sábado, abril 30

A leitura em estilo nobre

Inglês estilo Regency (Cent 19th) de mogno cadeira de braço biblioteca com capuz com apego chaise ajustável e almofada de couro.  E, uma bandeja para refrescos:

Cadeira inglesa em estilo Regência (século XIX), de mogno, com braço para leitura, cobertura, almofada em couro e bandeja para lanche

Buquinagem

Percorrer as estantes de um sebo, no exercício da saudável buquinagem, é às vezes um prazer leve como uma pescaria e às vezes tão excitante quanto uma busca sexual. Surpreendi um dia um setentão no canto menos iluminado da sala apalpando um livro de Erica Jong e falando baixo com ele, como se lhe propusesse algo.


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Desconhecer o que viemos fazer aqui nos livra de fadigas e decepções. Esqueçamos nossas presunções e gozemos a suprema delícia de não termos missão nenhuma.

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Quando chovia forte, Mário de Andrade, que dizia ser trezentos e cinquenta, não saía de casa. Mandava em seu lugar um dos trezentos e quarenta e nove outros.

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Bom tempo foi aquele em que o amor nos alimentava com fartura, para que cumpríssemos suas demandas noturnas e, se delas nos descurássemos, pudéssemos resistir ao rancor do seu chicote.

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O que está sempre em jogo no amor é a fixação de um domínio, de uma primazia. Mesmo que esse domínio e essa primazia consistam, para quem os fixa, em submeter-se, de plena vontade, ao domínio e à primazia do parceiro amoroso.

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Se eu fosse um apóstolo do amor, se eu fosse digno dessa missão, o livro-base do meu culto – a bíblia, por assim dizer – seria O museu da inocência, de Orhan Pamuk. Não conheço nenhum que se equipare a ele em força lírica, em delicadeza, em suavidade. Eu daria a alma para tê-lo escrito – o que, na verdade, significa que gostaria de ter vivido a história do personagem Kemal, subjugado por uma lembrança amorosa tão pungentemente agradável de ser sofrida que ele bem mereceria mais de uma vida para vivê-la. O museu da inocência é um livro para aqueles que não se envergonhariam de lamber uma estátua do amor, ainda que fosse obra do pior dos escultores e feita com a mais reles das argilas.

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Quem se julga heroico quando se declara disposto a dar a vida pelo amor não faz nada além de reproduzir hoje um hábito muito comum outrora.

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Porque nossos braços já não são os mesmos, as árvores derrubam gentilmente seus frutos para nós. Não são os melhores, sabemos, mas já aprendemos a não nos lamentar.

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O que o amor de mais cruel tem é quando nós lhe dizemos que sem ele morreremos, e ele, distraído, diz: hem?

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Quem mais fala de amor e quem menos o define são os poetas.

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Que alma seria suficientemente tola para querer ser a minha?

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Todos os poetas deveriam morrer por amor. É a única coisa que, em sua biografia, pode legitimá-los.

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Sou um entusiasmado adepto da apatia.

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Ter existido um homem chamado Shakespeare, que fez o que fez, é quase tão inacreditável quanto existir Deus.

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Poemas de amor deveriam ser vendidos em floriculturas.

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Para os suicidas mais convictos, morrer acaba se tornando um projeto de vida.

sexta-feira, abril 29

Bom dia, leitura

Estilosamente lectora (ilustración e Roxy Lapassade)
Roxy Lapassade

Para quem não gosta de ler

No último sábado, 23 de abril, comemorou-se o Dia Mundial do Livro, criado pela Unesco para encorajar as pessoas, especialmente os jovens, a descobrir os prazeres da leitura e a conhecer a enorme contribuição dos autores de livros através dos séculos. A data foi escolhida pelo fato de que, neste dia do ano de 1616, morreram Miguel de Cervantes, William Shakespeare e Garcilaso de la Vega. Outros escritores importantes também nasceram ou morreram em 23 de abril, como Maurice Druon, Vladimir Nabokov, Manuel Mejía Vallejo e Josep Pia.

Viajantes Literários:
Tenho íntima relação com os livros e não poderia deixar de aproveitar o espaço desta coluna para comemorar a data. No entanto, tomado pelo espírito da festividade, direciono este texto não aos meus pares — aqueles apaixonados por livros, que devoram as páginas para mergulhar em um novo mundo —, mas sim àqueles que não gostam de ler; que acham chato, monótono ou perda de tempo. Faça ao menos um esforcinho e chegue ao final deste texto. Quem sabe assim a gente não tem uma boa conversa?

Antes de tudo, é importante dizer que eu o entendo. Mais do que isso, até meus 13 anos, eu era como você: havia lido apenas alguns livros obrigatórios do colégio e não extraía qualquer prazer daqueles clássicos. Conhecimento eu até extraía, vá lá, mas ninguém gosta de conhecimento sem algumas doses de diversão aos 13 anos de idade. Nesta coluna, já escrevi sobre como as leituras escolares são grandes responsáveis pela formação de não-leitores no Brasil. Não pretendo me repetir. Mas, apenas para retomar o conceito, acredito que os principais erros estão no momento e na abordagem das leituras escolares.

Não há dúvidas de que Machado de Assis e Guimarães Rosa escreveram grandes livros, mas não canso de me perguntar se esses livros deveriam ser lidos por leitores ainda “virgens”, em processo para adquirir o hábito de pegar um livro e ler por vontade própria. A meu ver, o correto é que aquele que não gosta de ler comece por um texto mais simples, mais divertido, e, aos poucos, chegue a autores mais complexos e ricos na linguagem e no tema.

Em geral, esta caminhada inicial pelo mundo da literatura fica mais fácil quando encontramos um guia experiente. Não tenho dúvidas de que existe o livro certo para cada leitor — você pode achar chata aquela história de fantasia, mas se deliciar com aquela de terror ou com outra que narra uma saga familiar. Há os que preferem uma linguagem mais seca e direta, e há os que se encantarão com textos poéticos e rebuscados. A literatura abraça um mundo absolutamente democrático, repleto de possibilidades. Basta procurar com atenção até encontrar seu livro-alma-gêmea.

Quando eu tinha 12 anos, num fim de semana chuvoso, minha tia-avó Iacy me entregou um exemplar de “Um estudo em vermelho”, do Conan Doyle. Decidi ler mais pelo carinho que nutria por ela do que pela vontade de enfrentar o livro. Naquela madrugada, minha vida mudou. Meu interesse pela literatura nasceu (em especial, pela literatura de mistério) e decidi que seria escritor.

Naturalmente, não é assim que acontece com todo mundo. Em casa, meus pais não gostavam de ler e não compravam livros. Com o passar dos anos, decidi ser o guia de minha mãe. Comecei com os romances de Martha Medeiros e Walcyr Carrasco: leves, divertidos e gostosos de ler. Aos poucos, sem cobranças, entreguei livros de Amóz Óz e Italo Calvino — e ela também os devorou. Foi assim que conquistei uma nova leitora lá em casa.

Com meu pai, não foi tão fácil. Apresentei literatura policial: muito violenta. Literatura fantástica: muito surreal. Literatura romântica: muito água com açúcar. Biografias: muito detalhamento. Então, decidi atacar pelos assuntos de que ele mais gostava: turismo, samba e cervejas. Consegui um guia do Rio de Janeiro com pegada literária, que foi rapidamente devorado. Agora, dei de presente “Desde que o samba é samba”, de Paulo Lins. Vamos ver no que vai dar.

Conheço, ainda, muita gente que adorava ler na infância e na adolescência, mas acabou perdendo o hábito, sugado pelos compromissos. É claro que a vida adulta devora nosso tempinho de lazer, mas sempre dá para encontrar um jeito de voltar aos livros — nem que seja cortando um pouco as horas gastas nas redes sociais. Por isso, para comemorar o Dia Mundial do Livro, quero propor um desafio a vocês.

Àqueles que costumavam ler, mas perderam o hábito, que passem na livraria mais próxima e comprem o lançamento que chamar sua atenção. Comecem a ler nesta mesma noite (e tentem terminar até meados de maio, no máximo!).

