terça-feira, fevereiro 28

Leitura no monastério

laclefdescoeurs:
“The Monastic Scribe, James Doyle Penrose
”
James Doyle Penrose

Preconceitos

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Um dia destes, o Manel leu-me o primeiro parágrafo de um livro que tinha entre mãos. Rezava assim: "Decididamente, o Romão alquilé, com o seu carão brunido do sol, achamboirado e alegre, a jaleca de astracan a enxalmar-lhe o arcaboiço, a espora tilintando no sapatão de bezerro, todo o seu ar de alentejano ricaço, testudo como os asnos de Alvalade e torto como as azinheiras da sua terra "– decididamente, ia eu dizendo, o Romão alquilé era o mais patego dos troquilhas de Portugal. Conhecido como cão ruivo, tratava de igual para igual ciganos e marialvas, marchantes e rascoas de viela. Bom coração, é verdade; mas olho sobre o ombro, poucas falas, desconfiado como sete e parvo como vinte. Tinha aquele fraco: os alborques das cavalgaduras. Era uma tentação.» Não conhecia a passagem e avancei que tinha algo de Aquilino. Mas estava longe, porque, sobretudo em termos políticos, era um escritor acarinhado pelo Estado Novo, nada mais nada menos do que Júlio Dantas. A minha geração foi marcada pelo manifesto que Almada lhe dedicou e – talvez por isso – passou sem ler este homem do sistema, crendo parvamente que nada valia em termos literários. E, se é verdade que aprecio o fado conhecido por Rua do Capelão (o seu título verdadeiro é Novo Fado da Severa) na voz de Amália – com letra de Júlio Dantas –, confesso a minha ignorância em relação a outros escritos do autor, que não devo ter sequer espreitado, percebo agora, por puro preconceito. E, todavia, este parágrafo que transcrevi é uma descrição formidável de uma personagem (podia ser usado em cursos de Escrita Criativa!) e faz-me pensar que, mesmo que não me agrade a figura, há que ler depressa o romance "A Severa", que foi donde tirei a passagem.

Leitura em meio ao verde

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Biblioteca no Jardim da Estrela em Lisboa

O nascimento da crônica

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

Machado de Assis

segunda-feira, fevereiro 27

Sempre cabe mais um

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Acorrentados

Andreas Nossmann - Bookworm by teNeues.com:
Andreas Nossmann
Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.
Paulo Mendes Campos

Acampamento

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Do pesadelo de dar nome às histórias

É segunda de carnaval, eu sei, mas quero falar de livros. Preciso. Isto porque comecei a escrever um novo romance — ainda estou naquele momento de que mais gosto, pensar a história, montar o esqueleto com os ganchos e vislumbrar nuances do ato final, sem saber direito como chegar lá. Ao mesmo tempo, já começo a me atormentar com a necessidade de pensar o título do romance. Escolher o título de uma história (seja um conto, um romance ou um longa) sempre foi um pesadelo para mim. Pessoalmente, tenho predileção por títulos curtos, fáceis de memorizar, genéricos, que tragam o espírito da história sem entregar muita coisa. Sempre que possível, acho interessante que o título contenha alguma ironia ou mensagem subliminar. Aos 12, quando comecei a escrever, tinha a regra de só desenvolver uma história quando já tivesse um título para ela. Levava isso muito a sério e cheguei a desistir de algumas narrativas apenas porque não tinha um título.

Após “Suicidas”, meu romance de estreia, comecei a escrever um chamado “Rua dos crimes”, um policial-enigma clássico, bem ao estilo Agatha Christie, que eu devorei na adolescência. Havia chegado à metade do livro quando comentei a história com uma amiga e ela retrucou: “Legal, mas é juvenil, né? ‘Rua dos crimes’ é nome de livro juvenil.” Pronto, não consegui mais mexer no arquivo. O título não me convencia e eu não conseguia avançar sem saber que nome dar para aquela história.

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Felizmente, essa mania doida é passado. Hoje consigo escrever sem ter um título. Mas sempre que me pego deitado na cama, distraído, estou pensando: “caramba, que título vou dar para essa história?” Um bom título é importantíssimo. Além de cumprir a difícil missão de apresentar o livro, deixar entrever seu conteúdo, o título é responsável por cativar, atrair alguém que nunca tenha ouvido falar dele, o livro, ou de você, o escritor. Numa consideração comercial, o título — junto com a capa — convence o potencial leitor a comprar o livro: é a primeira impressão que ele tem do seu trabalho.

Com o tempo, a gente aprende algumas coisas. Se escrevesse “Suicidas” hoje, acho que eu mudaria o título. Optaria, talvez, por algo mais abstrato: “A reunião”, “O porão” ou ainda “Roleta russa”. Gosto do nome que escolhi, sei que representa bem o livro e chama atenção de alguns, mas também sei que muita gente torceu o nariz e deixou de ler o livro apenas porque se chama “Suicidas”. Em “Dias perfeitos” foi diferente. Enquanto escrevia, todos meus leitores-beta (leitores teste que leem o livro enquanto escrevo) reclamavam do título: era muito vago, muito simples, parecia história de amor. Eu bem sabia que era um título arriscado — dependia de uma boa capa para passar sua ironia. Ainda assim, fui em frente. Agora, publicado, quase todos os dias recebo e-mails de pessoas que compraram o livro iludidas pelo título (“achava que era um livro fofo”) e se surpreenderam positivamente com o conteúdo. Pessoas que nunca leram um livro de suspense acabaram lendo o livro por causa do título “romântico” e descobriram os prazeres da literatura policial e de mistério. Quer coisa mais legal? Além disso, em todas as traduções, o título original tem sido mantido. Sinal de que funcionou, a meu ver.

