terça-feira, março 31

Quando bate aquela insônia

Um brinquedo de criar prodígios

Hoje quem mais reinventa o português são os brasileiros e os africanos


Perguntei à Siri, a sempre imprevisível assistente virtual do iPhone, se acreditava em Deus. Respondeu-me que enquanto nós, humanos, precisamos de religiões, ela apenas necessita de silício. Repeti a pergunta. A inefável e insubstancial personagem abandonou o sarcasmo e optou pela poesia: “Tudo são mistérios!”, disse-me.

Acontece-me durante algumas entrevistas pensar na Siri. Há poucos dias, por exemplo, uma jornalista telefonou-me, querendo saber como eu classificaria a língua em que escrevo: “Os seus romances decorrem em diferentes cidades de língua portuguesa, Luanda, Rio de Janeiro, Lisboa, até mesmo em Pangim, a capital de Goa (na Índia). Afinal, que língua portuguesa é a sua?”

Que língua portuguesa é a minha?!

Pensei em responder ao estilo da Siri: “Querida, tudo são mistérios!” Infelizmente faltou-me a coragem e tropecei na resposta. Contudo, fiquei a pensar naquilo. Algumas coisas eu sei. Sei, desde logo, que a minha língua não está limitada por fronteiras políticas ou geográficas. O português que me interessa é o português total.

Há alguns anos, em Lisboa, num evento em que se discutia pela milésima vez a reforma ortográfica, um sujeito ergueu-se aos berros, no fundo da sala: “A língua é nossa!” Não fiquei surpreendido. A verdade é que ainda persiste em Portugal uma certa saudade imperial e, sobretudo, uma enorme ignorância no que diz respeito à história do próprio idioma. É sempre bom recordar que antes de Portugal colonizar África, os africanos colonizaram a Península Ibérica durante oitocentos anos. A língua portuguesa deve muito ao árabe. A partir do século XVI, com a expansão portuguesa, a língua começa a enriquecer-se, incorporando vocábulos bantos e ameríndios, expressões e provérbios dessas línguas, etc.. A minha língua é esta criação coletiva de brasileiros, angolanos, portugueses, moçambicanos, caboverdeanos, santomenses, guineenses e timorenses. A minha língua é uma mulata feliz, fértil e generosa, que namorou com o tupi e com o ioruba, e ainda hoje se entrega alegremente ao quimbundo, ao quicongo ou ao ronga, se deixando engravidar por todos esses idiomas.

“Da minha língua vê-se o mar”, escreveu o romancista português Vergílio Ferreira: “Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.” Vergílio Ferreira tem razão. A presença do mar, e essa inquietação criativa são parte da natureza da nossa língua.

Creio não ofender ninguém se disser que no mundo de hoje quem mais reinventa o português são os brasileiros e os africanos. Os brasileiros por razões óbvias — constituem a esmagadora maioria dos falantes; os africanos porque em Angola ou Moçambique a língua portuguesa convive de forma dinâmica com outros idiomas. Os novos falantes do português são provenientes dessas línguas. Todos os dias levam alguma coisa delas para o português. Além disso têm com o português uma relação de esplêndida irreverência. Falam um português sem culpa e sem gravata.

Na última década a juventude portuguesa vem adotando com entusiasmo o português angolano. É um movimento que apenas surpreende os desatentos. Os africanos dominam hoje a cultura popular em Portugal. A fadista mais famosa, Mariza, é uma mulata moçambicana. A mais poderosa e internacional banda portuguesa, os Buraka Som Sistema — grupo que se tornou conhecido pela releitura do kuduru das favelas de Luanda — contam com angolanos entre os seus membros. O cantor mais popular do momento é o angolano Anselmo Ralph. Nos últimos anos, Anselmo transformou-se num extraordinário fenômeno de público, vendendo milhares de discos e enchendo as maiores salas de espetáculo de Portugal, como o belo Pavilhão Atlântico, com capacidade para receber 20 mil pessoas. Assisti a um destes shows. Portugueses a africanos, muito mais portugueses do que africanos, dançavam em conjunto. Em Lisboa, e um pouco por todo o país, multiplicam-se as escolas de kizomba.

Viajantes ingleses, holandeses e alemães, que visitaram Lisboa ao longo dos séculos XVI e XVII, manifestaram-se impressionados com a quantidade de negros nas ruas da cidade. “Lisboa é uma cidade africana” — diziam. Voltou a ser, e mais exuberante do que nunca.

A minha língua é o resultado de toda esta festa. É um brinquedo de criar prodígios. Veja-se o que fizeram, brincando com ela, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Luandino Vieira ou Mia Couto — e um abraço ao Mia, já agora, que está entre os dez finalistas do Man Booker International Prize, um dos mais importantes prêmios literários do mundo.

Leia mais o artigo de José Eduardo Agualusa

Nós, os destinatários dos livros

Se amo alguns livros são aqueles em que sinto que o seu autor, que pode ter morrido séculos antes de eu ter sido engendrado, se dirigia a mim, a mim pessoal e concretamente, a mim em confidência
Miguel de Unamuno y Jugo(1864-1936)

Se Deus quiser

A gente vai continuar comendo doce que nem criança em festa, como vamos almoçar sempre com o saleiro à mão, fechando os olhos para saborear a gordura da picanha, mas esperamos continuar com saúde se Deus quiser. Porque Deus ia querer maltratar os filhos seus?

Se Deus quiser vamos continuar comprando muita loteria, com esperança de um dia ganhar e, além de recuperar tudo que gastamos, ficar tão ricos que gerente de banco vão nos chamar de vossa excelência. Não é que a gente anseie ficar rico, é que temos muita esperança em Deus.

Vamos continuar saindo em cima da hora para encontros e reuniões e, apesar do trânsito cada dia pior, e apesar dos imprevistos que o diabo manda, vamos chegar sempre pontualmente, se Deus quiser.

Como vamos deixar para amanhã tudo que podemos fazer hoje mas, se Deus quiser, no fim vai dar tudo certo.

Vamos obedecer à preguiça, porque Deus não pode ter criado à toa uma coisa tão gostosa, e assim iremos deixando de conversar sobre os problemas que surgem com a mulher, os filhos e os vizinhos, na esperança de que os problemas se irão como o nevoeiro da manhã, e no dia seguinte tudo estará limpo, se Deus quiser.

