos meses: “Con este abrigo más sustancial sobre mí, había aclarado algo mi situación en el mundo”.

Por alguna razón que nos devuelve a nuestro propio origen como especie, el ser humano siempre ha buscado el abrigo, aunque fuera precario, temporal u ocupado sólo esporádicamente, para plasmar su voz interior.

Abundan los escritores, compositores musicales, filósofos, inventores o artesanos que forjaron su obra en diminutas cabañas y refugios, no tan diferentes que los chozos móviles de pastor usados en la Meseta Central española durante siglos.

Bernard Shaw em sua cabana

Los pequeños refugios son en ocasiones la mera habitación de una casa u apartamento. A menudo, no obstante, se trata de pequeñas cabañas de madera instaladas en el patio trasero, bosque o jardín, como reducidos espacios de juego que devuelven a sus moradores a la concentración y el flujo de ideas que recordamos de nuestra infancia.

Es, al fin y al cabo, durante la infancia cuando buena parte del juego al aire libre consiste en construir un pequeño abrigo. Una casa, fuerte, castillo, cabaña. Un lugar donde refugiarse.

La frase de Leonardo da Vinci constata que el lugar donde se escribe un libro, se bosqueja una teoría filosófica o se compone una melodía influye sobre el resultado creativo; como lo hacen el estado anímico, la salud, la experiencia personal, la urgencia económica, etc.

Si los espacios para crear dijeran tanto del autor como su propia obra, la pequeñez y sencillez de habitaciones y casas de retiro forjan un denominador común entre la esencia del momento de crear. Estudiando estos lugares de estudio, a menudo reducidos, simples y apartados, el creador busca el retiro infantil para que la mente esté acomodada, asentada. Un nuevo útero materno donde recogerse durante las horas de trabajo.

El poeta irlandés William Butler Yeats describía esta necesidad en La Isla del Lago: Innisfree (leer la versión original en inglés, The Lake Isle of Innisfree). La búsqueda del sonido interior primigenio, reflejado en la naturaleza (exterior universal, conexión con el panteísmo y estoicismo):

Me levantaré y partiré ahora, partiré hacia Innisfree,
Y construiré allí una pequeña cabaña, hecha de arcilla y zarzas:
Nueve surcos de judías tendré allí, y una colmena,
Y viviré solitario, entre el zumbar de las abejas.

Y encontraré allí paz, paz que gotea lentamente,
Desde los velos de la aurora hacia donde el grillo canta;
Allí la medianoche es toda un tenue brillo, y el mediodía es de un fulgor púrpura,
Y el atardecer se llena de las alas del tordo.

Me levantaré y partiré ahora; pues siempre, de noche y de día,
Escucho el apagado rumor del agua en la ribera,
Y mientras permanezco sobre la vereda, o sobre la gris acera,
Lo escucho en lo mas hondo de mi corazón.

Si, como decía Da Vinci, un espacio reducido sitúa la mente en el camino correcto, a mayor simplicidad y recogimiento, mayor capacidad para resolver tareas conceptuales o artesanales, no importa la disciplina.

Las cabañas o chozos para escribir o los “retiros de patio trasero” (del inglés “backyard shed”) comparten una intimidad esencial, simple y áspera, como si todas persiguieran sin siquiera planteárselo los preceptos de la vida sencilla, descritos con el término estético japonés wabi-sabi (objetos o ambientes con simpleza rústica).

El espacio íntimo de trabajo retorna con fuerza en la era de Internet y las comunicaciones ubicuas, cuando muchos profesionales desarrollan parte o todo su trabajo en casa o donde estiman oportuno.

Pero la ventaja de tecnologías como Internet forma parte, a la vez, del aumento de uno de los riesgos del proceso creativo: la sobrecarga informativa y sus efectos, se trate de la posposición (dejarlo para luego) o del síndrome de la hoja en blanco.

Otro denominador común de las cabañas para creadores es su emplazamiento, a menudo en la naturaleza, sea en un simple jardín doméstico o en un paisaje exuberante, a veces tan apartado de la civilización como los refugios de madera escandinavos, construidos con troncos de árbol y abiertos a cualquiera que requiera su uso, siempre y cuando sea respetuoso con el espacio y, tras usarlo, lo deje como lo había encontrado.

En *faircompanies, hemos tenido oportunidad de visitar algunos de estos espacios de creación: desde la reconstrucción de la cabaña que el escritor trascendentalista Henry David Thoreau erigió junto al lago Walden, a las apartadas afueras de Concord, Massachusetts (vídeo sobre nuestra visita); a la minicasa que el profesor y escritor Richard Heinberg ha construido, con ayuda de sus alumnos, en el patio trasero de su casa suburbana de Santa Rosa, California (vídeo sobre nuestra entrevista con Heinberg).