Meu quarto romance publicado, “Jantar secreto”, foi um tormento. Quando tive a ideia, o título era “Cortes exóticos”. No “Programa do Jô”, incentivado a antecipar a notícia, disse que o título provisório era “Jantar no matadouro”. Passei por diversas opções: “Carne de caça”, “Mesa para dez”, “A delicadeza do corte” e “Anatomia de um jantar”. Na editora, fizemos reuniões para escolher entre “O jantar está servido” e “Jantar secreto”, mas este último acabou vencendo. Agora, está feito e confesso que gosto. Uma vez escolhido, não dá para voltar atrás.

Nesses momentos de conflito interno, sempre me lembro de uma história que o Marçal Aquino costuma contar. Na época, ele escrevia “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” e todo mundo dizia que era um título ruim, longo demais. Em uma Flip, o mediador soube do título do original nos bastidores e, durante a mesa, insistiu que Marçal revelasse ao público. Ele disse: “Olha, é provisório… Nenhum editor vai querer publicar um livro com esse nome”.

Quando Marçal revelou o título, o editor-chefe da Companhia das Letras chamou da primeira fileira: “eu publico!”. Hoje, “Eu receberia...” é um dos títulos que mais elogiam na literatura brasileira contemporânea, além de ser um livraço. Ainda atormentado por pesadelos com títulos, lanço a pergunta a vocês: escritores, como escolhem os títulos de seus trabalhos? Leitores, quais seus títulos favoritos? Daqui, continuo pensando e escrevendo. Enquanto isso, não durmo.

Raphael Montes

sábado, fevereiro 25

Poligamia


Descoberto romance esquecido de Walt Whitman

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Ao chegar ao capítulo 19, testemunhamos um “momento mágico”, diz Ed Folsom, editor da Walt Whitman Quarterly Review. É o momento em que o protagonista do romance entra no cemitério da Trinity Chruch, em Manhattan, e em que a narrativa se suspende para dar lugar a reflexões poéticas sobre a natureza e a imortalidade, enquanto Jack, o protagonista, observa as lápides daqueles que ali pereceram. Naquele momento, diz Zachary Turpin, investigador da Universidade de Houston, vemos como Walt Whitman experimentava com os géneros, a caminho de se descobrir enquanto o grande poeta de Folhas de Erva. Turpin é o responsável por podermos agora aperceber isso mesmo. Foi ele que redescobriu Life and Adventures of Jack Engle, romance esquecido de Whitman.

Publicado no New York Daily Times, agora New York Times, em 1852, quando Walt Whitman contava 32 anos, o romance é uma história dickensiana com um órfão como protagonista, à volta do qual pululam um advogado sem escrúpulos, políticos interesseiros, comunidades Quakers e outras figuras da Nova Iorque de meados do século XIX. “É a abordagem de Whitman à ‘city mystery novel’, um género popular na época, que colocava em confronto os ’10 mil de cima’ – aquilo a que chamaríamos hoje o 1% – contra o milhão de baixo”, explicou ao New York Times David S. Reynolds, da Universidade Nova Iorque, um especialista na obra do poeta.

O romance foi descoberto no Verão por Zachary Turpin, recorrendo às bases de dados online que coligem toda a diversidade de publicações americanas do século XIX. No ano passado, Turpin revelara outro inédito de Whitman, um ensaio sobre como manter a saúde e a boa forma física intitulado Manly Health and Training (1858). Turpin chegou ao romance ao seguir a pista descoberta num extenso catálogo das obras publicadas, planeadas, completas ou deixadas em rascunho por Whitman. Numa entrada, deparou-se com nomes de personagens sem relação com nenhuma obra conhecida do escritor. Um pequeno anúncio publicado no New York Daily Times em 1852, anunciando para o domingo seguinte o início da publicação do romance, desvendou o mistério.

Zachary Turpin explica que Life and Adventures of Jack Engle foi escrito na mesma altura em que Whitman trabalhava em Folhas de Erva, que seria publicado em 1855. “O Whitman que encontramos em Jack Engle não é ainda o poeta confiante e empenhado que julgamos agora que sempre foi. É durante este período vital que ele experimenta, que tenta diferentes géneros e formas de expressão, procurando um que seja amplo e expansivo o suficiente para expressar aquilo que [Ralph Waldo] Emerson chamaria ‘a infinitude do homem no seu íntimo’”.

Fonte: Público

Leitura do lixo

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André Kertész (1894-1985)

Foi num Carnaval que passou...

Nos diversos bairros de Santos, seja na orla ou na periferia, o som que preenche o ar é o das 55 bandas que desfilam pelas ruas, resgatando parte dos antigos carnavais. São foliões da comunidade, fantasiados ou não, às vezes, famílias inteiras, que percorrem a pé alguns quarteirões acompanhados por um caminhão de som, a entoar velhas marchinhas e músicas de agrado popular transformadas em hits carnavalescos. Vão se apresentar até a Terça-feira Gorda, embora o Carnaval oficial, das escolas de samba, tenha acontecido precocemente. Foi antecipado e, por isso, já na terça passada, acontecia a apuração das agremiações vencedoras, sagrando-se campeã de 2017 a X-9, conhecida por aqui como “A pioneira”.

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Carybé
Já fui grande apreciadora da folia, a ponto de, durante o reinado de Momo, brincar nos salões todas as matinés e noites, em companhia das primas, sob a guarda dos tios. Após a maratona, na Quarta-feira de Cinzas amanhecíamos todas roucas, subnutridas e resfriadas, porque comer e dormir eram perda de tempo, ainda não havia ar condicionado nos clubes e, depois de pular e cantar horas seguidas, ao voltarmos com a fantasia molhada de suor, apanhávamos o vento frio da madrugada, indiferentes ao cansaço.

Mas, praticamente já não existem bailes de Carnaval nos clubes e os clubes tornaram-se tão diferentes daqueles que frequentei que, para quem ainda festeja estes alegres dias, restaram as bandas como consolo. Elas ainda enternecem pela singeleza e ingenuidade.