Também não iremos à reunião do condomínio nem da associação de pais e mestres porque, por Deus, coisa mais chata não há, e pode deixar de ir porque sempre tem quem vá, graças a Deus.

Não vamos beber e dirigir, vamos beber e deixar Deus dirigir, temos muita confiança em Deus.

Não vamos nos esforçar no trabalho nem nos aperfeiçoar – pra que? – se na vida a gente tem o que Deus mandar.

Quando alguém disser “se Deus quiser”, vamos interpretar como apoio a tudo que também esperamos de Deus, e vamos nos sentir como irmãos dessa pessoa tão boa para nós, pensando ah, Deus esteja conosco.

Se não soubermos responder alguma coisa, diremos “sabe Deus” e ficaremos em paz com a consciência.

Nas carências, diremos “Deus há de prover”, e deixaremos o problema em suas mãos, pois quem mais poderoso para tudo atender?

Se pecarmos, será porque Deus não ouviu quando pedimos “não nos deixeis cair em tentação”.

E, quando seguirmos o exemplo de Judas, será porque também Deus não ouviu quando pedimos “livrai-nos de todo mal”.

Quando errarmos, não pediremos desculpas e muito menos consertaremos, pois Deus tudo perdoa e tudo Deus conserta desde Adão, não?

Mas Deus que se cuide porque, se tudo der errado e a gente ficar muito mal, botaremos a culpa em Deus, que afinal tudo pode, então porque não pôde fazer mais por nós?

E o pior é que Deus nem responde, Castro Alves já clamava: Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?

Mas, por enquanto, e na falta de opção melhor, seguimos confiando: seja o que Deus quiser.

Domingos Pellegrini

segunda-feira, março 30

Nova etapa a partir de um livro

La lectura se contagia (ilustración de Adolfo Serra)
Adolfo Serra
Somos sub-educados, atrasados e analfabetos; e neste particular confesso que não faço grande distinção entre a ignorância do meu concidadão que não sabe absolutamente ler nada, e a ignorância do que apenas aprendeu a ler o que se destina a crianças e inteligências medíocres. Deveríamos estar à altura dos grandes da Antiguidade, mas em parte por saber primacialmente quão grandes eles foram. Somos uma raça de homens-passarinhos; nos nossos voos intelectuais mal nos alçamos um pouco acima das colunas do jornal.
Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exatamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas.
Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures.
As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida, e cada um deles respondeu de acordo com a sua capacidade, por meio de palavras ou da própria vida. De mais a mais, juntamente com a sabedoria aprendemos a liberalidade.
Henry David Thoreau (1817 -1862) 

Eu e o general

Lula, um perseguido político do fim da ditadura militar, andou por aí elogiando os militares. Seja lá qual for seu propósito, deve saber o que diz. Ou, ao menos, o que quer. No que me toca, nunca tive problemas com a dita cuja. Lamento não poder carregar o talismã da perseguição política, como tanta gente adora fazer, para depois terminar elogiando Fidel Castro. Ou o general Médici.

Só uma vez, para ser franco, me defrontei com um general de verdade. A história se tomou célebre em certos círculos pelo desfecho que teve. Já contei esse episódio uma vez, vou contar de novo. Mandaram-me ao antigo Hotel Terminus para entrevistar um general. Era um general do Alto Comando que viera para um curso da Adesg. Perdoem-me ter esquecido o nome desse general, mas este era um tempo em que ainda existia o Hotel Terminus, cursos da Adesg eram notícia e eu, ah, jovem e inocente demais para achar o presidente Médici um grande sujeito.

O general me recebeu no saguão, impecavelmente fardado, muito simpático. Subi um lance de escada e caminhei sobre uma passadeira creme. Embaixo haviam estendido um tapetinho vermelho que me pareceu um despropósito, já que hospedavam um revolucionário do 31 de Março.

— De onde é você, rapaz? perguntou.

— De Minas, general.

Ele riu do mal-entendido: na verdade queria saber o jornal que pagava meu salário. Mas aproveitou a deixa e enveredou pela geografia das Gerais, que deu mostras de conhecer bem. Eu lhe disse o nome do povoado onde nascera, a região, a "metrópole" mais próxima.

— Ah, conheço. Fui comandante em Bom Despacho.

Então estávamos de acordo. A entrevista foi uma baba: ele ditava, eu anotava. Na verdade até preferia que fosse assim, pois estava cansado e tinha pressa de voltar à redação, onde me esperava um trabalho insano. Além disso eu tinha arranjado uma namorada e não conseguia pensar em mais nada. Muito menos em cursos da Adesg. De resto o general limitou-se a ler para mim uma série de princípios e aforismos que sacou de uma pasta, contando que eu os reproduziria no jornal. Vendo que dali não saía coelho, apanhei minha papelada e os folhetos todos, estendi a mão ao general (ou bati continência?) e saltei os degraus que me separavam do tapetinho vermelho.

Foi a minha desgraça. Logo vi que o tapetinho se deslocou de onde estava, comigo em cima dele, e começou a viajar no chão encerado. Como nas histórias de Malba Tahan, lá fui eu entre as nuvens de Pendjab, só que em direção à porta do Hotel Terminus, pesada em seus arabescos de vidro grosso, com arame treliçado no meio. Tive tempo de decidir qual parte do meu corpo jogaria contra a porta, e escolhi o ombro direito. Quando bati contra o vidro, tive a impressão de que todo o prédio havia estremecido. Foi um barulhão indecente. O vidro trincou de alto a baixo e eu, em vez de cair, subi meio metro.

Enquanto eu parava no ar, quase como o Dadá Maravilha, o danado do tapetinho deslizou de volta a seu lugar primitivo. De modo que desabei sobre o chão liso como quiabo. Minha papelada voou em todas as direções: anotações, aforismos patrióticos, conceitos revolucionários. Patinei, levantei-me às tontas, tomei a escorregar. Quando consegui finalmente ficar de pé, minha camisa estava rasgada e o ombro sangrava. No topo da escada, o general via a cena com estupefação, de punhos cerrados.