A quem já gosta de ler, o desafio é outro: nas próximas semanas, conquiste um novo leitor. Seja paciente e evite a imposição. Ler deve ser prazeroso, antes de tudo. Busque indicar gêneros que vão ao encontro do perfil do leitor. Perguntar quais seus filmes e músicas favoritos costuma ajudar a encontrar o livro ideal.

Por fim, o desafio aos que não gostam de ler: permita-se viver essa experiência. Comece por algum livro cuja história o atraia. Se não gostar, pule para outro, sem medo de largar no meio. Experimente livros de todos os gêneros e estilos, desde suspense até poesia. Existe um universo incrível a ser desvendado. Vá em frente sem medo de ser feliz!

Raphael Montes

De volta da biblioteca

Returning from the library.:

Estantes que falam

hicockalorum:

Don Quixote - Svetlin Vassilev
 Svetlin Vassilev
Casei-me com um editor (muitos sabê-lo-ão) mais velho do que eu (mas muito mais jovem do que eu). Na nossa casa há, como podem calcular, estantes cheias de livros: as dele, as minhas e a nossa (mais dele do que minha porque eu, dada a falta de espaço, já só compro livros que tenho a certeza de vir a ler). No fim-de-semana passado, durante um telefonema da minha mãe demasiado longo a que já não conseguia prestar atenção, reparei que os livros das nossas estantes contam muita coisa sobre nós, incluindo a diferença de idades (que não nos separa). A estante do Manel tem imensos livros franceses (é a geração que aprendeu com a cultura francesa), a minha tem inegavelmente mais autores anglo-saxónicos (muitos são poetas). A do Manel tem todos os clássicos portugueses (e lidos), a minha é de uma pobreza confrangedora nesse sentido (vê-se bem que já havia televisão quando eu era adolescente, com séries à hora de almoço e tudo). A do Manel tem um sem-número de ensaios políticos (muitos pró-soviéticos e hoje datados e ilegíveis) que denunciam o seu passado interventor, na minha alinha-se uma série de títulos de divulgação científica (género que teve o seu apogeu nos anos 90 a par da transmissão de séries televisivas como Cosmos ou O Homem Verde e que também revelam os meus primeiros passos na edição, pois foi na Gradiva que comecei). A do Manel tem prateleiras só de teatro, a minha está cheia de guias turísticos dos tempos em que eu andava por aí a colecionar países desenfreadamente. Temos, claro, livros repetidos (esses são as nossas afinidades). De vez em quando, dizemos um ao outro que todos os livros que existem nesta casa (e o resto) são dos dois; mas alguém um bocadinho mais culto, se olhar as estantes com atenção, saberá imediatamente de quem é o quê.

quinta-feira, abril 28

É hora de acordar!

adhemarpo:

Alexander Wilke pour le magazine autrichien Die Muskete (1912)
Alexander Wilke para a revista austríaca Die Muskete(1912)

Perfume especial

Fechava os olhos e segurava o livro perto do nariz para inalar o cheiro peculiar das páginas, como se fosse um vinho de safra especial
Mikkel Birkegaard

Biblioteca Lego

Minhas memórias culturais familiares nos retratos pintados

Eram costume das famílias remediadas do sertão os retratos emoldurados e pintados à mão em cima de um móvel ou na parede ao lado dos santos de devoção.

Na casa da vovó e na da mamãe, todas as pessoas foram retratadas no que se denomina hoje “fotopintura”, arte que remonta ao início do século XX, antes das fotos coloridas, na qual, a partir de um retrato preto e branco, um colorista-pintor fazia sua arte sobre papel de sais de prata – hoje com recursos digitais: “Photoshop, scanners e outros programas e equipamentos de captação e tratamento de imagem disponíveis”, como relata Mestre Júlio, cearense fotopintor de retratos, eternizado em um livro: “Júlio Santos, Mestre da Fotopintura” (Editora Tempo d’Imagem).

Para ele, “o maior valor da fotopintura é ‘tatuar’ as pessoas nas paredes de uma casa”. Só não exibiam fotopinturas emolduradas famílias muito pobres. O sonho da tia Lô, irmã de meu avô Braulino, era ter retratos pintados de seus dois filhos de criação, Maria das Graças e Dé, além de seus nove filhos. Quando a Francisca, mulher de Dé, lhe fazia raiva, ela não perdia a chance de dizer que ela não merecia um retrato pintado na parede ao lado de seus santos de devoção!

Reprodução

Eram adornos tão caros que a tia Lô morreu aos cinquenta e poucos anos sem realizar sequer parte do acalentado sonho! Era uma prática cultural tão arraigada que estabelecia consensos no campo do caráter ao lado de outras verdades, tal como: “Marido bom, quando fica viúvo, se casa logo”.

Se o viúvo se casasse sem eternizar a morta em um retrato pintado, ficava falado e sem valor. Vovó era a primeira a dizer: “Eita que fulano deu ruim! Nem um retrato da falecida mandou fazer! Nisso é que dá mulher besta fazer economia pra quem não trabalhou gastar”.

Um dia, o retratista chegou. Tirou da mala um belíssimo retrato pintado da vovó. Mamãe, espantada, não se conteve: “Mãe, a senhora já tem um, pra que outro?!”. Vovó: “Mas é junto com Braulino. Não sei se vou morar com ele a vida toda”. A fotopintura virou fonte de ameaça até quando o pai velho falava com ela de “estucada” (sem educação). Ela dizia calmíssima: “Num grita comigo, não, que eu até já tenho meu retrato sozinha! Olha ali”. Meu avô se calava como que por milagre.

Nossas fotopinturas antigas são a memória de um doce tempo do qual sou herdeira. Tenho uma minha aos 3 anos com a minha boneca de pano preferida, envolta em lendas e lendas. Contam que só fiquei quieta para a foto depois que tive a boneca nas mãos – vovó disse para o fotógrafo que a abolisse no retrato pintado, e o pai velho mandou que ficasse porque eu era doida com ela. Caso contrário, o retratista não receberia o pagamento, pois quem pagava era ele; outra, aos 18 anos, com a minha irmã Júlia adolescente; e outra de meu pai aos 30 anos. Tenho paixão por elas porque, para além da arte, são repletas de nossas histórias.

Quando passou a moda de pendurá-los na parede, meados de 1970, já em Imperatriz, mamãe, que era filha única, e vovó doaram os retratos pintados para a netaiada. Acho que só eu os conservei, pois, por mais que pergunte, ninguém dá notícia deles, que eram uns 12!

Quando morei em BH, vovó passou dois meses comigo em 1989 e, vendo as fotopinturas, disse-me, em lágrimas: “Tu guardas com tanto carinho! Tenho arrependimento de não ter te dado todas”. Em 1993, mamãe, chorando, disse: “Tu és muito cuidadosa. Pena que não te demos todas. As outras se acabaram”.