Também há muito, deixou de acontecer o Corso, quando carros particulares desfilavam pela avenida da praia, promovendo guerras de confete, serpentina, talco, café, farinha, lança-perfume, baldes de água e tudo o que pudesse ser lançado em quem fizesse parte da carreata (nome que também não existia). As garotas, eu entre elas, desfilavam sobre o capô; os rapazes promoviam a batalha em plena rua; os pais dirigiam pacientemente, porque os carros não ultrapassavam os 5 km por hora; as mães avaliavam a sujeira que levaríamos para casa, quando tudo terminasse.

Não havia qualquer preocupação com o politicamente correto, inclusive, o desperdício de alimentos. Éramos felizes, sem roupas provocantes ou gestos obscenos, sem agressões físicas e, muito menos, assaltos. Mais adiante, também deram fim ao tradicional Banho da Dona Doroteia, quando marmanjos vestidos de mulher – muitas vezes, com roupas de papel crepom ou emprestadas pela mãe ou irmãs, iam em bando dançar e cantar marchinhas na areia e encerravam a festa com um insólito banho de mar.

Lembro de tudo isso com muito carinho, porque o Carnaval de então era risonho e franco. Hoje, já não me interesso pelo desfile oficial que, banido para um sambódromo distante, estabelece concurso com prêmio em dinheiro e separa as escolas de samba em categorias, gerando uma acirrada competição entre elas. E tenho que reconhecer que as bandinhas dos bairros, acessíveis aos olhos e ouvidos, são melancólicos arremedos do que foi brincar, um dia.

Madô Martins

sexta-feira, fevereiro 24

Bombardeio à moda antiga

 :  

Dica para os dias de Carnaval

Leituras proibidas (Almeida Júnior), 1887
Amar a leitura é trocar horas de tédio por horas de inefável e deliciosa companhia
John Fitzgerald Kennedy

Preparado para a aventura

Aventúrate a leer! (ilustración de Dale Edwin Murray)
Dale Edwin Murray

Memória cultural do país

Costuma-se dizer que são os valores culturais que fundamentam nossas identidades nacionais. Um povo identifica-se enquanto povo a partir do compartilhamento de um conjunto de traços espirituais e materiais que abrangem artes e letras, modos de vida, sistemas de valores, tradições e crenças. Historicamente, as bibliotecas nacionais foram constituídas como instituições depositarias das tradições, da memória e da produção intelectual de um pais.

Tomando emprestado o conceito do historiador Pierre Nora de “lugar de memória”, nossa BN assume um protagonismo ímpar no âmbito da história e da cultura brasileira. Reunindo um vasto patrimônio bibliográfico e documental, é considerada pela Unesco uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo, sendo a maior da América Latina. Sua formação remonta aos primórdios da emancipação do Brasil da condição de colônia de Portugal. Fundada por Dom João VI em 1810, quando da transferência da corte para o Rio de Janeiro, seu acervo teve origem na valiosa Real Biblioteca da Ajuda de Lisboa. Entre livros, manuscritos, incunábulos, gravuras, desenhos e mapas foram trazidos para o Brasil mais de 60 mil itens. Posteriormente, a coleção foi comprada por Dom Pedro I por 800 mil réis, conforme o tratado de Amizade e Aliança entre Brasil e Portugal firmado em 1825.

Ao longo dos anos, este acervo não parou de crescer seja pela aquisição de coleções, assinatura de periódicos ou pela aplicação da Lei do Depósito Legal, que determina a remessa à BN de um exemplar de todas as publicações produzidas em território nacional, por qualquer meio ou processo. O correto cumprimento desta lei atende à missão institucional da BN de preservar e difundir conhecimento e cultura permitindo, também, um efetivo controle bibliográfico da produção editorial brasileira.

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A necessidade de conservar, ampliar e democratizar o acesso aos acervos é, sem dúvida, o grande desafio enfrentado pelos gestores de bibliotecas nacionais. No topo deste triangulo inscreve-se o desafio de ampliar o acesso a um número cada vez maior de pessoas, ao patrimônio documental e bibliográfico do pais. O programa Biblioteca Digital é a face mais visível desta missão. Lançada em 2006 com mais de três mil documentos digitais, a BNDigital oferece hoje livre acesso a mais de um milhão e meio de documentos, entre livros, fotografias, mapas, manuscritos, periódicos e outros. A rede contabiliza mais de 500 mil pesquisas por mês, o equivalente a três milhões de páginas acessadas.

Além de ampliar o universo de programas gerenciados pela BN Digital (Brasilianas Fotográfica e Iconografica, Hemeroteca Digital entre outros ), acreditamos ser cada dia mais relevante o estabelecimento de novas parcerias nacionais e internacionais capazes de estimular o “compartilhamento de recursos”. Hoje, mais do que nunca, a BN não pode confinar-se nela mesma. Precisa e deve ampliar diálogos com instituições nacionais e internacionais que permitam o compartilhamento recíproco de registros bibliográficos.

É na multiplicidade de suas ações que a Biblioteca Nacional reafirma o seu caráter único de instituição encarregada de reunir para gerações futuras a memória cultural do país. Essa, aliás, é a missão que a distingue das demais bibliotecas e que a faz figurar no elenco dos grandes patrimônios culturais do Brasil. Projetando um futuro próximo, acreditamos que, graças a opções políticas claras, a instituição poderá ocupar papel central no cumprimento da missão constitucional de “assegurar a todos os cidadãos, independentemente de sua condição social ou de seu meio geográfico, o pleno exercício ao direito à informação.”

Helena Severo, presidente da Fundação Biblioteca Nacional

quinta-feira, fevereiro 23

Esconde-esconde

Escondida entre los libros. Me pierdo leyendo… (ilustración de Marjorie Pourchet)
 Marjorie Pourchet

O fazedor

Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, onde bem podia haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.

Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estre­las, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. «Já não verei — percebeu — nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moe­da sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho.

Piano Concerto No. 1 in E minor, Op. II - Romanza, 
de Frederic Chopin, com a Slovak Symphony Orchestra

A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter com o seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como se o não ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um punhal de bronze, belo e carregado de poder, que a criança tinha furtivamente cobiçado. Agora segurava-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai dizia: «Que alguém saiba que és um homem», e havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e batalhas a obscuridade salobra. O que procurava era o preciso sabor daquele momento; não lhe importava o resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina ensanguentada.

Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe enviaram os deuses, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu, e ele procurou-a por galerias que eram como redes de pedra e por declives que se afundavam na sombra. Porque lhe chegavam essas memórias e porque lhe chegariam elas sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?


Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mortais, onde agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deu­ses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.
Jorge Luis Borges

quarta-feira, fevereiro 22

O que a leitura nos faz

maorisakai:
“ Lovely Lazy Sunday ♡
- Personal work -
”

Alto Verão

As nevascas no Hemisfério Norte viraram notícia outra vez. Têm sido terríveis. E argumento para os que defendem ou desprezam a mudança climática global. Para uns, é apenas outro sinal da catástrofe, agora se manifestando com o frio; para outros, uma prova de que o clima continua o mesmo de sempre, às vezes mais seco, às vezes mais úmido. Discussões à parte, olho para nosso calorzinho, essa delícia que desfrutamos no verão, no outono, no inverno e na primavera, uma vez mais bendigo os trópicos. O calor aqui está sempre presente, mesmo quando chove.

Entre Lápis e Pincéis: Gobugi:
Comparemos nosso clima com o do Canadá, por exemplo. Lá o frio impera, e o inverno assusta. Em Calgary, certa vez peguei 32 graus abaixo de zero. Isso mesmo, 32 negativos. Sonhei com o Brasil naquela hora, receoso de virar picolé e, qual nos desenhos animados, trincar feito vidro. A cada quarteirão que andava, entrava depressa numa loja para me aquecer, saía, corria pela rua até outra loja salvadora, quentinha. No entanto, vi uma japonesa desfilar de minissaia. Que mágica fazia ela se, num freezer desses, até os carros precisam de aquecimento? Nas vagas de estacionamento, há tomadas elétricas para manter líquida a água do motor e possibilitar a partida, do contrário mesmo a gasolina corre o risco de congelar. Até as cachoeiras se petrificam e lembram lágrimas de vela pairando no espaço.

Perto de Calgary, em Banff, após uma semana de nevascas em abril, a temperatura de repente subiu para 20 graus acima de zero, e a primavera chegou de um dia para o outro. Em quarenta e oito horas, o lago sobre o qual eu caminhara descongelou e virou uma coleção de pequenos icebergs. Ao explorar a mata ao redor, tive de fugir em disparada, pois um urso recém-saído da hibernação parecia me confundir com comida. Como as pessoas conseguem viver num lugar desses?

No entanto, alguns canadenses me fizeram a pergunta inversa: como suportamos o calor brasileiro? Alegaram que derreteriam nos trópicos.

Examino a temperatura de nosso alto verão, sinto o conforto de quem não precisa de agasalho, sequer de se refugiar em lojas, concluo que o paraíso, se não fica aqui, montou uma filial no Brasil. Nosso calor tem a medida certa. Mesmo que alguns canadenses não o apreciem, mata de inveja a maioria deles. Como adorariam viver aqui…

Luís Giffoni

terça-feira, fevereiro 21

Ler na escola

 :
A criação de um Plano Nacional de Leitura – o nosso PNL, mas também muitos outros espalhados pelo mundo (lembro-me, por exemplo, de un Plan de Lectura na Argentina) – é fundamental, antes de mais, para que todos os alunos, venham de onde vierem, possam aceder ao livro em igualdade de oportunidades. Isso, para mim, é o mais importante, pois todos sabemos que há famílias que não têm um único livro em casa e que, se não for a escola a disponibilizá-los, muitas crianças não poderão ler livros e experimentar o prazer da leitura. Claro que o aconselhamento de certas obras para determinado grau de ensino ou idade é interessante, mas não deve ser tomado como um espartilho: não há ninguém que conheça melhor o nível intelectual ou os hábitos de leitura de uma turma como o seu próprio professor e, assim sendo, a lista de recomendações de um Plano de Leitura (cá, lá e em toda a parte) deveria ser apenas um guia de sugestões. Muitas vezes, porém, não é. E porquê? Pois, agora vou chegar à parte difícil. É que há mesmo muitos professores que não lêem absolutamente nada e, quando têm de propor a leitura de uma obra aos seus alunos, imediatamente consultam a lista pois não saberiam de outro modo o que aconselhar. Li um artigo sobre o assunto, em que uma coordenadora de leitura, no Brasil, foi a uma escola em que os professores não tinham a mínima ideia de como motivar os alunos para a leitura; e, quando ela lhes pediu que trouxessem um livro de que tivessem gostado e falassem dele, bem… percebeu que não tinham lido nenhum livro nos últimos dois anos. Será que os Planos de Leitura de todo o mundo não deveriam também sugerir obras a professores?

Passeio om leitura

 :

Cabeça de poeta

anita-klein-australia-1960-os-novos-oculos-de-leitura-gravura-60-x-40-cm
Anita Klein
Livro aberto tu encontras
na cabeça de um poeta acordado
Com a sabedoria tu te confrontas
entre estrofes ou poema inacabado.

É incógnita o que nesta cabeça contém
Pois vê o poeta tudo diferente, …do avesso
Querer entendê-lo? Acredito, já não convém
Pois o poeta que é poeta, não tem endereço!