Uma multidão juntou na calçada, do lado de fora, atraída pelo estrondo. Julgaram que era uma briga no saguão do hotel. Ouvi comentários do tipo:

— Foi jogado na porta com um soco!

— Foi o milico! Eu vi!

— Isso é abuso de autoridade! Bater num menino!

Tentei esclarecer que não, que eu fora vítima de minha própria imprudência, que era dado a trapalhadas como aquela. Em vão: logo toda a avenida comentava que um repórter fora espancado por um general no saguão do Hotel Terminus, mas que naturalmente o jornal não ia dar uma linha sequer a respeito, etc. etc: Detalhes eram acrescentados à história a cada minuto (e depois, a cada dia ou semana) inclusive um que me atribuía uma brava reação contra o general, que escapara pelo elevador.

Anos mais tarde, quando fui trabalhar na Bosch, um gerente a quem fui apresentado me cumprimentou nestes termos: "Satisfação de conhecer o homem que atravessou a porta do Terminus". Moacyr Castro é outro que nunca deixa essa história cair no esquecimento. Sempre que pode conta-a aumentando o enredo. Eu mesmo já não sei o que é verdade e o que é invenção. Fui incorporando a fantasia dos outros e agora é tarde para reconstituir o que de fato aconteceu.

Há apenas alguns anos, numa conversa com estudantes de jornalismo,um deles sugeriu que eu falasse de minha "resistência ao regime"— Nunca resisti ao regime, protestei.

— Como não? E o caso do hotel?

— Que caso?

— O dia em que você derrubou um general com um direto no queixo.

Portanto, a partir de agora, eu sou o homem que derrubou um general com um direto no queixo.


Eustáquio Gomes (1952-2014), crônica lida na Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra N.E.) 


Duelo na cama

Lectura o televisión? (ilustración de Adam Pękalski)
Adam Pekalski

Leilão fracassado de 'Minha Luta'

Leilão fracassado de exemplares autografados traz à tona na Alemanha debate sobre proibição do panfleto-biografia do ditador nazista

"Minha luta" ("Mein Kampf"), de Adolf Hitler, é o livro tabu por definição. Banido na Alemanha desde o fim da Segunda Guerra Mundial, no último dia de 2015 ele cai em domínio público na Europa. Assim, estaria aberto o caminho para sua reedição, comentada ou não. No entanto, órgãos governamentais querem manter a proibição, alegando tratar-se de um panfleto de incitação racista. Apenas recentemente o Instituto de História Contemporânea conseguiu impor definitivamente sua intenção de lançar uma edição histórico-crítica.

O misto de panfleto e autobiografia, que o futuro ditador nazista lançou em dois volumes, em 1925 e 1926, voltou agora às manchetes. Juntamente com outros itens hitleristas, uma casa de leilões de Los Angeles anunciava para na semana passada a venda online de dois volumes da primeira edição, assinados por Hitler e presenteados a um dos primeiros seguidores de seu Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores.

A casa de leilões classificava o lance inicial de 35 mil dólares como "um pouco cauteloso", considerando-se que um comprador pagou 64.850 dólares por um conjunto semelhante em 2014. No entanto, a transação não se concretizou, pois a "pechincha" não encontrou nenhum comprador.

A Deutsche Welle entrevistou o sociólogo Horst Pöttker, ex-docente de jornalismo da Universidade de Dortmund e professor emérito da Universidade de Hamburgo. Para o projeto Zeitungszeugen 1933-1945, de reprodução de matérias jornalísticas da era nazista, ele comentou trechos de Mein Kampf, mas sua publicação, planejada para janeiro de 2012, foi sustada.

domingo, março 29

Leitura de viagem


O hipócrita e o santo de Hipona

O hipócrita, este ser de elegância, onde anda? Este que até um poeta já louvou por seus escrúpulos? “À saúde do hipócrita”! À saúde deste que torna tudo tão mais tolerável. É fácil demais apontar os de cloaca exposta, o dedo apontando é um muito antigo tentáculo de polvo revoltado, excitado, sedento de justiça. Caguete seu próximo e tenha sua pena reduzida. O hipócrita? O hipócrita não se emporcalha. O hipócrita faz questão de manter as mãos bem limpas. Nada de pontas soltas, traço de baba, sobra de festinha amanhecida. A sujeira flagrante o escandaliza. Questão de etiqueta, de postura, de barras bem cosidas. O hipócrita sabe dar o passo sem rastro, tem o asseio e a honra de continuar uma linhagem de hipócritas avoengos, agradáveis e corretos até o mais fino cabelo das aparências. Questão de decoro, siso, brio. O mau gosto da verdade deformando o rosto ou do sangue escapando da veia não é com ele. O hipócrita não hesita em público, não tem nada de errado a olho nu, nada da paixão daquele santo que admitia ter se empanturrado, se esbaldado, se lambuzado em conveniências, mais falso na sua alegria que um mendigo bêbado num bairro de Milão no quarto século depois de Cristo. Ele hipócrita não peca em público, não peca absolutamente, nada nele o denuncia, nunca nada nele é torpeza. Até a expressão de um monge sequestrado, que chama seu assassino de amigo do último instante, na boca do hipócrita perde seu travo patético. Ele sabe ser sem dor o amigo do último instante, ironicamente. E o santo? Este santo que é santo sendo um pecador confesso, onde anda esse indecente?
Mariana Ianelli 

A um gato

Não são mais silenciosos os espelhos
Nem mais furtiva a aurora aventureira;
Tu és, sob a lua, essa pantera
que divisam ao longe nossos olhos.
Por obra indecifrável de um decreto
Divino, buscamos-te inutilmente;
Mais remoto que o Ganges e o poente,
É tua a solidão, teu o segredo.
O teu dorso condescende à morosa
Carícia da minha mão. Sem um ruído
Da eternidade que ora é olvido.
Aceitaste o amor desta mão receosa.
Em outro tempo estás. Tu és o dono
de um espaço cerrado como um sonho.
Jorge Luis Borges

sábado, março 28

São o terror


Os livreiros sempre são perigosos para quem crê que sua verdade é a verdade absoluta 
Juan F. Pons um dos fundadores da Confederação Espanhola de Grêmios e Associações de Livreiros

Assim começa o livro...