Há quem diga que os retratos pintados são sonhos-tatuagens de alma. Concordo, pois a memória cultural é composta por heranças simbólicas.

terça-feira, abril 26

Muitos imitam Peter Pan

Troque a TV por um livro

A televisão hoje em dia 
Só mostra corrupção
Violência e pornografia
Conflitos e traição
Televisão desinforma
Boa leitura transforma
E forma um bom cidadão
Nota zero p’ra televisão
Nota dez para leitura
Enquanto sobra podridão
Falta programa de cultura
Ao invés de conteúdo
Festival de vale-tudo
Maldade e descompostura
Abrace a literatura
Não aumente a audiência
Do programa que fatura
Com fofoca e violência
Passo firme, pulso forte
Evite, exclua e boicote
Não dê vez a indecência
Escolha tem consequência
Nem tudo é informação
Busque algo de excelência
Invista em educação
Descarte a tela de vidro
Troque a TV por um livro
Eis a minha sugestão

segunda-feira, abril 25

Um luxo de simpatia

Arma contra os entediantes

art-is-art-is-art:

The Convalescent, Ambrose McEvoy
Ambrose McEvoy

Se vierem com essa história de Deus, família, filhos e netos, saco da arma que uso sempre que me entediam: um bom livro

Humor

A celebração do livro

 Il n'existe qu'une façon de lire et elle consiste à flaner dans les bibliothèques ou les librairies, à prendre les livres qui vous attirent et ne lire que ceux-là, à les abandonner quand ils vous ennuient, à sauter les passages qui traînent et à ne jamais rien lire parce qu'on s'y sent obligé, ou parce que c'est la mode.
Doris Lessing, Carnet d'or
Prefiro ser lido muitas vezes por um só do que uma só vez por muitos.
Paul Váléry, Cahiers

Os livros são a obra-prima que todos nós temos como sendo nossa. Comprámo-la onde queremos para a termos onde desejarmos. Não interessa se quem a produziu tenha os direitos de autor. A consciência de obra-prima passa pelo conhecimento da nossa incapacidade para a produzir. Sabemos que só alguém com talento a soube criar para nós. Pertence-nos desde o momento que a descobrimos, que a adquirimos. É nossa. E como obra-prima é objecto da nossa atenção , do nosso deleite, da nossa constante e infinda devoção. Com ela abrimos horizontes, por ela descobrimos que somos universais: o mundo entra-nos pela porta sem que tenhamos de sair de qualquer lugar. E quando o amor se descobre no artista que a produziu , os laços agregam-se em ritos. Lemos e relemos todas as suas obras. Um lugar é-lhe atribuído junto àqueles que já lá moram: o retábulo dos eleitos.

Catalogamos os nossos livros por autores. Alguém disse que levamos uma vida inteira a ler para descobrir os livros ou os autores que releremos na velhice. E daí que o acto de leitura tem um ritual que se vai construindo . Descobrimos o primeiro livro para ler o segundo , comprar o terceiro e nunca mais deixar de os querer. Vamos lendo por prazer , por necessidade, por estudo , por consulta até que passamos a ler apenas o que nos enleva, o que nos toca. A liberdade de rejeitar torna-se nossa. Lemos o que lemos porque a soma de tanta leitura nos dá o direito de leitor, daquele que escolhe os escritores da sua vida.

23 de Abril, Dia Internacional do Livro. Ano de 2016 ,dia dos 400 anos da morte de Shakespeare e o dia seguinte àquele que regista também a morte do grande Miguel Cervantes. Dois nomes que se eternizarão no retábulo da memória literária dos tempos. 
 
Todos os lemos. Descobrimo-los, talvez, em idades diferentes, por razões diferenciadas ou apenas pelo prazer da leitura. O gosto pelos livros é o motor que acelera a descoberta.

sábado, abril 23

É hora do café

Nos sumergimos en un chocolate compartido y en la lectura (ilustración de Antonello Silverin)
Antonello Silverin

Ler devia ser proibido

A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.

Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary.

En el árbol de la biblioteca todos compartimos lecturas (ilustración de Jesse Klausmeier)
O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram.

Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.

Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens.

Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlim-pim-pim, a máquina do tempo.

Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metros, ou no silêncio da alcova. Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.

Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.

Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Além disso, a leitura promove a comunicação de dores e alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.

Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

Guiomar de Grammont

Portal da estrada

Os 400 anos de morte de Cervantes e Shakespeare

Dois escritores de dimensão universal, profundos e espirituosos virtuoses da pena e do papel, filhos das mais ricas potências europeias de sua época: fora isso e a data da morte – 23 de abril de 1616 –, William Shakespeare e Miguel de Cervantes Saavedra parecem não ter muito em comum. O destino lhes designou sortes e azares bem distintos.

Quanto às datas exatas do nascimento de ambos reina incerteza: Shakespeare teria vindo à luz no fim de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon, Inglaterra; estima-se que seu colega espanhol nascera 17 anos antes em Alcalá de Henares, nas cercanias de Madri.

Enquanto o inglês foi educado na prestigiosa escola de latim de sua cidade natal, lá aprendendo os fundamentos da retórica e da poesia, Cervantes, que provinha de uma família de nobres arruinados, provavelmente estudou teologia na Universidade de Salamanca.

Logo a vida do espanhol tomou um curso aventureiro. Aos 22 anos, mudou-se para Roma – fugindo da Justiça de seu país, ao que tudo indica. No ano seguinte, alistou-se numa companhia de soldados e passou a servir como camareiro do futuro cardeal Giulio Acquaviva.

Em 7 de outubro de 1571, participou da batalha naval de Lepanto, contra o Império Otomano. Em combate, foi atingido duas vezes no peito, e uma bala seccionou um nervo de sua mão esquerda, inutilizando-a, fato que lhe valeria o apelido "El Manco de Lepanto".

O Bardo de Avon, por sua vez, jamais frequentou uma universidade. Durante cerca de sete anos, no fim da juventude, perdeu-se toda pista dele. Somente em 1592 seu nome voltou a aparecer, num panfleto em que o escritor Robert Greene o tacha de "furão" e "convencido".

Tal comentário levou os pesquisadores a deduzirem que, aos 28 anos, Shakespeare já obtivera uma certa projeção como dramaturgo. Como ator, ele integrou a trupe de teatro Lord Chamberlain's Men, rebatizada como King's Men sob o rei James 1º. E logo brilharia na Inglaterra elisabetana com suas montagens e peças teatrais.

Por volta dessa mesma idade, em 1575, Cervantes foi capturado ao retornar com a frota naval para a Espanha e, juntamente com o irmão Rodrigo, mantido como escravo em Argel por cinco anos. Para pagar o resgate, o pai empregou toda sua fortuna, a irmã sacrificou o dote, porém só Rodrigo foi libertado.

Após quatro tentativas de fuga frustradas, em 1580 a liberdade de Miguel de Cervantes foi comprada pela ordem religiosa dos trinitários. Consta que o autor só sobreviveu às fugas por ter impressionado com sua coragem o vice-rei de Argel, que também acalentava esperança de obter por ele um resgate mais avantajado.

Cervantes elaborou as experiências do cativeiro em sua primeira peça teatral, Los tratos de Argel, que, no entanto, ficou ignorada pelo público espanhol. Devido à permanente falta de sucesso e falta de dinheiro, de 1580 e 1583 ele foi novamente forçado a servir como soldado.

Ao contrário do espanhol, que nunca conseguiu viver da literatura, Shakespeare cedo gozava de sucesso como escritor e negociante. Sócio do Globe Theatre e, mais tarde, do Blackfriars Theatre, com plateia coberta e mais exclusivo, ele acumulou fortuna, sendo proprietário da segunda maior casa de Stratford-upon-Avon.

Nessa altura da vida, Cervantes passou a trabalhar como atacadista e fornecedor da frota de guerra da Espanha. Devido a negócios mal-sucedidos, voltou a ser preso em 1597-98 e em 1602.

No cativeiro começou a escrever sua obra-prima: O engenhoso fidalgo Don Quixote de La Mancha, parodiando os romances de cavalaria populares na época, e que seria lançado em duas partes, em 1605 e 1615. Embora encontrando sucesso imediato, os lucros da publicação ou ficaram nas mãos do editor ou foram reinvestidos em edições sucessivas.

Numa votação promovida pelo Instituto Nobel, em 2002, Dom Quixote foi escolhido como "melhor livro do mundo" por um júri composto por 100 autores de renome. Na história da literatura ocidental, ele marca o nascimento do romance moderno. A narrativa se presta a numerosas interpretações, e até hoje analistas disputam qual seria sua real mensagem e a que público-alvo se destinaria.

O "Bardo" retornou à Stratford natal poucos antes de morrer, aos 52 anos. Por sua vez, Cervantes ainda foi injustamente acusado de homicídio em 1605. A mais esse percalço numa vida atribulada, porém, seguiu-se uma fase de grande atividade literária, até a morte do autor, em Madri, com sintomas de diabetes.

Apesar de ambos serem celebrados em 23 de abril, Shakespeare morreu dez dias depois do colega espanhol. A explicação é que, na época, seus países utilizavam sistemas de contagem de tempo distintos: enquanto a Espanha já adotara o calendário gregoriano, a Inglaterra ainda se orientava pelo juliano.