Ele vai folhando sua sabedoria nata
Deleita na natureza, beijando a verde mata
Sonha sua dor/desejo/alegria/emoção e paixão

À beira-mar, na areia, …onde edificou castelos
Em delírios volta à realidade, compõe versos belos
Morre o Poeta, mas fica, na biblioteca, seu coração.
Ilka Bosse

segunda-feira, fevereiro 20

Beijo literário

Rua dos sebos


O Cheonggyecheon Peace Market's Secondhand Book Street, em Seul, é uma dessas jóias escondidas. Crescendo de forma constante desde a década de 1960, muitos colecionadores caminham de longe para procurar por edições limitadas e livros raros, nostálgicos do cheiro da tinta e da visão cada vez mais rara de livros empilhados do chão ao teto, parede a parede. 

Amor ao luar

Samaasky: "BookLovers 💖🙌"

Assim começa o livro...

Resultado de imagem para todos os homens s]ão mentirososQue verdade é essa que as montanhas limitam e que é mentira no mundo que além delas se estende?

Michel de Montaigne, Apologia de Raymond Sebond Mas vir falar comigo, logo comigo, de Alejandro Bevilacqua? Meu caro Terradillos, o que posso lhe dizer desse personagem que cruzou minha vida trinta anos atrás? Pois eu mal o conheci ou, se o conheci, conheci-o de maneira superficial. Aliás, para ser franco, eu não quis conhecê-lo de verdade. Quer dizer, eu o conheci bem, confesso, mas de uma forma distraída, a contragosto. Nossa relação (por assim dizer) tinha alguma coisa de cortesia oficial, dessa nostalgia compartilhada e convencional dos expatriados. Não sei se você me entende. O destino nos uniu, como se diz, e se você me obrigar a jurar, com a mão no peito, que éramos amigos, serei forçado a confessar que não tínhamos nada em comum, a não ser as palavras República Argentina gravadas em letras douradas no passaporte.

É a morte desse homem que o atrai, Terradillos? É a visão, essa que continua alimentando meus pesadelos, embora eu não a tenha visto com meus próprios olhos, de Bevilacqua caído na calçada, o crânio destroçado, o sangue escorrendo rua abaixo até o bueiro, como se quisesse fugir do corpo inerte, como se não quisesse fazer parte desse crime abominável, desse final tão injusto, tão inesperado? É isso que você está procurando?

Permita-me duvidar disso. Não um jornalista apaixonado pela vida, como você. Não alguém que é pau para toda obra, como eu o definiria. Você, Terradillos, não é um autor de necrológios. Ao contrário. Você, questionador do mundo, quer conhecer os fatos vitais. Quer narrá-los para seus leitores, para esses poucos que se interessam por um artífice como Bevilacqua, cujas raízes um dia revolveram a região de Poitou-Charentes. Que é a sua, também, Terradillos, não vamos nos esquecer disso. Você quer que esses leitores conheçam a verdade, conceito perigoso, se é que um dia existiu. Você quer redimir Bevilacqua em seu túmulo. Você quer dar a Bevilacqua uma nova biografia
urdida com pormenores baseados em lembranças reconstruídas com palavras. E tudo isso pela mísera razão de que a mãe de Bevilacqua nasceu no mesmo canto do mundo que você. Que empresa vã, meu amigo! Quer um conselho? Dedique-se a outros personagens, a heróis mais coloridos, a celebridades mais chamativas das quais Poitou-Charentes pode se orgulhar de verdade, como aquele mariquinhas heterossexual, o oficial da marinha Pierre Loti, ou aquele mimado das universidades ianques, o careca Michel Foucault. Esse é o meu conselho. Você, Terradillos, sabe redigir crônicas sábias; escute o que lhe digo, que dessas coisas eu entendo. Não perca seu tempo com nebulosidades, com as lembranças confusas de um velho rabugento.

sábado, fevereiro 18

Leitura no café

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No lugar onde Diadorim morreu, não ha livros de Guimarães Rosa

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O sertão que serviu de cenário para o embate épico entre Diadorim e Hermógenes nunca esteve tão vazio de escolas, livros e gente. Nos últimos anos, a prefeitura de Buritizeiro (MG) fechou 38 das 50 escolinhas de primeira a quinta série do ensino fundamental que funcionavam na zona rural. No distrito de Paredão de Minas, a 85 km por estrada de terra da sede do município, local exato onde Diadorim morreu, a escola ainda está aberta, mas não há um único exemplar de Grande Sertão: Veredas ou outros livros de Guimarães Rosa na pequena biblioteca.

Nos anos 1950, quando o romance foi publicado, havia mais moradores no interior de Buritizeiro que nos dias atuais. Eram 6,5 mil pessoas nos sítios, fazendas e povoados. Hoje são 3,3 mil. O porcentual de moradores no meio rural despencou de 72% para 11% entre a década de 1960 e 2016. É um índice de concentração urbana elevado para um município que possui o quinto maior território de Minas Gerais.

A política de educação adotada pelo município não apenas foi impactada pelo decréscimo da população no interior como incentiva o êxodo rural. A centralização do ensino, com o fechamento de escolinhas no campo, tem levado famílias a se mudar para o centro de Buritizeiro para garantir o estudo dos filhos. No ano passado, a prefeitura fechou escolas do ensino básico nos lugarejos de Galhão, Felismone, Fazenda Chapahaus, Limeira, Marruás e Comunidade Sambaíba – esta última citada como lugar de passagem do bando de Riobaldo. A conta não inclui escolas fechadas por motivo de falta de alunos, como foi o caso da que funcionava em Cachoeira das Almas.

No cargo desde janeiro, a secretária de Educação de Buritizeiro, Kelen Bitencourt, avalia que, na cidade, as escolas estão mais preparadas para atender aos alunos. Ela diz que a centralização escolar trouxe economia para as contas do município e facilitou a vida de professores, que tinham de ficar até duas semanas fora para atender estudantes do interior. Hoje o município tem cinco escolas de primeira a quinta série, uma infantil e duas creches no perímetro urbano. Kelen, porém, reconhece que o fechamento das escolas no campo prejudica o desenvolvimento dos povoados rurais. “É um problema social que atrapalha as comunidades do interior”, afirma.