Morar numa cidade acidentada pode ser divertido quando se é novo e rampas e ladeiras convocam os músculos juvenis ao exercício. Mas, à medida que a idade declina, aplica-se a cidade a lograr os velhos. E sempre que eles retomam o fôlego no fio das esquinas, oferece-lhes ela mais caminho, tropeços e cansaços, como se os punisse por insistirem nos dias.

Não é que o víuvo Zoltan Tremlich, com a idade, tivesse passado ao estado de ingratidão, com respeito à casa ampla, soberanda de vista sobre a enseada, legado tardio duma parente longínqua. Mas começava a ter pena de que a falecida tia, que não era, aliás, uma bondade de mulher, lhe não houvesse antes deixado em testamento um modesto rés-do-chão na Rua dos Lojistas, perto do cais e da praça, sobretudo do Clube dos Valetes de Paus, onde não era desagradável entreter umas tardes de doce subalternidade.

Bibliotecas pessoais


Bibliotecas de Andrea Musso 

Cidades mortas

Os grandes livros nunca se esgotam. Cada leitura é um prazer renovado e aspectos novos se impõem à observação do leitor. Digo isso provocado pelo mais recente mergulho nas Cidades Mortas, obras que muitos críticos apontam como a melhor da ficção lobatiana.

Embora seja um livro antigo, com todos os trabalhos datados de antes de 1930 e englobando aqueles que compunham O macaco que se fez homem, sua leitura é cativante e o humor de Monteiro Lobato ainda funciona, provocando o riso e, ao mesmo tempo, piedade por alguns personagens pelas situações em que o autor se compraz em colocá-los. E o estilo é sempre motivo de admiração, ainda que nem ele escape a um ou outro lugar-comum (“como é natural”, razão pela qual”, “astro-rei” etc).

Vários contos retratam a vida das antigas cidades da região cafeeira, enquadrando-se como peças autênticas da “literatura do café”. O “clima” dessas cidadezinhas, naquela época, pode ser sentido pelo leitor sensível. A gente caminha pelas ruas estreitas e tortuosas em que o silêncio reina absoluto. O sol faísca nas pedras do calçamento polido pelos anos e os casarões enormes, repletos de sacadas e janelas, elevam-se de ambos os lados.

Nas pequenas praças as árvores centenárias abrigam os pássaros e, mais além, “a mesma morraria desnuda, as mesmas samambaias” denunciadoras da passagem do Rei Café. Pela tardinha o sino irreverente da igreja faz ouvir sua voz rouca – é “o mais violento perturbador do silêncio”.

Naquele ambiente marasmático, solitário e tristonho, o escritor observa e sonha com os livros que escreverá. Nem de longe imagina que ali está a matéria-prima de su8a melhor obra.

É interessante observar como Monteiro Lobato discute, no correr de seus contos, assuntos alheios à ficção sem prejudica-la. Ou expõe, como se fabulasse, suas idéias e teorias. Tentativas dessa natureza têm comprometido de maneira irreparável a obra de muito ficcionista.

Em “O resto da onça”, por exemplo, a pretexto de um diálogo com a cozinheira Joseja, expõe sua concepção de conto: “Quero conto que conte coisas; conto donde eu saia podendo contar a um amigo o que aconteceu; como o fulano morreu, se a menina se casou, se o mau foi enforcado ou não. Contos, em suma, como os de Maupassant ou Kipling...” Um conceito conservador, conteudístico, exigindo começo, meio e fim, do qual jamais se arredaria.

“Era no Paraíso, um dos seus contos mais conhecidos e que fez grande sucesso, é verdadeira fábula onde o autor, ressentido com a estupidez humana, mostra que o homem não estava nos planos do Criador. Seu aparecimento acidental só veio provocar problemas num mundo até então harmonioso e feliz.

Outros trabalhos abordam questões econômicas, sociológicas, estéticas, agrícolas e outras, sem perde5rerem jamais as características de contos e sem afetarem o sabor da leitura.

Mas é na riqueza da linguagem que Monteiro Lobato se supera, o que, para os leitores de “A Barca de Gleyre”, não constitui surpresa. Está ali, naquelas cartas, a busca incansável do estilo, a procura quase desesperada da precisão vocabular, o exercício contínuo da criatividade. E nesse aspecto “Cidades Mortas” é inesgotável, pelo que registro aqui algumas expressões colhidas ao acaso: sinecuristas acarrapatados ao orçamento (altos funcionários públicos), carrapatos orçamentários (funcionários públicos em geral), orçamentívoros (idem), rolete d’ homem (sujeito retaco), presidencial salame (um presidente gordo), brochuras carunchosas (livros velhos), cultivo de batatas gramaticais (erros de gramática), mulher de pelo crespo no nariz (mulher brava), protuberantes beldroegas do momento (os mandões do presente), cara purgativa (azeda ou amarga), concupiscência retrospectiva (lembrança daqueles momentos), macaco glabro (ele, o rei da criação), burrice ebúrnea (dura como marfim), gelatina insossa (o estilo acadêmico), imortalices quejandas (besteiras de imortal), sornices pacóvias (idem), ideias de pedras (duras e imutáveis), macacalidade (imitação), corisco de minuto (ideia luminosa), torre de ideias (cérebro), macacoas da velhice, taramelagem das más línguas, lote de cavalgaduras, sobrecasacas científicas, apatetamento geral, embezerrado, pensabundo...