Shakespeare foi sepultado na Igreja da Santíssima Trindidade. Embora fosse sabido que Cervantes pedira para ser enterrado no Convento das Trinitárias Descalças, em gratidão pela libertação de Argel, só em 2015 seus restos mortais foram localizados num nicho da cripta do convento: as iniciais "M.C." no caixão e os documentados ferimentos na mão e no peito permitiram a identificação.

Um ponto comum entre os dois autores mortos há 400 anos: apesar da distância geográfica e das biografias díspares, ambos enfocaram repetidamente em sua obra o conflito entre ideal e realidade, tematizando a questão "O que é realidade, o que é sonho?".

Assim, enquanto em Dom Quixote, Miguel de Cervantes deixa o leitor na dúvida se seu protagonista é um patético palhaço senil ou um idealista arrebatado, em Sonho de uma noite de verão ou em A tempestade William Shakespeare engendra um intrincado labirinto de estranhamentos, no qual verdade e ficção se confundem sem cessar.

sexta-feira, abril 22

Sugestão para a manhã

Lectura primaveral (ilustración de John Burningham)
John Burningham

Sem enfeite nenhum

A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?

Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.

Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom’, danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.

Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia… A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.

Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.

zitterberg:

James Tissot (1886-1902), Kathleen Newton in an Armchair, 1878.
Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.

Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.

Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.

Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.

Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.

Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.

Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.

Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.

Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.

Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.

O Senhor te abençoe e te guarde,
Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,
O Senhor te dê a Paz.

Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.

Era raiva não. Era marca de dor.
Adélia Prado

Liberte-os

Mariusz Stawarski 

Sebo solidário

Existem dois momentos importantes na vida de um leitor: aquele em que ele se apaixona pela literatura e sai comprando livros compulsivamente e outro, quando a biblioteca está abarrotada e é preciso selecionar o que fica e o que será repassado. Na minha adolescência, vivi a primeira fase. Felicidade era passar a tarde na Travessa, na Saraiva ou no Sebo Baratos da Ribeiro (na época, em Copacabana). Os livros tinham (e ainda têm) algo de sagrado para mim; eu cheirava suas páginas, sentia seu peso e textura antes de mergulhar na história — evitando abrir muito as folhas para não marcar a lombada, claro. Foi nesse período de imersão nos livros que conheci o Sebo Solidário Celpi — Costura e Lactário Pró-Infância. Se você for como eu, acho que vai gostar de conhecer também.

O Celpi é uma obra social criada em 1925 com o objetivo de produzir enxovais de bebê para gestantes carentes que chegavam aos hospitais cariocas sem uma peça de roupa sequer para seus bebês. De lá pra cá, o trabalho se ampliou. Os enxovais continuam sendo produzidos por equipes de voluntárias que se encontram semanalmente, mas a obra abraçou outros desafios como atender famílias carentes da IV Região Administrativa, com concentração na comunidade de Santa Marta (Botafogo), com cestas básicas, agasalhos no inverno, material escolar no início do ano para as crianças matriculadas na rede pública, presentes na Páscoa, Dia das Crianças e Natal; e também disponibilizar muitos serviços em sua sede: reforço escolar, atendimento jurídico, psicanalítico e psicopedagógico, aulas de informática, xadrez, artes, dança, teatro e yoga.

Onde nós, apaixonados por livros, entramos nessa história? Explico: Mariana Albuquerque, professora no Departamento de Economia da PUC, era vinculada ao Celpi e, certo dia, chegou à segunda fase que mencionei lá no início: precisava desmanchar uma estante do seu pai e se desfazer de alguns livros ótimos de economia e política. Resolveu, então, fazer uma venda beneficente e acabou se tornando livreira solidária.

Sebão entre pilotis da PUC-Rio
Como funciona? Simples! Mariana preparou uma lista com os livros disponíveis e circulou por e-mail entre seus colegas de departamento. Todos os livros foram vendidos. Aos poucos, foram chegando mais livros, as listas foram crescendo e alcançaram cada vez mais pessoas: uma comunidade de leitores solidários começou a ser criada. Atualmente, todos os livros à venda são doados, e o trabalho dos livreiros é voluntário. Com isso, a receita gerada é revertida integralmente para ajudar aos que mais precisam. Assim, o Sebo Solidário Celpi cumpre uma dupla missão: além de angariar fundos e ajudar a manter os projetos da Celpi, democratiza a leitura oferecendo livros de qualidade por bons preços.

Além de vender na Celpi e pela internet, eles participam de bazares beneficentes e eventos. Neste ano, pela terceira vez, passaram uma semana nos pilotis da PUC, tendo vendido mais de 3.500 livros. Na sede da Celpi, há ainda um banco de livros didáticos de todas as séries do ensino fundamental e médio que são distribuídos gratuitamente para qualquer pessoa que quiser ir lá buscar. Às quartas-feiras é dia de bazar solidário, e sempre há uma mesa de promoção com livros por R$ 2.

Vale muito a pena. Acabei entrando na lista de e-mails do Sebo Solidário Celpi por acaso. Tem de tudo, entre clássicos, literatura brasileira contemporânea, estrangeira, didáticos e não ficção. Enquanto estava naquela primeira fase, comprei centenas livros com eles, muitos de Agatha Christie, Arthur Conan Doyle e Stephen King. Hoje, são mais de cinco mil livros cadastrados com preços a partir de R$ 5. O pessoal é confiável e envia livros pelo correio para todo o Brasil, atingindo até pessoas que reclamam que não há sebos em suas cidades.

Interessados em receber as listas devem mandar um e-mail para eles em sebosolidario@gmail.com. Indiquem aos amigos apaixonados por livros para que entrem nesse grupo. E se você, assim como eu, está naquela fase de se desfazer de alguns livros porque a biblioteca está abarrotada, doar para o Sebo Solidário é sempre uma ótima opção também.
Raphael Montes

quinta-feira, abril 21

Biblioteca viajante

Biblioburro, lectura viajera (ilustración de Junaida)
Junaida

Fábrica de cérebros

Se toda uma família é inequivocamente bem-sucedida, é natural pensar que os pais têm alguma coisa que ver com isso. Os pais e… os livros. Leio no El País uma interessantíssima reportagem sobre os geniais Martinón Torres, sete irmãos espanhóis nascidos entre 1971 e 1982, filhos de um pediatra e de uma enfermeira, que são todos uns craques na actualidade e nasceram numa casa que tinha uma biblioteca de 20 000 volumes (o pai era bibliófilo) ocupando um andar inteiro. Nunca foram forçados a ler, a leitura pareceu-lhes uma consequência natural nessa casa onde passaram a infância e puderam viver aventuras épicas sem ter de ir muito longe. Entre um catedrático de Arqueologia na Universidade de Londres, uma paleoantropóloga de renome com trabalho assinalável por todo o mundo, dois pediatras, um dos quais uma referência em vacinação infantil, uma geriatra com uma tese de doutoramento sobre a velhice nos quadros de Velásquez, um gestor e um director de comunicação, há de tudo um pouco nesta família de cérebros – e todos leram muito desde pequenos, o que ajuda a compreender o nível a que chegaram nas respectivas profissões. 
Maria do Rosário Pedreira

Totem de livros

Aquila Books, Calgary, em Alberta, no Canada 

Os esquemas em pirâmide chegaram aos livros

O sistema da pirâmide é um método já conhecido que permite entrar com pouco e sair com muito. Este sistema costuma ser utilizado para (tentar) ganhar dinheiro, mas agora anda a circular uma versão com livros. O esquema é simples: seis pessoas enviam um livro por correio a alguém e, em troca, recebem 36 livros sobre o tema de sua preferência.

Estas “árvores dos livros” começaram a criar burburinho nas redes sociais em 2015, altura em que começaram a circular mensagens como esta: “Estou à procura de seis pessoas de qualquer idade que queiram participar numa troca de livros. A única coisa que é preciso fazer é enviar um livro (não necessariamente novo, mas em bom estado) a uma pessoa por correio. Como resultado receberão 36 livros da temática que vos interesse (sim, leste bem, 36). Comentem se estão interessados para mandar-vos as instruções por mensagem privada.”