Cabana de Pollan
El periodista, profesor y escritor Michael Pollan, autor de El dilema del omnívoro, publicó en 2008 A Place of My Own, donde detalla el proceso de diseño y construcción de su propia cabaña de trabajo en el patio trasero de su casa de Connecticut.

Como nos explicaba Richard Heinberg acerca de la pequeña cabaña construida con ayuda de sus alumnos, la de Michael Pollan tenía un mismo propósito, detalla el autor en A Place of My Own: crear con sus propias manos un lugar para leer, escribir y soñar.

En su búsqueda de la cabaña de trabajo se adecue a sus necesidades creativas, invoca a Vitrivio, Thoreau, los maestros chinos del feng shui o el arquitecto Frank Lloyd Wright.

“La habitación de uno mismo -escribe Pollan-: ¿hay alguien que no haya soñado alguna vez en ese lugar, que no haya invocado esas suaves palabras hasta que hubieran asumido una forma habitable?”. Pollan describe en su libro cómo cualquier creador es capaz, si se lo propone, de construir un pequeño retiro donde trabajar, sea en la soledad de un entorno salvaje, o en la terraza de casa.

Cuando el coruñés Eduardo Outeiro preparaba una muestra que retratara las cabañas de artistas y filósofos, concluyó durante la investigación que las cabañas compartían “una rusticidad que responde a una necesidad de buscar arraigo, de enraizarse ante la renovación tecnológica”.

Ello explicaría por qué muchos programadores de aplicaciones web, escritores, dibujantes de cómic, etc., buscan espacios aparentemente reducidos y humildes para trabajar. Y “por qué Bernard Shaw, que tenía un caserón, se construye una cabaña para escribir”.

La cabaña, según Eduardo Outeiro, armoniza el oficio de quien vive en ella, y sus usuarios tradicionales, pastores de trashumancia, cazadores, pescadores, buscadores de oro, “están ligados a estructuras muy profundas de pensamiento”.

Las cabañas de trabajo influyeron sobre las obras más conocidas de los personajes mencionados por Michael Pollan en A Place of My Own, además de sobre la propia obra de Pollan.

También sobre las del compositor Gustav Mahler, que poseyó hasta tres cabañas distintas, y Edvard Grieg; filósofos como Ludwig Wittgenstein y Martin Heidegger; así como el dramaturgo August Strindberg, escritores como Bernard Shaw y Virginia Woolf; el cineasta Derech Jarman, el explorador Lawrence de Arabia.

El reciente esfuerzo de Michael Pollan y Richard Heinberg para tener una pequeña cabaña donde divagar, leer o trabajar responde, pues, a un anhelo compartido por otras mentes creativas a lo largo de la historia.

Henry David Thoreau escribió la mayor parte de Walden, la vida en los bosques, mientras vivió dos años y dos meses en la cabaña que había construido junto a la laguna Walden, a 3 kilómetros (2 millas) de su casa en Concord.

“Cuando escribí las páginas que siguen, o más bien la mayoría de ellas, vivía solo en los bosques, a una milla de distancia de cualquier vecino, en una casa que yo mismo había construido, a orillas de la laguna de Walden en Concord (Massachusetts), y me ganaba la vida únicamente con el trabajo de mis manos. En ella viví dos años y dos meses. Ahora soy de nuevo un morador en la vida civilizada”.

En el prefacio de A Place of My Own, Michael Pollan presenta su libro con unas palabras similares: “Este no es un famoso o importante edificio, pero para mí ha significado el mundo: lo construí con mis propias torpes manos, y es aquí donde escribí el libro que ahora sostienes, además de un segundo (La botánica del deseo), y un tercio de un tercero (El dilema del omnívoro)”.

Compilamos a continuación la cabaña de trabajo de diez escritores. Incluimos en la lista, como escritor, al explorador Thomas Edward Lawrence, por razones objetivas de peso. Al fin y al cabo, Lawrence fue todo lo que se propuso.

En todos estos casos y muchos otros, mencionados y olvidados en este artículo, los pequeños refugios dieron sus frutos.

Preocupado por lo que creía que era una crisis moral, Thoreau abogó por la vida sencilla y la contemplación de la naturaleza como un camino para lograr la plenitud y la tranquilidad. Fue a los bosques porque quería “enfrentar sólo los hechos esenciales de la vida, y ver si podía aprender lo que ella tenía que enseñar, no fuera que cuando estuviera por morir descubriera que no había vivido (…)”.