Alfabetizar-se era, para ele, ler o Alberto de Oliveira. De onde concluo que, para lobatizar-se, nada melhor que Cidades Mortas.
Enéas Athanázio (Transcrito de Leitores&Livros)

sexta-feira, março 27

Enamorados

Enamorados… de los libros (ilustración de Enric Solbes)
Enric Solbes

Os livros estão sempre sós

Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam a sua fúria com a sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.
Ana Hatherly

Em memória de Hélio Pólvora (1928-2015)

Uma viúva é uma vendedora potencial de livros. Quando um erudito solta o último suspiro, os antiquários esfregam as mãos, prelibando negócio fácil e barato. E lá se vão para o sebo, a preço do sebo, as obras primas, as raridades que o defunto passou a vida a colecionar, nisso gastando os seus suados caraminguás. Se tivesse juízo, o de cujus teria levado a sua cara-metade a Paris para um banho de loja na Galérie Lafauyette, enqnato o distinto dar-se-isa o consolo de um Curvoisier no bar da esquina.
Veja mais do escritor  
Muito escritor de renome tem advertido: literatura é coisa séria. Os deslumbrados fecham os ouvidos e vão em frente com empulhações que acabam competindo com o produto verdadeiro, à falta de críticos que separem o bom do ruim. Há um nivelamento por baixo. O texto transfigurador vê-se forçado a competir com o texto de literatura factual. O conto que é uma experiência de vida, um prolongamento de vida vê-se comparado ao chamado miniconto, que é uma burla. Somente o tempo, esse crítico supremo, poderá enterrar a má literatura.
Veja vídeo   

quinta-feira, março 26

Estoque de inverno


Os livros

Miles Hyman
É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo "eu" entre nós e nós?

Manuel António Pina

É leitura ou não?

(...) não se pode chamar leitura a essa tremenda quantidade de tempo que se perde com os jornais
Lin Yutang (1895-1976)

A limpeza da biblioteca


Dramaturgo e político português, Amílcar da Silva Ramada Curto (1886-1961) em uma das suas crônicas do “Diário de José Maria”, fala das férias que o “professor livre de ensino secundário, floricultor e filósofo” tirou, em 35 anos, e aproveitou para cuidar da biblioteca. “Os meus livros! Durante estes anos todos, consegui alinhar uns mil volumes, que fazem vista nas três velhas estantes de mogno. Há de tudo: literatura, viagens, livros de estampas reproduzindo as obras dos museus. Poetas tenho os clássicos e os românticos: o Hugo, o Musset, e todos os nossos – do tempo em que nós tínhamos poetas que se entendiam e escreviam em verso”.

José Maria, com o “casaquito de seda crua, que um discípulo grato e amigo me mandou da Índia, e estou fresco e bem disposto”, resolveu que não faria festas ao canário ou se renderia ao companheiro: um cão fox. “(...) Me levantei hoje com a intenção decidida de arrumar as minhas estantes, que têm muitos volumes fora do seu lugar, estão vergonhosamente desordenadas.

(...) Gosto de arrumar livros. Levo um tempo infinito. Tiro um da prateleira, abro-o e, irresistivelmente, leio umas linhas. Atrás das linhas, se o assunto me interessa vai uma página. Sem eu dar por isso, encontro-me sentado, a ler, atentamente, com as estantes mais desarrumadas, à espera que eu continue.

Este que me veio agora à mão, por exemplo. Comprei-o no meu quinto ano em Coimbra, tem sinais de leitura atenta, notas a lápis. Sento-me numa cadeira ao pé do Bob (o cachorro), para lhe deixar a minha, e continuo a leitura”

A arrumação das estantes não se completa e José Maria, em “O meu cão, os meus livros e uma nuvem”, acaba por divagar em considerações sobre os livros que ia retirando para limpeza. Ao fim, se rende ao almoço e ao sol lisboeta. “E olhando para o céu verifiquei que a nuvenzita branca se desfizera – como se desfazem todas as certezas humanas”. Inclusive as de muito se programar uma limpeza na biblioteca.

quarta-feira, março 25

A medida da civilização

Bethany Minervino
A quantidade de civilização é medida pela qualidade da imaginação
Victor Hugo

Em homenagem a Herberto Helder

Os Animais Carnívoros

Herberto Helder (1930-2015) 

Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pera na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pera, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Diante do livro


Um cronista: um poeta para todos

“As gerações mais novas talvez ignorem ou não conheçam como deveriam a poesia de Paulo Mendes Campos”
Ivan Junqueira
Antes de ser um dos mais influentes cronistas da Literatura brasileira, Paulo Mendes Campos foi um poeta – e dos mais significativos do século XX, mesmo sendo contemporâneo de Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Drummond e João Cabral. Entrar mais na poesia publicada pelo autor é também entender melhor seus textos em prosa. Eis uma das grandes importâncias desse novo livro “Melhores Poemas Paulo Mendes Campos” (Global Editora, 352 páginas, R$ 35), com seleção do escritor e jornalista Humberto Werneck. Uma obra que é para se corrigir eventual injustiça histórica, que confinou o autor a uma geração, a de 45, como se sua produção poética não pudesse ressoar até os dias de hoje.

Na apresentação do livro, Werneck lembra que até mesmo algumas das crônicas do autor mais elogiadas pela crítica são na verdade poemas em prosa, como o célebre "O amor acaba", ou "Pequenas ternuras" – por isso foram incluídas nesse volume. A seleção traz o que há de mais representativo em toda a produção poética de Paulo Mendes Campos, nos livros que publicou desde o primeiro, 'A palavra escrita', de 1951, passando por Domingo azul do mar, Testamento do Brasil, Balada de amor perfeito, Arquitetura até Trinca de copas (o último, de 1984).

Os textos têm, ao mesmo tempo, muitas referências culturais e uma aproximação lírica e também irônica da vida cotidiana que viria a marcar sua crônica. Por exemplo, o poema “Declaração de males”:

Ilmo. Sr. do Imposto de Renda:antes de tudo devo declarar que já estou (parceladamente) à venda.Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.(...)
Destacam-se também as traduções de Paulo Mendes Campos de autores como T.S. Eliot, J.L. Borges, E.E. Cummings, Emily Dickinson, Pablo Neruda e William Blake. O poema de Cummings, por exemplo, é o mesmo que faz parte da trama do filme “Hannah e suas irmãs”, de Woody Allen.