Os números podem parecer estranhos, mas este é um sistema piramidal como outro qualquer. Para obter resultados é necessário recrutar novos membros que, por sua vez, também recrutem outros tantos elementos para o grupo. Os sistemas não são novos e o seu resultado é sempre o mesmo: mais cedo ou mais tarde acabam sempre por falhar: as únicas pessoas que conseguem tirar proveito são as que entraram primeiro para o esquema, estando por isso no topo da pirâmide.

A única diferença desta pirâmide para as que funcionam com dinheiro é que as pessoas que as criam são, provavelmente, mais bem-intencionadas. Passam a maior parte do tempo a gerir mensagens, comentários e queixas dos membros da cadeia, muitas vezes sem receber nada em troca (quando muito 36 livros). Estas redes que antes eram administradas por via postal, agora são organizadas na internet em comunidades online muito ativas. Isto permite que o recrutamento seja muito mais simples. Muitas das vezes os elementos não têm que fazer grandes esforços para divulgar a iniciativa e é a própria administração do grupo que trata de criar correspondência com novos membros que se mostrem interessados em participar no esquema.

Mas, à medida que o esquema vai progredindo, torna-se cada vez mais difícil angariar novos membros. Porque, a partir de certo ponto, o número de membros necessários para alimentar esta cadeia ultrapassa a população mundial. Como se explica neste esquema:

Nível 1: (que não dá livros a ninguém ou pode fingir que já está dentro de uma cadeia e oferecer um livro a alguém da sua preferência)
Nível 2: 6 pessoas
Nível 3: 36 pessoas
Nível 4: 216 pessoas
Nível 5: 1.296 pessoas
Nível 6: 7.776 pessoas
Nível 7: 46.656 pessoas
Nível 8: 279.936 pessoas
Nível 9: 1.679.616 pessoas
Nível 10: 10.077.696 pessoas
Nível 11: 60.466.176 pessoas

Quem entra na corrente quando ela já vai no nível 7, precisa que entrem 1.679.616 novos membros e que cada uma dessas pessoas envie um livro para poder receber alguma coisa. Isto porque não se recebe os livros do nível seguinte, mas sim de dois níveis depois. No nível 14 é preciso que participem mais de treze mil milhões de pessoas – mais que população mundial. Este limite pode ser atrasado se se diminuir o número de novos membros necessários mas, inevitavelmente, chega sempre a altura em que o sistema se torna incomportável.

Estes mecanismos são aliciantes pela sua simplicidade e vão continuar a existir, mas é preciso ter atenção, já que esta estrutura só funciona nos primeiros níveis e são mais as pessoas que perdem que as que ganham. E as que ganham fazem-no à custa de todos aqueles que não receberam nada.

quarta-feira, abril 20

Pouco que é muito


Não sou espelho, não reflito, não repito. Sou um bom livro, páginas envelhecidas e uma boa história
Marjila Agostini

Queremos mais

Obras-primas em cópias de luxo

Manuel Moleiro, editor galego estabelecido em Barcelona, tem motivos para estar orgulhoso. Os seus livros – réplicas exatas de atlas ou manuscritos iluminados – são apreciados por personalidades como Juan Carlos, George Bush ou Nicolas Sarkozy. O Papa João Paulo II dormia com uma obra saída da sua oficina na mesa de cabeceira.

Manuel Moleiro com a réplica de um códice medieval 
Por estes dias o editor espanhol encontra-se no Porto, onde inaugurou na quinta-feira a exposição Tesouros Bibliográficos (séculos X-XV): A Arte e o Génio ao Serviço do Poder. Trata-se de uma oportunidade rara, diz Moleiro, para ver obras-primas da arte da cartografia e do livro como o Atlas Vallard (de 1547), o Breviário de Isabel a Católica (finais do século XV) ou a Bíblia de Saint Louis (1226-1234). Até 1 de maio, «é como se a Morgan Library de Nova Iorque, a British Library, a Biblioteca Nacional da Rússia, a Biblioteca Nacional de França e ainda outras grandes instituições mundiais» estivessem reunidas sob o teto do Palácio da Bolsa, no Porto, considera o editor. Embora não sejam, evidentemente, os códices originais a em exposição na Invicta, as cerca de 30 cópias exibidas revelam-se tão fiéis que é impossível, garante Moleiro, dar pela diferença.

A M. Moleiro Editor, que tem por divisa ‘a arte da perfeição’, acaba também de juntar ao seu catálogo de ‘quase-originais’ o Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado. Nas palavras de Silvestre Lacerda, diretor da Torre do Tombo, trata-se de «um dos tesouros do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e uma das obras mais marcantes da cartografia portuguesa e internacional».

Datado de 1571, o Atlas Universal de Dourado é uma obra de aparato, ou seja, destinada a deslumbrar e impressionar. Pouco sabemos hoje sobre o seu autor, mas presume-se que fosse «filho de Fernão Dourado, moço de corte que em 1513 embarcou em Lisboa para a Índia», nota João Carlos Garcia, professor da Universidade do Porto. «O nome Dourado, a ser tomado por alcunha, poderia apontar para uma origem profissional, porventura derivada de douradores ou de ourives», escreve Amélia Polónia, do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto, no livro de estudos sobre o Atlas que acompanha a obra em fac-símile. De certo, só sabemos que foi um cartógrafo do qual nos chegaram cinco atlas e que se identificava pelo cargo militar de «fronteiro nestas partes da Índia». «Associava o domínio da topografia do terreno», continua Amélia Polónia, «às suas competências militares», tendo participado no segundo cerco de Diu em 1546.

domingo, abril 17

Domingo de leitura

Domingo de primavera: paseo y lectura, con sol o con lluvia (ilustración de Sergio Gontz)
Sergio Gontz

Os 400 anos da morte de William Shakespeare e Miguel de Cervantes

William Shakespeare pôs no papel e no palco, como nenhum outro autor, a luta pelo poder e os dramas do amor. Miguel de Cervantes criou o personagem que se tornou o símbolo maior da aventura humana entre sonho e loucura. Mortos há 400 anos, os pais do teatro e da literatura modernos deixaram para nosso tempo, mais do que isso, pistas valiosas para nossa compreensão do mundo e de nós mesmos. Nos próximos dias, eles serão lembrados pelo público por um conjunto de obras que retrataram a tragédia e a comédia da vida.

Oficialmente, eles morreram em 23 de abril. Mas os leitores que homenagearem os dois nesse dia estarão participando, na verdade, de uma pequena ficção. Explica-se: naquela época, a Inglaterra ainda usava o calendário juliano, enquanto a Espanha já havia adotado o gregoriano, comum hoje em todo o Ocidente. Assim, o 23 de abril em que Shakespeare morreu corresponde ao nosso 3 de maio. O bardo inglês, portanto, se foi dez dias após o romancista espanhol — e ainda há a tese de que Cervantes teria morrido no dia 22. Nada que atrapalhe as celebrações, é claro, e elas já estão a todo vapor desde o início do ano pelo mundo, inclusive no Brasil. A confusão de datas, porém, acrescenta à festa uma dimensão farsesca que provavelmente divertiria os dois autores.

A diferença de calendários é também um bom lembrete da distância entre os mundos de Shakespeare — a turbulenta Inglaterra da rainha Elizabeth imersa em conspirações — e de Cervantes — a Espanha opulenta que vivia seu Século de Ouro. Apesar disso, é grande a tentação de imaginar que os gigantes das letras se conheceram, ou ao menos se leram, como mostram livros e filmes dedicados ao assunto.


A primeira hipótese, pouco provável, é tema do filme “Miguel e William”, dirigido pela espanhola Inés Paris, que será exibido dia 29 no Rio como parte dos festejos do Instituto Cervantes. A comédia romântica especula que Shakespeare, em um período pouco documentado de sua vida, na década de 1580, teria morado em Madri, conhecido o romancista e até, vá lá, disputado com ele o amor de uma mulher.