“Quise vivir profundamente y extraer toda la médula de la vida, vivir en forma tan dura y espartana como para derrotar todo lo que no fuera vida, cortar una amplia ringlera al ras del suelo, llevar la vida a un rincón y reducirla a sus menores elementos…”. Para lo conseguir lo que llamó en Walden “extraer toda la médula de la vida”, Thoreau se retiró al bosque junto al lago Walden, un paraje natural a 3 kilómetros de su casa en Concord, Massachusetts.

Construyó con sus manos la pequeña cabaña donde viviría y trabajaría en esa época y, de la experiencia, surgiría Walden, la vida en los bosques. La cabaña de Thoreau, con unas dimensiones de 10 por 15 pies (13,94 metros cuadrados), era de madera con chimenea tradicional de piedra, tejado a dos aguas y dos ventanas. Contenía cama, mesa, escritorio y tres sillas.

Su obra reflejó la sencillez de una vida frugal, rodeada de naturaleza, influenciada por el panteísmo y la filosofía clásica.

El escritor irlandés George Bernard Shaw trabajó durante los últimos 20 años de su vida trabajando en una diminuta y espartana cabaña de madera instalada en el jardín de su casa de Saint Albans, Hertfordshire, Inglaterra.

Bernard Shaw instaló la choza sobre una plataforma rotatoria, de manera que pudiera orientarla hacia el sol y así aprovechar al máximo la tamizada luz natural del sur inglés.

El ganador del Nobel de literatura en 1925 y el Óscar en 1938 permanecía tanto tiempo en la cabaña que la equipó con electricidad, teléfono y sistema de alarma.

El novelista y autor de cuentos infantiles galés de ascendencia noruega Roald Dahl, escribió libros tan influyentes como Charlie y la fábrica de chocolate, James y el melocotón gigante, Matilda o Las brujas, en una pequeña casita de ladrillo, un “santuario sagrado” para el autor.

Quentin Blake acerca de la cabaña de Dahl en The Guardian: “todo el interior estaba organizado como lugar para la escritura, así que el viejo sillón de orejeras tenía el respaldo mullido para que fuera más confortable; tenía un saco de dormir que ponía en el regazo cuando tenía frío y un taburete para descansar las piernas”.

Dahl había incluso personalizado un pequeño escritorio con una barra que situaba sobre los brazos del sillón y un tubo de cartón que alteraba el ángulo de la superficie de escritura.

El escritor había convertido la cabaña en su jardín en el espacio de trabajo que nadie podía violentar, donde la mente podía incluso prepararse para recuperar la curiosidad de los primeros años de vida.

El poeta, escritor de cuentos y dramaturgo galés Dylan Thomas es reconocido como uno de los renovadores de la literatura inglesa en la primera mitad del siglo XX, fue conocido por su vida desordenada y poderosa voz, que contribuyó a que su obra poética se popularizada gracias a sus recitales en la BBC (a los 4 años, era capaz de recitar de memoria Ricardo II de Shakespeare).

Cuando, en 1949, Thomas se traslada a The Boat House, su nueva casa en la costa galesa, aprovechó un viejo garage como estudio. Allí escribió el resto de su obra, incluyendo la popular radionovela de la BBC, Under Milk Wood.

El viejo garaje reconvertido en casita de escritura tenía un pequeño escritorio contra una ventana, así como una modesta librería. Dibujos, pinturas y fotografías decoraban desordenadamente las paredes.

Entre ellas, reproducciones y recortes de revista de Lord Byron, Walt Whitman, Louis McNeice, W.H. Auden, William Blake, una pintura de Modigliani, desnudos de picaresca y listas de rimas, palabras y aliteraciones, como buen artesano de la lengua en su taller.

La cabaña del autor estadounidense, responsable junto a autores como Walt Whitman o Jack London en crear un imaginario colectivo genuinamente estadounidense, destacaba por sus reducidas dimensiones, aislamiento, privilegiada localización (sobre la ladera de una montaña, asomada a un valle) y su diseño, octogonal, que invitaba a adaptar el espacio de trabajo conforme avanzaba el día.

En una carta a su amigo William Dean Howells fechada en 1874, el autor de Huckleberry Finn describía su cabaña de escritura: “es el estudio más encantador que pudieras ver… octogonal con tejado de pico y cada una de sus caras cubierta por una generosa ventana… colgada en completo aislamiento en lo alto de una elevación que preside leguas de valle y ciudad y cordilleras en retirada de distantes colinas azules”.