Humor


Literatura e identidades

Admitindo que a literatura de um país tem algum papel na construção ou reforço da sua identidade — o que significa a sua desnacionalização?
Véronique Didier Laurent
Procurando novidades nas livrarias cariocas encontrei um dos mais recentes títulos de Gonçalo M. Tavares, “Os velhos também querem viver”. O livro foi lançado em Portugal há poucos meses, juntamente com um outro, “Uma menina está perdida no seu século à procura do pai”. Lançar dois livros em simultâneo, ou com poucas semanas de distância, é uma prática que aterroriza qualquer editor. “Loucura!”, asseguram todos: “Isto prejudica as vendas. Ele não deveria publicar tanto. Vai cansar os leitores e arruinar a própria carreira.” Gonçalo encolhe os ombros e publica os livros, cada qual na sua editora. No mês seguinte publica mais dois, ou mais três, ou mais quatro, e com isto vai multiplicando leitores e colecionando prêmios, um pouco por todo o mundo. Deve ser hoje o escritor de língua portuguesa, vivo, mais premiado e mais traduzido.

Gosto muito do Gonçalo. Ele olha o mundo com a curiosidade, a inteligência e a ingenuidade de uma criança ou de um visitante vindo de uma galáxia remota. Vê, e dá-nos a ver, o que está aqui, às claras, sob a lúcida luz do sol, mas que nós já não enxergamos mais. Toda a literatura dele tem muito a ver com esta engenhosa exposição da evidência. Ao longo dos últimos quinze anos, Gonçalo vem criando um universo muito próprio, que não está assente numa geografia concreta, particular, mas na grande literatura universal. É o caso mais extremo de uma tendência que vem ganhando expressão na literatura portuguesa — uma surpreendente desnacionalização.

Pedro Rosa Mendes, Afonso Cruz, João Tordo, Francisco José Viegas, Miguel Gullander, ou Walter Hugo Mãe, para citar alguns dos nomes mais jovens e mais interessantes da literatura portuguesa, vêm todos eles publicando livros cuja ação acontece para além das fronteiras portuguesas. Em alguns desses livros nem sequer há personagens portuguesas. Leiam, por exemplo, o excelente “Peregrinação de Enmanuel Jhesus”, de Pedro Rosa Mendes, publicado em 2010. O romance, que decorre em Timor Leste, lança um olhar cruel e violento sobre aquele país do extremo oriente, a sua história, os seus habitantes, demonstrando uma profunda intimidade com a mitologia e a cultura popular timorenses. Portugal está quase ausente. É apenas uma lembrança amarga.

Já o mais recente romance de Walter Hugo Mãe, “A Desumanização”, tem a Islândia como cenário e também ele se apropria do imaginário local.

Há anos que esse interesse da literatura portuguesa por outros territórios — ou um vasto desinteresse pelo próprio — me vem intrigando. Numa perspectiva otimista poderíamos ver nessa tendência um sinal de maturidade: os escritores portugueses estão saindo do seu país movidos por uma saudável curiosidade pelo outro e, sobretudo, porque estão em paz consigo próprios.

Em países jovens, como acontece com Angola ou Moçambique, a literatura trabalha de forma obsessiva questões de identidade. Os escritores usam a ficção como forma de afirmação identitária, por um lado, e por outro para melhor compreenderem o país e se compreenderem dentro dele. A literatura serve também para criar ou reforçar mitos nacionais.

Leia mais o artigo de José Eduardo Agualusa

terça-feira, março 24

O hipócrita e o santo de Hipona



O hipócrita, este ser de elegância, onde anda? Este que até um poeta já louvou por seus escrúpulos? “À saúde do hipócrita”! À saúde deste que torna tudo tão mais tolerável. É fácil demais apontar os de cloaca exposta, o dedo apontando é um muito antigo tentáculo de polvo revoltado, excitado, sedento de justiça. Caguete seu próximo e tenha sua pena reduzida. O hipócrita? O hipócrita não se emporcalha. O hipócrita faz questão de manter as mãos bem limpas. Nada de pontas soltas, traço de baba, sobra de festinha amanhecida. A sujeira flagrante o escandaliza. Questão de etiqueta, de postura, de barras bem cosidas. O hipócrita sabe dar o passo sem rastro, tem o asseio e a honra de continuar uma linhagem de hipócritas avoengos, agradáveis e corretos até o mais fino cabelo das aparências. Questão de decoro, siso, brio. O mau gosto da verdade deformando o rosto ou do sangue escapando da veia não é com ele. O hipócrita não hesita em público, não tem nada de errado a olho nu, nada da paixão daquele santo que admitia ter se empanturrado, se esbaldado, se lambuzado em conveniências, mais falso na sua alegria que um mendigo bêbado num bairro de Milão no quarto século depois de Cristo. Ele hipócrita não peca em público, não peca absolutamente, nada nele o denuncia, nunca nada nele é torpeza. Até a expressão de um monge sequestrado, que chama seu assassino de amigo do último instante, na boca do hipócrita perde seu travo patético. Ele sabe ser sem dor o amigo do último instante, ironicamente. E o santo? Este santo que é santo sendo um pecador confesso, onde anda esse indecente?

Ler e compreender

Alguns dos que leram uma obra relatam-lhe certos trechos de que não compreenderam o sentido e que eles ainda alteram por tudo que metem neles de si próprios; e esses trechos, assim corrompidos e desfigurados, que não passam de seus próprios pensamentos e de suas expressões, eles os expõem à censura, sustentam que são maus e todos concordam em que são maus; mas o trecho da obra, que esses críticos creem citar e que na verdade citam, nem por isso fica pior
La Bruyère (1645-1696) 

A cada um, o local próprio de leitura

Livro não é batata

As famosas livrarias de rua de Mumbai, na Índia
O livro não pode ser uma mercadoria que se repõe a cada 15 ou 30 dias, passados os quais se converte em entulho, em material descartável,  em inocente pescoço para a guilhotina. Os grandes prejudicados são, no final, os próprios fregueses 
Miguel García Posada

Livros que todos deveriam ler na escola

Livros diferentes, rostos diferentes, de Luca Carnevali
Pesquisa através do Facebook mostra que livros os usuários da rede gostariam de ter lido na escola - e quais indicariam para os estudantes de hoje, para estimular o gosto pela leitura.

O Diário de Anne Frank, Anne Frank
O emocionante relato de uma menina judia, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, quando se manteve escondida dos nazistas com sua família.

O Mundo de Sofia, Jostein Gaarder
'Romance filosófico', funciona como um guia básico para as principais ideias da filosofia, usando a história de Sofia Amundsen, uma garota prestes a completar 15 anos.