Há 24 anos na rede de ensino municipal, ela relata que nunca houve nesse período trabalho para divulgar o Grande Sertão: Veredas entre professores e alunos.

Paredão de Minas é um dos lugares que os moradores temem que desapareça. Nas três ruas do lugar, mais de 40 casas estão abandonadas. Com o predomínio dos eucaliptos, postos de trabalho nas fazendas diminuíram. O fim das carvoarias também representou desemprego. O posto dos Correios fechou há dois anos. Há ainda a preocupação de que a obra de uma usina hidrelétrica no Rio do Sono, um projeto antigo, possa acelerar o fim do distrito.

O Estado chegou no fim de uma tarde de novembro ao distrito de Buritizeiro descrito nas últimas páginas do romance de Guimarães Rosa. Uma chuva tinha passado por lá. Um filete de claridade do sol entre as nuvens carregadas se refletia nas pedras ovais e alaranjadas que formavam um caminho até as margens do Rio do Sono. O cerrado estava esverdeado, mas numa coloração pouco vistosa. Boa parte das casas do povoado estava abandonada. Não havia ninguém nas ruas.

Foi esse trecho do Rio do Sono que o bando de Riobaldo atravessou para o combate final com Hermógenes. Ali, no centro do povoado, Diadorim cravou a faca em Hermógenes, que sucumbiu. No embate, Diadorim foi ferida mortalmente.

O nome do lugar faz referência a um morro de argila vermelha na outra margem, já no município de João Pinheiro. Aqui, o Sono é encachoeirado, sujo, com uma cor vermelha, do barro arrancado das margens, dos pedaços de paus arrastados, dos afluentes tomados pela lama. “É tempo de entrada das águas”, explica Givaldo Barbosa, único comerciante do povoado.

A rede de energia elétrica chegou há alguns anos ao Paredão, mas o abastecimento é irregular. É comum o lugar ficar sem luz durante dias. Nas noites quentes e escuras do vilarejo, é possível ver um céu estrelado. Aves, insetos e répteis na folhagem da beira do rio tornam as noites barulhentas. Sapos maiores que codornas se confundem com as pedras arredondadas e amareladas da beira do curso.

sexta-feira, fevereiro 17

Pra começar o dia

Oil Painting by American Artist David P. Hettinger:
David P. Hettinger

O melhor relaxante



Reading in the bathtub. Pin if you like the painting! :) #reading #books #bathtub:
Quando me angustio, vou para o refúgio. Nenhuma necessidade de viajar; ir juntar-me às esferas de minha memória literária é suficiente. Pois existe distração mais nobre, existe mais distraída companhia, existe mais delicioso transe do que a literatura?
Muriel Barbery, "A elegância do ouriço"

Leitor sonhando

Livros:

Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela

Câmeras na periferia com pretensão à classe média gravam: Está difícil ficar vivo nesta terra

— Moça!

— E, anh, te conheço?

— Não. Só quero saber a hora.

— Por que pergunta pra mim?

— É só uma pergunta.

— Não chega perto! Pergunta pra outro.

— Não tenho mais a quem perguntar.

— Tem tanta gente no mundo. Não tenho resposta para nada.

— Só tem você na rua a esta hora.


Dê Almeida
— Tem mais de 8 bilhões de pessoas no mundo e você vem perguntar logo pra mim?
— É a pessoa que está mais perto.

— Pergunte pra outra, já disse. Procure.

— Onde?

— A cidade é grande, o país é grande, o mundo enorme, vá pelas galáxias.

— Onde estão as outras 7.999.999.999 pessoas?

— Quer endereço? Qual é? Estão por aí, vá até a esquina. Vá ao centro. Vá aos parques, aos shoppings. Vá às manifestações de protesto, tem tanta gente lá, devem saber mais do que eu o que o senhor ia perguntar.

— Custa responder?

— Não gosto de falar com estranhos.

— É só uma pergunta!

— Mas você pode engrenar na conversa, me enganar, me dar uma facada, um tiro, me estrangular, me violentar, me bater, me esfaquear, deixando meus intestinos de fora.

— Está louca, pirada, fumou crack, qual é?

— Tive duas amigas estupradas, você tem cara de estuprador, sai, sai. Só estou na rua porque estou voltando do meu primeiro emprego, fiquei desempregada sete anos, passei fome, quase virei puta.

— Tenho cara de estuprador?

— Não sei a cara deles, você está me levando na conversa, vai me degolar, cortar minha orelha, furar meus olhos, arrancar minha bocetinha, cortar meus dedos, arrancar meu nariz, meus dentes. E acabei de colocar este aparelho, me custou tanto! Não arranque meus dentes, moço.

— Está louca? Que neura! Só quero fazer uma pergunta.

— Quem me diz que você não é um homem bomba, puxa um cordão, explode tudo, você, eu, as casas, arrasa o quarteirão, mata um monte de gente? Sei que você quer me degolar como esses terroristas da televisão, lá do Oriente. Aquilo nem existe, deve ser filme.

— Olhe para mim, estou de bermuda, camiseta. Onde está a bomba? A faca para degolar?

— Isso é maneira de se vestir?

— Com este calor é!

— Canalha, o senhor é um canalha.

— E você, louca!

— Viu? Se revelou. Marginal, black bloc, isso que você é. Vândalo, destruidor de vitrine, de orelhões, de lixeiras, de caixas de correio, ladrão de bolsa de mulher, quer meu celular, ladrão de caixas eletrônicos. Meu deus! Cadê a polícia! Socorro, socorro. Não tem ninguém, ninguém. Ele vai me matar.