“Es un nido acogedor y habitación suficiente para sofá, mesa, y tres o cuatro sillas. ¿Y cuando las tormentas barren el valle remoto y los rayos destellean entre las colinas y más allá, y la lluvia golpea el tejado sobre mi cabeza? Imagina su suntuosidad”.

La escritora británica, resaltó en su ensayo A Room of One’s Own (Una habitación para uno mismo) la importancia de tener un refugio propio para trabajar, incluso en entornos como el suyo, especialmente respetuosas con las demandas del oficio.

Escribía en una pequeña cabaña de madera pintada de blanco, a la sombra de los árboles de su jardín en Monk’s House, en Sussex Oriental (sur de Inglaterra), y situada junto al campo de una iglesia.

Ella llamaba a su espacio “el refugio de la escritura”. Por su enfermedad psicológica, conocida actualmente como trastorno bipolar, Virginia Woolf divagaba y se distraía fácilmente, mucho más de lo que ella misma toleraba.

Cuando su esposo Leonard paseaba por le huerto, o sonaban las campanas de la iglesia próxima, o sentía la presencia de su perro junto a ella, tendía a perder el hilo de la escritura. También en invierno, cuando el intenso frío le impedía sostener el lápiz.

En su cabaña, Virginia Woolf escribió varias de sus obras capitales, incluyendo Mrs Dalloway. También en el escritorio de su casita de trabajo, Woolf escribió una fría mañana de primavera una carta de despedida a su marido Leonard, antes de quitarse la vida en el cercado río Ouse.

El escritor británico de relatos cortos y novelas gráficas, entre otros géneros, escribe en un gazebo de madera con planta hexagonal y pequeño balcón, situada entre los árboles de su jardín.

Gaiman ha explicado sobre su choza de trabajo: “uso el gazebo por épocas. Lo uso, lo abandono por 5 años y luego lo redescubro con placer. Me gusta caminar hacia el fondo del jardín y sentarme a escribir”.

“Nunca pasa nada por allí. Puedo mirar por la ventana y algún animal me mira ocasionalmente, pero sobre todo se trata de árboles, y sólo captan el interés un instante, de manera que vuelvo a la escritura felizmente”.

Sobre el poder disruptor que puede tener Internet, una ventana hacia el picoteo informativo y la posposición, Gaiman aclara que la choza “está justo fuera del alcance de la conexión inalámbrica de la casa, lo que es una buena cosa”.

Inspirado por Henry David Thoreau y otros creadores que construyeron con sus propias manos su refugio para escribir, Michael Pollan erigió en el jardín de su casa en Nueva Inglaterra una cabaña de madera “para leer, escribir y soñar despierto”.

A partir de su experiencia concibiendo y construyendo la cabaña, similar a la que Thoreau había construido junto al lago Walden, Michael Pollan escribió A Place Of My Own: The Architecture of Daydreams. Su trabajo, desde entonces, ha sido escrito sobre todo en la pequeña cabaña.

“Pero el libro podría haber sido escrito sobre casi cualquier otro edificio porque, en esencia, es la narrativa del proceso universal de diseño y construcción -que es lo mismo que la vieja historia sobre cómo los sueños se convierten en escritura y luego se vuelven madera y piedra y vidrio, para tomar sitio a continuación en el mundo palpable”.

Michael Pollan explica en su libro que la admiración de muchos escritores hacia arquitectos y carpinteros procede de la habilidad de convertir su trabajo intelectual en realidad física.

“Para nosotros, términos como ‘arquitectura’ o ‘carpitería’ son poco más que pretenciosas metáforas que usamos para aderezar nuestras efímeras creaciones”.

El escritor, dramaturgo y pintor sueco August Strindberg concibió la mayor parte de su obra en una pequeña cabaña de madera en Kymmendö, pequeña isla del archipiélago de Estocolmo.

El lugar es recordado como la isla de Strindberg, ya que Kymmendö le sirvió de inspiración para la isla en la que se desarrolla Gentes de Hemsö (Hemsöborna).

Uno de los últimos aventureros románticos, T.E. Lawrence viajó constantemente hasta su muerte prematura. En los años 20, Lawrence de Arabia compró varias parcelas en Chingford, al norte de Londres.

Fue en su finca de Chingford donde construyó una choza de madera que usaría con frecuencia cuando volvía a Londres. Desde allí escribía, atendía a su numerosa correspondencia y leía.

En los años 30, la finca de Lawrence fue comprada por un organismo municipal, que trasladó la cabaña del explorador a Loughton, Essex, donde permanece olvidada.