Fahrenheit 451, Ray Bradbury
Um romance distópico que servia como crítica à sociedade americana quando foi publicado, em plena Guerra Fria, faz uma análise interessante e atual sobre o conceito de censura e de acesso ao conhecimento.

Série Harry Potter, J.K. Rowling
As famosas aventuras do bruxinho foram apontadas por vários de nossos leitores como porta de entrada para o mundo da literatura.

O apanhador no campo de centeio, J.D. Salinger
O livro foi publicado, originalmente, para adultos - mas com o passar dos anos se tornou uma obra juvenil, por tratar de temas típicos da adolescência. O protagonista, Holden Caulfield, pode ser considerado um ícone da rebeldia da juventude.

Série Vaga-Lume, editora Ática
Publicado especialmente para o público infanto-juvenil, as aventuras da série Vaga-Lume são praticamente unanimidade entre os nossos leitores. Contém clássicos como 'O Escaravelho do Diabo' e 'A guerra do lanche'.

Orgulho e Preconceito, Jane Austen
Escrito há alguns séculos, o romance entre Elizabeth Bennet e Mr. Darcy poderia ser uma história água-com-açúcar sobre uma mocinha em busca do amor. Mas Jane Austen usa a ideia desse amor para fazer uma crítica à sociedade inglesa da época e também à construção do casamento.

As vantagens de ser invisível, Stephen Chbosky
Adaptado para os cinemas recentemente, esse novo clássico americano conta a história de Charlie, um adolescente com vários problemas e com dificuldades de fazer amigos. Através de cartas, Charlie conta como conhece Sam e Patrick e como a amizade acaba mudando sua vida. Emocionante.

O Caçador de Pipas, Khaled Hossein
Enquanto conta a história de Amir, homem atormentado pela culpa de trair o seu melhor amigo de infância, Hassan, Hossein também relata acontecimentos políticos que definiram o Afeganistão atual: a queda da monarquia na década de 70, o golpe comunista, a invasão soviética até a implantação do regime Talibã.

1984, George OrwellTambém um clássico, retrata como um regime totalitarista resulta na opressão individual. É famosos por cunhar o conceito do 'Grande Irmão', a ideia de que o governo está sempre observando, acabando com a privacidade.

Eleanor & Park, Rainbow Rowell
Apesar de ter sido publicado em 2012 (o livro mais novo da lista) o romance entre Eleanor e Park é ambientado em 1986. Durante a história, que aborda a temática do primeiro amor, os pontos de vista se alternam entre os dois protagonistas.

O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry
Se você acha que, pelo nome e pelas belas ilustrações coloridas, se trata de um livro (só) para crianças pequenas, está muito enganado. Com ideias profundas como "você se torna eternamente responsável por aquilo que cativa", tem um alto teor filosófico.

Uma breve história do tempo, Stephen Hawking
Ok, é um livro de forte teor científico - mas Hawking consegue explicar a um leigo conceitos importantes da física e da cosmologia, como buracos negros e a teoria das supercordas.

Bilhões e Bilhões, Carl Sagan
Livro publicado um ano após a morte de Sagan, foi descrito como um testamento do cientista - sim, tem discussões sobre ciência e sobre sua carreira, mas também seus pensamentos em relação a questões como o aborto e até sobre sua própria morte.

A Revolução dos Bichos, George Orwell
O segundo Orwell da lista, conta como animais de fazenda se revoltam contra seu dono humano e instauram um novo regime. Uma sátira da União Soviética, mostra como a corrupção toma conta do sistema e como esse sistema logo se torna uma ditadura.

Capitães da Areia, Jorge Amado
Na Salvador dos anos 30, um grupo de meninos abandonados, liderados por Pedro Bala, rouba para sobreviver e, dentro de sua pequena comunidade, criam um sistema similar ao de uma família na falta de figuras paternas e maternas.

Meu pé de laranja lima, José Mauro de Vasconcelos
Conta a história de um menino de cinco anos chamado 'Zezé'. Criado em uma família pobre, com muitos irmãos, tem em um pé de laranja-lima seu maior confidente, contando à árvore todas as suas aventuras.

O Hobbit, J. R.R. Tolkien
A introdução ao mundo de Tolkien, que se desenrola em "O Senhor dos Anéis", conta a jornada de Bilbo Bolseiro, que sai de sua zona de conforto no Condado para ajudar um grupo de anões a recuperar seu tesouro e sua cidade, roubados por um dragão. É considerado um dos melhores romances infanto-juvenis da história.

Admirável mundo novo, Aldous Huxley
A distopia mostra uma sociedade dividida por castas (os mais bonitos/fortes são das castas principais), em que pessoas são condicionadas biologicamente e psicologicamente a obedecer a um sistema. Em meio à essa paz, chega um desconhecido, fruto de uma relação espontânea e fora do controle desse sistema, e, com ele, surgem questões sobre o estilo de vida dominante.

segunda-feira, março 23

A verdadeira árvore da leitura

Kuba Gornowicz

A família dos 'biblios'

Você sabe o que significa o termo bibliótafo? Ou bibliópola, biblioclastia, biblioclepta e bibliognosta?

A palavra alfarrábio origina-se do antropônimo árabe Al-Farabi, filósofo que viveu em Bagdá no século IX. Significa “livro velho e de leitura enfadonha, cartapácio, e daqui alfarrabista, colecionador ou vendedor de alfarrábios, o que manuseia alfarrábios, caturra” (Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1º volume, 1950-1954). Vários dicionários etimológicos confirmam a origem da palavra, mas ela só viria a ser definida semanticamente com o sentido de “livro velho de pouca estimação” a partir do século XVIII. A 1ª edição do Dicionário de Morais (1789) adota a definição de “livro velho”, ao mesmo tempo que o alfarrabista é definido como “o que contrata em livros em segunda mão”; os continuadores de Morais acrescentaram arbitrariamente ao verbete a expressão “ou de leitura enfadonha.

Frei Domingos Vieira, no seu Dicionário (1871), dá a seguinte definição para o termo alfarrábio: “livro velho, cartapácio, calhamaço manuscrito”. Segundo ele, o termo se aplica tanto ao livro impresso como ao manuscrito e alfarrabista é “o que negocia livros velhos”.