— Cala a boca, moça! Cala!

Ela não se calou.

— Cale-se. Não é nada disso.

Ela não se calou.

— Cale-se, pelo amor de Deus!

Ela não se calou. As pessoas estão transtornadas, neuróticas, todos têm medo. Do quê?

— Cale-se, te peço, cale-se.

Ela não se calou. Não havia outra maneira. Juro que se tivesse uma faca cortaria a garganta dela, ficou histérica, vão acabar me prendendo nesta merda deste bairro. Janelas se abrem, as pessoas gritam umas para as outras das janelas, chamem os seguranças, apitos, linchem, linchem, cortem em pedacinhos. Fujo, corro, me escondo, cachorros latem em todas as casas, luzes se acendem, alguém chamou a polícia. Me tranco dentro de um banheiro químico fedorento, vomito de medo e nojo. Tá difícil ficar vivo nesta terra.

Ignácio de Loyola Brandão (Trecho do romance inédito)

quarta-feira, fevereiro 15

Para um bom sono

nice poster:

Nova e maravilhosa era

Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro
Henry David Thoreau
Un librero lector, noctámbulo y muy animal (ilustración de Jung Senarak)

Somos ovelha negra

Yayo:

O nascimento da crônica

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Suonko: "por Wilhelm Simmler"
Wilhelm Simmler
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
Machado de Assis

terça-feira, fevereiro 14

Café da manhã

mzapplebee:
“ Elisa Ferro
”
Elisa Ferro

Uma rua só para livros

A rua dos livros é uma das grandes atrações na Cidade de Ho Chi Minh, antiga Saigon, no Vietnam. São 144 metros de extensão com 20 lojas, gerenciadas pelos principais editores, distribuidores e organizações do país, oferecendo uma série de atividades que promovem a cultura da leitura para a população local e os visitantes estrangeiros.


Duas lojas de café com livros e uma zona infantil oferecem leitores e crianças um lugar para relaxar e desfrutar de seus livros favoritos.

A rua também oferece talk shows entre leitores e autores, discussões sobre hábitos de leitura e habilidades, bem como apresentações de música todos os fins de semana.

Eterna magia

La magia de los libros (ilustración de Simona Mulazzani )
Simona Mulazzani   

A biblioteca é um bem penhorável?

Estava em Cuenca, no Equador, quando acordei com a notícia no site da Rádio Gaúcha Grupo RBS anunciando que a Universidade de Caxias do Sul (UCS), em minha cidade natal, havia penhorado a sua biblioteca como garantia de dívidas ligadas a processo de filantropia.

Ainda meio sonolento, quase não acreditei no que lia, mas, de pronto, dois pensamentos me ocorreram: como podemos mensurar o conhecimento para penhorá-lo? E como uma universidade poderia se desfazer de sua biblioteca?

Conforme a matéria, a UCS penhorou o acervo de 1 milhão de livros das 12 bibliotecas avaliado, pela própria instituição, em R$ 130 milhões.

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A UCS é a maior universidade de Caxias do Sul e região da Serra Gaúcha, que em 2017 completa 50 anos de atividade, com quase 100 mil alunos graduados. Quando uma universidade penhora as suas bibliotecas, isso significa que elas valem muito ou que se pode prescindir delas, que são descartáveis?

Senti uma profunda tristeza em ver que mais uma vez o conhecimento e a leitura podem ser tratados apenas como valor de mercadoria. Com certeza houve um estudo do acervo e do seu valor no mercado. Mas como avaliar o valor institucional, de fruição e de formação de uma biblioteca universitária? Quantas pesquisas e estudos foram realizados entre as prateleiras dessas bibliotecas? Quantos engenheiros, médicos, jornalistas, pedagogos se utilizaram deste centro de conhecimento e informação para desenvolver suas teses e sua formação?

Eu mesmo, que fui estudante de Comunicação Social e de Literatura, recorri muito ao seu acervo. A biblioteca foi e continua sendo fundamental na minha formação!

Para o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas do Governo Federal, as bibliotecas universitárias, “tem por objetivo apoiar as atividades de ensino, pesquisa e extensão por meio de seu acervo e dos seus serviços. Atende alunos, professores, pesquisadores e comunidade acadêmica em geral. É vinculada a uma unidade de ensino superior, podendo ser uma instituição pública ou privada. A Biblioteca Universitária dá continuidade ao trabalho iniciado pela Biblioteca Escolar”.

Então, sigo me questionando, como a UCS pode penhorar suas bibliotecas? Caso a universidade perca o processo de dívida sobre filantropia, os alunos dos mais de 100 cursos ficarão sem ter onde realizar as suas pesquisas e estudos complementares?

Segundo os dados da pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, em parceria com o Ibope, sobre o Indicador de Alfabetismo Funcional - INAF, revelam que somente 22% da população que chegou ou concluiu o curso superior em uma universidade está nível pleno de alfabetismo. Entre os outros alunos, 42% se encontram no nível intermediário e 32% no nível elementar. Esse é o panorama dos cidadãos brasileiros que ocupam e ocuparão diferentes posições / funções na sociedade, incluindo os de gestores públicos que não conseguem entender o valor deste equipamento democrático. Um equipamento que pode receber os estudantes de instituições públicas ou privadas. Pode receber o filho do médico ou o filho da cozinheira. Na biblioteca não há classe social. A única classificação que se permite em uma biblioteca é a organização por área de conhecimento. Mesmo assim, essa sistematização nunca deve ser muito estanque.

A cada dia tenho despertado com notícias que corroboram com a ideia de que a biblioteca é descartável! Como notícias mostrando o descaso de instituições públicas, privadas e governos, independentes de partidos políticos, sobre estes equipamentos que contribuem para o desenvolvimento de uma sociedade que questiona, que pensa, que participa, que argumenta.