Já a hipótese de que eles se leram tem um defensor de peso, o historiador francês Roger Chartier. Especialista na história do livro e da leitura, Chartier publicou em 2011 o ensaio “Cardenio entre Cervantes e Shakespeare” (Civilização Brasileira), que investiga a relação entre os dois autores a partir de um fato curioso. A peça “A história de Cardenio”, atribuída a Shakespeare e seu colaborador John Fletcher, é protagonizada por um personagem saído das páginas de “Dom Quixote”. Cardenio é um homem amargurado que narra ao Cavaleiro da Triste Figura a desventura amorosa que o levou a ter a mulher de sua vida roubada por um figurão. A peça elimina Quixote e se concentra na história de amor.

Leia mais reportagem de Guilherme Freitas e Luiz Felipe Reis

Reading in the rain

Autoajuda literária

Um certo escritor belga chamado Paul Nyssens (1870-1954), engenheiro civil por formação, dedicou boa parte de sua vida a um tipo de literatura que se poderia chamar "psicologia popular", uma espécie de antepassado da autoajuda.

Publicou livros em que divulgava práticas relacionadas à boa saúde, à higiene, ao comportamento social e à "autogestão pessoal". Fazia palestras abertas ao grande público e se dedicava a formar alunos por correspondência. Era adepto do uso do esperanto e da alimentação vegetariana. Em suma, um educador por conta própria, imbuído do desejo sincero de influenciar pessoas e melhorar o mundo.

Um de seus livros tinha a generosa pretensão de nos ensinar a ler e estudar com mais proveito: Comment lire et étudier avec le plus de profit. Publicado em Bruxelas em 1913, alcançou relativo sucesso. Sua dedicatória diz tudo: "Dedicamos este livro às mulheres e aos homens ambiciosos de complementar sua própria educação, harmonizar sua personalidade, fortalecer seu caráter e superar sua condição presente".

monolithzine:

Uncredited

Relacionava leitura e estudo a uma existência melhor. Acreditava (com ingenuidade, talvez) na ideia de que nos livros podemos encontrar tudo o de que necessita uma pessoa para formar-se. Via naquele início de século 20, cheio de promessas e lacunas, ameaças e possibilidades, um tempo de preparação do indivíduo para os desafios da vida moderna. Todos tinham o direito, e o dever, de estudar. Praticava e defendia o autodidatismo, na medida em que via no sistema educacional vigente uma série de falhas. Estava convicto de que o futuro pertenceria àqueles que se dedicassem ao próprio aperfeiçoamento, pela via da autoeducação.

Interessante frisar que para Paul Nyssens a leitura não é um ato qualquer. Tem implicações quase morais. Deve ser uma bonne lecture. Não se trata de ler por ler, ou de uma obrigação fria e rotineira. A leitura deverá ser boa para que faça bem ao leitor e torne o leitor um bom estudante, um ser humano bom, um bom cidadão.

Um dos principais benefícios da boa leitura é cuidar do autoconhecimento, atividade vinculada ao aperfeiçoamento, seguindo a melhor tradição platônica. À medida que lê, o leitor estuda a si mesmo, descobre seus pontos fortes e suas fraquezas, e dispõe-se a lutar para adquirir virtudes.

Por exemplo, talvez o leitor descubra, quando lê e estuda com muita rapidez, que não retém na memória os conceitos que um autor lhe ofereceu. Tomando ciência, então, de que é precipitado, apressado, inquieto, fará o esforço de ler mais lentamente, buscará assimilar com calma o conteúdo do livro.

E assim por diante. O ato de ler vai revelando o teor do livro, mas, simultaneamente, quem o leitor é: preguiçoso, dispersivo, impaciente, inseguro, com memória deficiente. Num segundo momento, a própria leitura se torna o melhor campo de batalha para combater falhas e desenvolver capacidades.

A boa leitura é boa na medida em que o leitor pratica uma ascese psicológica e comportamental. De palavra em palavra, de frase em frase, de parágrafo em parágrafo, de página em página, exercita-se, luta para atingir objetivos de aprimoramento pessoal. Cultivará uma atitude mais positiva perante si mesmo e as tarefas a cumprir. Será, portanto, mais consciente e esforçado. Será mais perseverante. Mais disciplinado. Mais concentrado. Mais entusiasmado. E mais ambicioso.

Vale ressaltar o fascínio que a palavra ambition exerce sobre Paul Nyssens. O ato de ler não é ato puramente intelectual, mas envolve a vontade. Mexe com o querer, tanto quanto com o saber. Aliás, é preciso ter vontade firme para saber:

Cultive a ambição ardente de conhecer tudo o que é útil saber para o seu próprio benefício e para o bem dos outros.

O autor de Como ler fazia um alerta àqueles que quisessem conhecer todos os autores franceses, latinos, gregos e estrangeiros, e que se dedicassem ao devoramento de romances, relatos de viagens, obras sobre história, psicologia, filosofia, ciência... Para ele, essa atividade conduz, a longo prazo, à passividade e à improdutividade.

Ler bem é escolher bons livros. Outra vez a questão do bem aparece. Paul Nyssens afirma sem a menor hesitação:

Para cada livro bom existem centenas ou milhares de mínimo valor, ou inteiramente desprovidos de mérito [...]. Em geral, os melhores autores tratam a questão ou o tema que nos interessa do modo mais completo e mais perfeito, o que nos dispensará de ler os escritores medíocres.

O melhor é raro e o ruim, abundante. Mesmo um autor bom tem lá suas debilidades. E daí surge outro conselho:
Não é desejável ler todas as obras de um mesmo autor. Os editores, aproveitando a reputação de um autor clássico, publicam todas as suas produções, incluindo as mais fracas.
Estimular uma autêntica educação para a leitura. É este o desejo do autor. Nos primeiros anos escolares, diz Paul Nyssens, a língua materna, a leitura, a gramática, a ortografia e a aritmética são ensinadas pela repetição e pela intuição. Não há uma racionalidade explícita. Os professores e alunos atuam nesse primeiro momento de modo mais ou menos inconsciente. Somente no ensino superior haverá espaço para que se pergunte o porquê das coisas.

Paulo Nyssens acredita que uma vida boa, mais humana, e uma atividade profissional de sucesso dependem da escolha de nossas leituras, com base na clareza de propósitos. Seus conselhos vão nesta linha, apelando para o bom-senso do leitor. Daí não nos sugerir nenhuma lista de autores. Os critérios são gerais, e que cada qual exerça sua liberdade de leitura.

Contudo, ao citar determinados escritores, acaba indicando suas referências, certamente definidas pelo critério da "boa leitura". Mencionando Blaise Pascal, Descartes, Voltaire, inscreve-se numa tradição tipicamente francesa, com especial apreço pela lucidez mental.

Seus conselhos cartesianos são certinhos demais, adequados demais. Parecem implicâncias da vovó. Não pretendemos levá-los a sério. O que talvez seja um erro, como quando recomenda que o leitor respire profundamente durante o trabalho intelectual. Não seria, afinal, fazer uma leitura inspiradora?

Gabriel Perissé 

sábado, abril 16

Tá na hora de ler

hitku:

by Mila Marquis
Mila Marquis

Mania de escritor

Não posso desfazer a história e tampouco apagar os erros. 
A única coisa possível é continuar apontado o lápis
para escrever o restante que ainda falta. Ita Portuga:
Compro muitas esferográficas, cada vez mais. Mesma marca, mesmo modelo, mesma cor azul. Adquiro, em geral, uma dúzia por dia; uma grosa, quando fico muito tenso. Sempre estou tenso. Num sábado de desespero, trouxe para casa mil e duzentas. Receio que sumam do mercado. Já ameaçaram, três décadas atrás, uma quase tragédia para mim, que vivo de escrever e não suporto computador. Como passar sem elas? Jamais me adaptei a outro tipo de caneta. Tentei, é verdade, não deu certo: a inspiração desapareceu, não produzi uma linha, o pavor se instalou. Daí o apego. Devo-lhes o ofício.