O comércio do livro antigo ou simplesmente usado sempre existiu, mas tornou-se comum sobretudo depois da invenção da imprensa. No século XVI, as primeiras feiras-do-livro, os Mess Kataloge de Frankfurt e de Leipzig são considerados os antepassados remotos dos catálogos atuais, onde o cliente pode escolher a mercadoria em casa e solicitá-la ao livreiro.

Já a palavra bibliófilo, traduzida ao pé da letra significa “amante de livros” (do grego biblion, livro, e philos, amigo). O substantivo amante tem muito mais a ver com o bibliófilo do que o adjetivo amigo. 

Há muitos bibliomaníacos, com verdadeiras e monumentais bibliotecas, até com algumas raridades, mas que consideram o livro apenas como um passatempo ou um investimento. Compram livros pela aparência e pelo peso, como se fossem frutas. Assim, a diferença entre bibliófilo e bibliômano não é de essência, mas de grau de intensidade.

É frequente a bibliofilia degenerar em bibliomania; o bibliômano pode ser um homem culto, um intelectual, um investigador, em busca de documentos e material para a sua pesquisa. Mas tanto o bibliófilo como o bibliômano gostam de mostrar a sua biblioteca, têm orgulho pela posse de obras raras e que mais ninguém possui. Não escondem isso, mas pelo contrário, gostam de exibir as suas coleções. Já o o bibliótafo tem uma postura diferente; esta palavra significa “enterrador de livros”, ou seja: o bibliótafo compra livros, monta preciosas bibliotecas, mas não mostra a ninguém as obras que possui. Ao contrário, esconde-as à vista de todos como num túmulo, de modo que ninguém tem acesso a elas.

O livro também tem aqueles que o cultuam de maneira exibicionista, puramente formal: os bibliolatras.

Entre os amantes dos livros há também aqueles apaixonados somente por interesse comercial, o que é mais frequente. Quem junta livros para vender é chamado de bibliópola, que provem do grego polein, vender.

Mas, também, muitos sentem pelos livros um verdadeiro horror, ainda que disfarçado. A bibliofilia tem o seu antônimo no termo bibliofobia. Porém, muito pior do que esse horror passivo aos livros, é o horror ativo, que se traduz no prazer de rasurá-los e destrui-los; essa mania recebe o nome de biblioclastia, e este inimigo dos livros é chamado de biblioclasta.

Tanto a bibliofilia como a bibliomania podem levar ao roubo, e ao ladrão de livros aplica-se o termo biblioclepta.

Quando ama os livros, a pessoa é levada, naturalmente, a estudá-los, a procurar conhecer a sua história, título, datas das edições, lugares de impressão, editores, preço, etc.. Esta ciência é chamada de bibliognosia ou bibliognóstica, e quem se dedica a ela recebe o nome de bibliognosta. “Gnosés” vem do grego e significa conhecimento.
Bia Câmara (Publicado no Jornal do Bibliófilo, edição n° 4, julho de 2006)

Dança comigo?

Adam Pękalski, Baile dos livros

Invocar a Sebald

Flaubert viu o Saara inteiro em um grão de areia escondida na bainha de um vestido de inverno da Emma Bovary, escreveu Winfried Georg Sebald (1944 - 2001) em “Anéis de Saturno”, e de acordo com ele, de acordo com Flaubert, cada átomo pesado tanto quanto as montanhas de Atlas. O escritor cuja obra é, acima de tudo, uma ponte entre o passado e o futuro, um botão, um cerzir, vinculando a convulsiva e, em muitos aspectos, profundamente triste século XX, com a nova marca 21, era capaz de passar do micro para o macro em uma mesma frase, porque embora a literatura é em miniatura, aspira a representar a enorme, o universo, um universo, no caso de Sebald, em cujo coração bate a tragédia judaica. "O seu trabalho foi capaz de exercer um olhar crítico para a história," diz Pablo Helguera, responsável, juntamente com Jorge Carrión, da ambiciosa exposição do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) dedicada ao autor de Austerlitz. Seu título, “As variações Sebald” fica até julho em Madri, entre mariposas de papel negras, como en una sucessão de mutações de si mesmo.
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O predileto

Em algum lugar das estantes desta livraria, teu livreiro sabe que certo volume, escrito há séculos ou talvez ainda por escrever-se, é o mágico espelho em que por fim saberás quem és... Você, seu predileto e bem-amado leitor 
Alberto Manguel
 

Mercedes Berastegui

O personagem mais inesquecível que já conheci

Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada. Assim que tocava o sinal ao fim das aulas, eu voltava correndo para casa, na esperança de chegar ao apartamento em que morávamos antes que ela tivesse tempo de se transformar. Invariavelmente ela já estava na cozinha quando eu chegava, preparando leite com biscoitos para mim. No entanto, em vez de me livrar dessas ilusões, essa proeza só fazia crescer minha admiração pelos poderes dela. Além do mais, era sempre um alívio não surpreendê-la entre uma e outra transformação — muito embora eu jamais deixasse de tentar; eu sabia que meu pai e minha irmã nem faziam ideia da natureza real de minha mãe, e o peso da traição que, imaginava eu, recairia sobre meus ombros se alguma vez a pegasse desprevenida seria demais para mim, aos cinco anos de idade. Creio que eu chegava a temer a possibilidade de ser eliminado caso a flagrasse ao entrar voando pela janela do quarto, vindo da escola, ou então surgindo pouco a pouco, um membro de cada vez, emergindo do estado de invisibilidade, com avental e tudo.

Claro que, quando ela pedia que lhe contasse como tinha sido meu dia no jardim de infância, eu obedecia sem hesitação. Não tinha a menor pretensão de compreender todas as implica- ções de seu dom de ubiquidade, mas que ele servia para descobrir que espécie de menino eu era em sua ausência — disso não havia dúvida. Uma consequência dessa fantasia, que sobreviveu 10 (dessa forma específica) até a primeira série, foi que, julgando não ter alternativa, me tornei um menino honesto. Ah, e brilhante, aliás.
Philip Roth