Se uma biblioteca universitária colabora para colocar bons profissionais no mercado de trabalho com capacidade de criar, criticar e transformar, o que acontece nas universidades que não tem bibliotecas ou estão com suas bibliotecas em mal estado de conservação, com acervo defasado e profissionais desqualificados?

Conheço a biblioteca da UCS e sei que ela está em bom estado de uso, com bons equipamentos, acervo atualizado e bons profissionais. Isso só faz aumentar a minha preocupação por saber que ela está penhorada e por isso pode deixar de atender a tantos alunos.

A universidade até poderá sanar sua dívida com o Governo Federal, mas é impossível pagar uma dívida contraída com a sociedade por deixar de dar acesso a uma biblioteca.

segunda-feira, fevereiro 13

Família unida pela leitura

Scholastic Read Every Day Poster by Nancy CARPENTER (Artist, Author. USA). Available at link.  [Do not remove caption. The law requires that you credit the artist. List/Link directly to artist's website.]   HOW TO FIND the artist who created an image & the original artist's website:   http://www.pinterest.com/pin/86975836525507659/ PINTEREST on COPYRIGHT: http://www.pinterest.com/pin/86975836526856889/:

Homem acha livros emprestados há 42 anos e paga multa

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O norte-americano Jon Kramer ama livros. A paixão vem de família, já que ele, seus irmãos e seus pais sempre foram “ratos de biblioteca”. Durante a juventude, nos anos 60 e 70, ele sempre frequentava a biblioteca do condado de Montgomery, em Maryland (EUA), onde morava.

Em novembro do ano passado, fazendo uma pesquisa na biblioteca que os pais, já mortos, mantinha em uma casa na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, Kramer encontrou dois livros emprestados justamente da biblioteca do condado de Montgomery há 42 anos.

Naquela época, a multa para cada dia de atraso na devolução de um livro era de US$ 0,05. Kramer fez as contas e, baseado no fato de que os livros deveriam ter sido entregues 31.046 dias antes, chegou ao assombroso valor de US$ 1.552,30 (cerca de R$ 5.048).

O valor máximo cobrado pela biblioteca do condado de Montgomery é de US$ 15 (cerca de R$ 48). Mas Kramer não se importou e, por conta própria, mandou o cheque com o valor completo da multa e uma carta à bibliotaca.

Segundo o jornal Washington Post, Kramer quis fazer algo de bom na época do dia de Ação de Graças, um dos principais feriados americanos.

Os livros emprestados pela família Kramer são “The New Way of Wilderners”, de 1958, escrito por Calvin Rutstrum e que traz dicas de acampamentos, e “365 Meatless Main Dishes”, de 1974, com receitas de pratos vegetarianos.

Kramer se lembrou dos dois livros, que não são mais publicados há algum tempo. Foi a segunda publicação que mais chamou a atenção dele. O homem estava fazendo uma pesquisa para escrever um livro de receitas da família quando encontrou o tal livro.

Folheando, encontrou o selo da biblioteca e a informação de que o livro teria saído de lá em dezembro de 1974.

Na carta enviada à biblioteca, Kramer diz que vai permanecer com os livros pelos próximos “85 anos ou algo assim”, quando espera poder fazer mais um pagamento com a nova multa.
Fonte: UOL

Vale para os humanos

Minha Rua

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Quando eu morrer quero ser nome de rua – mas não uma rua qualquer sim uma rua de paz que o sol percorra de ponta a ponta, ensolarada com varandas e sacadas e dourados horizontes

Anote, mulher, anote:quero rua com jardins de alamandas e alecrins e joão-de-barro nos postes

Com maria-sem-vergonha florindo até nas calçadas e à tarde a sineteada do vendedor de pamonha.

Crianças jogando bola mais bicicletas que motos passando com tal respeito que ninguém quer quebra-molas

Velhas casas de madeira com grandes quintais quietos e gatos tão sonolentos à sombra de abacateiros

Cães latindo para a lua galos cantando pro sol rádios esgoelando gol ao longo da minha rua

Janelas por onde espia uma criança ou viúva as brincadeiras da chuvão vento e sua folia

Anote, amor, anote:rosas de todas as cores no ar perfume de flores dálias e damas-da-noite

Bueiros desentupidos sem bitucas as calçadas sempre pipas penduradas num céu de azul infinito. Será, amor, uma artériade tal forma democráticaque em cada esquina lunáticostrocarão suas ideias

O tráfico de sementese mudas para as hortasserá intenso, por contade avós e adolescentes

À noite, sem mais aquela,quando a tevê estiverchata a ponto de doerolharemos as estrelas
Nas noites de plena luaà meia-noite vocêpasseará prateada e nuae só os cães vão te ver

Numa esquina garapeironoutra uma quitanda rica(rica de cores e cheiros)e a Padaria Benfica

E será de quem, mulher, a bendita padariasenão de um José Mariabisneto de um português?O açougue será do Joãoa quitanda do Kentarocomo a banca do Funaroa oficina do Carlão

Minha rua terá gentedos povos todos da Terraa conviver simplesmentecomo vizinhos de bairro

Então, mulher, quando eu forpara a viagem sem voltaache um super vereadore apresente esta proposta

Quem sabe seja preciso fazer a rua do nadapara ser inauguradajá velha. E já aviso: antes que sempre alguém façaa pergunta que se espera– Quem é que foi esse cara? – meu nome lá numa placa será coberto de hera.

domingo, fevereiro 12

Leitura de domingo

slightlyignorant:
“This gorgeous art is by Ayako Onozuka.
”
Ayako Onozuka.

O Conde e o passarinho

Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho).

Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses dois personagens – o Conde e o passarinho – foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo.

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Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.

Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.

Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte.

Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa.

Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder.

Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem?

Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha.

O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!

Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para o Conde, voai, voai, voai, voai, passarinho, voai.

Rubem Braga