Esferográficas são depósitos de ficção. Dentro das cargas há contos, poemas, novelas e romances, uns grudados nos outros, compactos, prontos. Basta um pouco de sensibilidade para enxergá-los. Cargas e obras se confundem.

Libero as histórias ao derramar sobre o papel o torvelinho de letras. A tarefa demanda paciência. É um quebra-cabeça onde peças de diferentes jogos se misturaram, o início de um ligado ao final ou ao meio de outro, com um detalhe assustador: ignoro as imagens que devo montar. Quando me perco, contemplo a tinta durante horas, busco o fio da meada lá dentro da caneta, até desemaranhar o novelo, frase por frase, vírgula por vírgula.

A coleção cresceu, absorveu meu espaço. Não posso comer, lotou a cozinha. Tampouco dormir, ocupou o quarto. A sala se reduziu ao túnel pelo qual engatinho, espremido entre milhares de caixas.

Não me vanglorio do maior estoque de ficção do mundo. Pelo contrário, temo-o. Cargas oprimem. Não suporto tanto peso.

Compro cada vez mais.

A luz da leitura

Imagem de book, fantasy, and reading

Assim começa o livro...

Aqueles dentre nós que conhecem a história sórdida e escandalosa delas não ficaram surpresos ao saber, graças a boatos vindos das diversas localidades onde as bruxas haviam se instalado após fugir de nossa aprazível cidade de Eastwick, Rhode Island, que os maridos que as três mulheres Perdidas haviam por meio de sua arte obscura materializado para si não se mostraram muito duráveis. Métodos maus geram maus produtos. Satã simula a Criação, sim, mas com mercadorias de qualidade inferior.

Alexandra, a mais velha das três, mais graúda de corpo e cujo temperamento mais se aproximava do normal e de uma humanidade generosa, foi a primeira a enviuvar. Seu instinto, como o de tantas esposas subitamente libertas na solidão, foi viajar - como se o mundo em geral, representado por frágeis cartões de embarque, atrasos maçantes em aeroportos e o tênue mas inegável risco de voar de avião em uma época de aumento do custo do combustível, falência de companhias aéreas, terroristas suicidas e desgaste metálico, pudesse ser forçado a revelar a mesma produtiva irritação da vida a dois. Assim como seu casamento, acomodado e inflexível, Jim Farlander, o marido que ela havia conjurado para si usando uma abóbora oca, um chapéu de caubói e um punhado de terra do Oeste dos Estados Unidos raspada da parte de dentro do para-choque traseiro de uma caminhonete com placa do Colorado que ela vira estacionada, estranhamente fora do lugar, na Oak Street no início dos anos 70, havia se mostrado difícil de demover de seu ateliê e de sua pouco frequentada loja de objetos de cerâmica em uma ruazinha de Taos, Novo México. Para Jim, viajar signifi cava pegar o carro e dirigir durante uma hora para o sul até Santa Fé; para ele, tirar férias era passar o dia em uma das reservas indígenas - Navajo, Zuni, Apache, Acoma, Isleta Pueblo - para espionar o que os ceramistas índios estavam oferecendo nas lojas de suvenires das reservas, e torcer para encontrar a preço de banana, em algum escritório empoeirado da Agência Indígena, um autêntico e antigo vaso pueblo preto e branco com desenhos geométricos, ou então um pote de mantimentos hohokam amarelo com suas espirais e labirintos em vermelho, que poderia então revender por uma pequena fortuna a algum museu recém-construído em uma das prósperas cidades de veraneio do Sudoeste. Jim gostava da vida que levava, e Alexandra gostava disso nele, já que ela, como sua mulher, fazia parte dessa vida. Ela gostava de seu corpo esbelto (ele nunca teve barriga até o dia em que morreu, e isso sem nunca ter feito um abdominal sequer na vida) e do cheiro de sela de seu suor, e do aroma de argila que se desprendia, como uma aura sépia, de suas mãos fortes e capazes. No plano natural, os dois haviam se conhecido quando ela, divorciada já havia algum tempo, tinha ido fazer um curso na Escola de Design de Rhode Island, onde ele lecionava como instrutor substituto. Os quatro enteados que ela lhe pôs nas costas - Marcy, Ben, Linda e Eric - não poderiam ter desejado um pai substituto mais calmo, mais tranquilizadoramente taciturno. Os filhos de Alexandra - todos já fora de casa de qualquer modo, Marcy já com dezoito anos - achavam mais fácil se relacionar com ele do que com o próprio pai, Oswald Spofford, pequeno fabricante de móveis de cozinha de Norwich, Connecticut. O entusiasmo do pobre Ozzie por beisebol de segunda divisão e campeonatos de boliche da empresa era tamanho que ninguém, nem mesmo os fi lhos, podia levá-lo a sério.

quinta-feira, abril 14

Estilos de leitura




Eduardo Galeano, o eterno caçador de histórias

Um dia, não muito tempo atrás, depois de ler algumas de suas histórias para um grupo escolar em Salta, no norte da Argentina, Eduardo Galeano recebeu um conselho: “Continua escrevendo, que você vai melhorar”, advertiu uma das crianças por escrito. A carta – uma tarefa pedida pela professora após a leitura – não precisava ter chegado ao uruguaio, morto em 13 de abril de 2015, porque Galeano sempre foi um escritor prolífico e cuidadoso, cuja pluma buscava transcender. O fato é que ele seguiu o conselho até o fim, o que permite aos admiradores de sua prosa amorosa, bem-humorada e certeira ter hoje em mãos um novo livro seu, lançado um ano após a sua morte.

"O caçador de histórias" circula em espanhol na Espanha, no México, na Colômbia e na Argentina desde 28 de março e deverá sair no Brasil em maio pela L&PM, com tradução ao português de Eric Nepomuceno. São 250 páginas, escritas durante os anos de 2012 e 2013, quando Galeano já padecia de câncer de pulmão, e que o escritor deu por terminadas no verão de 2014 – quando enviou o manuscrito final ao argentino Carlos Díaz, da Siglo XXI, editor de 19 obras suas. Segundo Díaz, o autor de As veias abertas da América Latina – adorado no Brasil, que ele adorava de volta – deixou-o “escrito, corrigido e cuidado em cada detalhe, incluindo a ilustração da capa”, como fazia com cada um de seus livros. Desta vez, só não pôde comparecer à gráfica para colocar o papel contra a luz e checar a impressão, nem pedir ajustes de última hora, como costuma fazer.

“O título também é dele. Ao final, quando estava fechando o livro, um amigo lhe perguntou como era possível que desse esse título, se não era capaz de matar nem uma mosca. Isso o fez pensar, mas ao final voltou à ideia inicial. Eu adoro. Ele era um caçador de histórias. Levava sempre consigo uns caderninhos onde anotava ideias. E se nutria das conversas que tinha com todo mundo, porque era um grande conversador”, disse o editor ao jornal argentino La Nación. O amigo era Eric Nepomuceno, que o traduz desde 1974, quando um dos contos de Galeano foi incluído na coleção Contos jovens, da extinta editora brasiliense.

O caçador de histórias condensa cerca de 240 textos, entre poemas, microrrelatos e histórias pessoais, divididos em quatro partes: Moinhos do tempo, Os contos contam, Prontuário e Quis, quero, quisera. Para Nepomuceno, é “Galeano em estado puro”. “É uma prosa altamente elaborada. São histórias que ele caçou ao longo da vida, com seu olhar único sobre o mundo. Um jornalista espanhol uma vez o definiu como um escritor com um olho no microscópio e outro no telescópio. Isso está claríssimo no livro”, opina o escritor, que conta que, depois de 18 livros traduzidos, essa é a primeira vez que faz uma revisão sozinho. “Já me peguei tendo umas três brigas com o fantasma dele”.

A esposa de Galeano, Helena Villagra, contou à revista cultural do jornal Clarín, a Ñ, que “Eduardo em nenhum momento pensou que não veria este livro publicado”. “Sinto mesmo que não. Inclusive tenho certeza de que ele esperava cruzar a porta de casa, como sempre fazia, feliz de ter em mãos o primeiro livro recém-saído da gráfica, que costumava dedicar a mim. Além disso, ficava fazendo piadas sobre ‘vaso ruim que nunca quebra’, portanto não via as coisas desse ângulo [da morte]”, comentou Villagra.

Trechos de "O caçador de histórias" 

Brevíssimos sinais do autor

Eu bem que poderia ser o campeão mundial dos distraídos, se o campeonato existisse: com frequência erro o dia, a hora e o lugar, e me custa diferenciar o dia da noite, e falto a encontros porque fiquei dormindo.

Meu nascimento confirmou que Deus não é infalível; mas, apesar disso, nem sempre me engano na hora de escolher as pessoas de quem gosto e das ideias nas quais acredito.

Detesto os choramingões, odeio os que vivem se queixando, admiro os que sabem aguentar, calados, os golpes dos tempos ruins, e por sorte nunca falta algum amigo que me diz que continue escrevendo, que os anos ajudam e que a calvície ocorre por pensar demais e é uma doença profissional.

Escrever cansa, mas consola.

Última porta

Desde que se deitou pela última vez, Guma Muñoz não quis mais se levantar.
Nem mesmo abria os olhos.

Num de seus raros despertares, Guma reconheceu a filha, que apertava a sua mão para dar serenidade ao seu sono.

Então, falou, ou melhor, murmurou:

– Que esquisito, não é? A morte me dava medo. Não dá mais. Agora, me dá curiosidade. Como será?

E perguntando como será, se deixou ir, morte adentro.

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browsethestacks:


You Are Taller With Every Book You Read by SillyJellie

Bandeira de volta com poemas trduzidos

Esta é a marca primordial destes Poemas traduzidos (Global Editora, R$ 47, 248 páginas): um exercício bandeiriano de trazer para o nosso idioma poemas de Rilke, Baudelaire, Hölderlin, Goethe, García Lorca, Emily Dickinson, Elizabeth Bishop, entre tantos outros poetas. Poemas traduzidos com excelência, pois, assim como afirmou o próprio Bandeira, só poderia traduzir bem os poemas que gostaria de ter escrito.


A seleção e a apresentação desta edição são de Paulo Henriques Britto, poeta e tradutor.  A obra apresenta a imagem do frontispício da 3ª edição do livro publicada em 1956 pela Editora José Olympio, na Coleção Rubáiyát e, também, fotos de Manuel Bandeira em sua residência, na Avenida Beira-Mar, no Rio, na década de 1950. Além disso, traz fotos do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843) e do poeta francês Paul Verlaine (1844-1896). E, como em todas as obras do autor editadas pela Global Editora, a cronologia completa do poeta.



quarta-feira, abril 13

Para quem gosta de livros e plantas

Onde se guardam tesouros

Entramos na biblioteca, célebre pelos manuscritos gregos, árabes, cúficos e siríacos. Deleito-me por muito tempo percorrendo livros antigos, iluminuras, manuscritos inexplorados cheios de mistério. Quem sabe se, numa destas traduções árabes, se não encontra alguma obra grega de Sófocles ou de Ésquilo, de que se perdeu o original!
Nikos Kazantzakis - "Do monte Sinai à ilha de Vênus"

terça-feira, abril 12

Hora de ler

huariqueje:


Reading boy    -  Jeanne Mammen  1943-45
German, 1890 - 1976
Tempera on cardboard, 

100 x 70 cm (39.4 x 27.6 in)
 Jeanne Mammen 

Bibliofilia

“Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”
Jorge Luis Borges, “O livro” 
Os livros que lemos e os que escolhemos manter próximos a nós tornam-se capítulos de nossa história pessoal. O colecionamento de livros é tão especial justamente por ser motivado em parte como busca de certezas, em meio à velocidade um tanto efêmera do mundo.

O escritor Miguel Sanches, comentando o belo ensaio “Desempacotando minha biblioteca”, de Walter Benjamin, diz:“Se a literatura é o território movediço, a coleção de livros devolve-nos à exatidão das coisas. Não sem alguma ironia, Benjamin cita Anotole France: ‘O único conhecimento exato que existe é o ano de publicação e o formato dos livros’. Entre a desordem e a ordem possível, entre o caos e o cosmos, o colecionador vai transformando, segundo Benjamin, sua coleção em uma ‘enciclopédia mágica’, em que se manifesta um encontro inevitável: ‘o destino mais importante de cada exemplar é o encontro com ele, o colecionador, com a própria coleção’”. Trata-se de uma experiência mágica.

É, pois, semelhante a uma concha, a construção enquanto morada de filas e pilhas de livros, no sentido em que dá, à concha, Paul Valéry: “Uma concha emana de um molusco. Emanar parece-me a único termo próximo da realidade visto significar propriamente:deixar pender. Uma gruta emana suas estalactites; um molusco emana sua concha” [“O homem e a concha”].

Um dos grandes livros de Umberto Eco dedicados especificamente à paixão pelos livros, à bibliofilia, é A memória vegetal: e outros escritos de bibliofilia. Com ele, Eco, que era colecionador de livros raros, amante dos livros, ele faz uma declaração de amor aos livros, através de textos diversos, entre definições, listas de livros e contos fantásticos.

Porém, enfocamos aqui outro de seus livros, escrito em diálogo e parceria com Jean-Claude Carrière, Não contem com o fim do livro. Os autores debatem uma questão atual e que concerne a todos os bibliófilos: o possível término do livro de papel com o advento dos livros digitais.

Eco foi um grande bibliófilo. Possuia mais de 30 mil volumes distribuídos ao longo de sua casa-biblioteca – em entrevistaconcedida em 2010 a Ubiratan Brasil, para o Estado de São Paulo, contou que, à comum pergunta sobre ter lido todos os volumes de sua biblioteca, tem duas possíveis respostas: “Não. Estes livros são apenas os que devo ler na semana que vem. Os que eu já li estão na universidade”; que o jornalista conta ser a resposta preferida do autor . A segunda resposta é: “Não li nenhum”; ao que arremata: “Se não, por que os guardaria?”. Ao lado de outro grande bibliófilo, Jean-Claude Carrière, refletiu sobre a continuidade do livro de papel. Na entrevista, quando questionado sobre a função e a preservação da memória, questão discutida emNão contem com o fim do livro, Eco analisou: estamos perdendo a memória histórica. Diz ele: “Minha geração sabia tudo sobre o passado. Eu posso detalhar sobre o que se passava na Itália 20 anos antes do meu nascimento. Se você perguntar hoje para um aluno, ele certamente não saberá nada sobre como era o país duas décadas antes de seu nascimento, pois basta dar um clique no computador para obter essa informação. Lembro que, na escola, eu era obrigado a decorar dez versos por dia. Naquele tempo, eu achava uma inutilidade, mas hoje reconheço sua importância. A cultura alfabética cedeu espaço para as fontes visuais, para os computadores que exigem leitura em alta velocidade. Assim, ao mesmo tempo que aprimora uma habilidade, a evolução põe em risco outra, como a memória”. Na mesma entrevista, uma curiosidade sobre a biblioteca de Eco, que impediu sua secretária de fazer a catalogação dos livros, porque, diz, “a forma como você organiza seus livros depende da sua necessidade atual. Tenho um amigo que mantém os seus em ordem alfabética de autores, o que é absolutamente estúpido, pois a obra de um historiador francês vai estar em uma estante e a de outro em um lugar diferente. Eu tenho aqui literatura contemporânea separada por ordem alfabética de países. Já a não contemporânea está dividida por séculos e pelo tipo de arte. Mas, às vezes, um determinado livro pode tanto ser considerado por mim como filosófico ou de estética da arte; depende do motivo da minha pesquisa. Assim, reorganizo minha biblioteca segundo meus critérios, e somente eu, e não uma secretária, pode fazer isso. Claro que, com um acervo desse tamanho, não é fácil saber onde está cada livro. Meu método facilita, eu tenho boa memória, mas, se algum idiota da família retira alguma obra de um lugar e a coloca em outro, esse livro está perdido para sempre”. Sua conclusão, bem humorada, é que é “melhor comprar outro exemplar”.