sábado, janeiro 31

Nem sempre os livros ajudam

Livreiro Hind Kaleche em Jerusalém (1935)
Eram tempos de crise econômica num país em que praticamente isso é quase costumeiro. Logicamente que o dono do sebo também estava muito aflito com a queda nas vendas mesmo com a loja em local privilegiado e de movimento. Nem pensar como estava o resto dos coleguinhas. Mas esse livreiro ao menos resolveu procurar numa solução caseira uma saída para o problema. Recorreu ao próprio acervo. Foi flagrado lendo, entre o atendimento a um e outro freguês. No balcão, estavam as medidas com que procurava sair da crise: “As sete chaves do dinheiro”, de Michael Phillips; “O dinheiro é meu amigo”, de Phil Laut; e “Como atrair dinheiro”, de Robert Griswold. A crise passou, vieram outras, mas os livros não ajudaram muito. Ou melhor, nada. A loja fechou há anos.

Poeira perfumada


Ele adorava um livro porque era um livro; ele amava o seu odor, sua forma, seu título. O que ele amava em um manuscrito era sua antiga data ilegível, os caracteres góticos bizarros e estranhos, o douramento pesado que carregou seus desenhos. Foram suas páginas cobertas de poeira - poeira de que ele respirava o perfume doce e terno com prazer 
 Gustave Flaubert (1821-1880)

Um terror de biblioteca


Achados

Ainda não sei o paradeiro de alguns pertences da família, como o prato de porcelana que minha avó materna mantinha na parede da sala de jantar, sobre o aparador. A pintura mostrava dois garotos pobres sentados à sarjeta, saboreando um cacho de uvas. Olhei tantas vezes para eles, que sei de cor as roupas despojadas, os pés descalços, o jeito displicente de se sentarem, a gula e a amizade ali implícitas. Sempre que passo por uma feira de antiguidades ou bazar, procuro revê-los, mesmo que não sejam os meninos da minha infância, mas cópia, já que aquela arte e aquele tema eram bem populares, tempos atrás.

Herdei do pai o gosto por visitar baús e gavetas, à procura de objetos esquecidos e revelações. Lembro que às vezes ele sumia de nossas vistas por horas e minha mãe acabava por descobri-lo em outro cômodo, perdido e encantado entre papeis antigos.

Separando alguns livros para um amigo recente interessado em conhecer minha obra, mergulhei fundo em caixas que quase não abro e prateleiras que servem de depósito do classificado como inútil. Descobri verdadeiras relíquias e imaginei a satisfação de meu pai, se participasse comigo da pesquisa.

Encontrei textos publicados há mais de uma década, de que já não me recordava. Tive diante dos olhos, outra vez, duas cartas preciosas: uma, do uruguaio Eduardo Galeano, honrando-me com a oferta de sua amizade e contando do próximo livro, ilustrado por um brasileiro; outra, de Affonso Romano de Sant’Anna, ainda como diretor da Biblioteca Nacional. Quase um bilhete, mas repleto de frases afetuosas, escritas a mão.

Voltar a tudo isso foi como reencontrar parte de mim esfumaçada pelo tempo. A mesma emoção, porém, anos depois. E a constatação da essência, que nos acompanha e identifica desde o primeiro momento. Continuo fã daqueles dois autores sensíveis e me pareceu que escrevia melhor do que agora, sob a ousadia dos anos verdes.

Também gosto de resgatar mensagens alheias, apreciando o gosto do mistério que as envolve. Certa vez, achei um papelzinho sob um balcão de lanchonete, com dizeres aparentemente sem nexo, em letra de colegial. Guardei-o durante muito tempo, esperando que me inspirasse um conto ou algo assim. Mas o enigma jamais se revelou, muito menos o autor. Então me livrei dele, deixando que o acaso se encarregasse de levá-lo a outros olhares, talvez mais argutos.

Outros bilhetes guardo até hoje, em cadernos de colagens que comecei a colecionar, sem suspeitar que este fora também um hábito de meu avô paterno. São lembranças de amigos que o tempo se incumbiu de afastar, mas que conservo do lado esquerdo do peito. Muitos do tempo de faculdade, outros do início no jornalismo, cada qual com sua pitada de carinho e/ou genialidade.

Sou tão apreciadora de achados, que até mesmo listas de compras ou de tarefas que encontro adormecidas em algum bolso ou bolsa me divertem. Eles me contam o que fui, o que fiz, antes de me tornar o que hoje sou, provando que toda vida é um relato instigante, basta ter olhos de ver. Ou ler.

Madô Martins

sexta-feira, janeiro 30

Bibliotecas inusitadas

Biblioteca móvel em Paris

Em outros tempos...

Estou feliz porque cheguei a conhecer os livreiros lendários desta esplêndida geração. Eles estavam começando a desaparecer até mesmo quando cheguei. A Argosy Book Store e o Strand ainda estão operando, mas a maioria do resto já se foi, não derrubada pela Internet, mas apenas por esses tempos de canalha
Em “Livreiros perdidos de New York” Larry McMurtry lembra a riqueza de livrarias da cidade. Leia mais em inglês

Solução

Como não se afastar dos livros favoritos

O amor na estante


A madrugada em solitude se apodera de mim como se não fosse uma estrangeira a invadir os aposentos. Eu a aceito, na feliz condição de quem está no caminho dessa entidade – incompreendida e sobranceira. Já desisti, há muito, de ousar traduzi-la, transpô-la ao cognoscível que sustenta o espírito racional da humanidade.

É no maior dos silêncios que me chegam as palavras. Capturadas de páginas inconclusas ou exigidas de uma memória da qual sou totalmente impotente, elas me cruzam em suas trajetórias irregulares e tardias, translúcidas e calmas.

Que seria de mim se não fossem esses empilhados de papéis nessa hora tão perigosa? Em que umbral me encontraria se não houvesse a existência mágica dos livros na minha jornada? Seres que me permitem inclinar-me aos penhascos, para ao menos retrair o coração, submisso, e admirar o inefável ontológico dos abismos.

Amo-os como jamais fui capaz de mensurar. A casca, capa, o invólucro já me são manifestações do pré-amor. Ah, quantos amores são como os livros! Não! Os meus amores todos são livros.

Há os que dão saudades dos personagens e dos quais não me canso de recordar a felicidade extraordinária que proporcionaram suas epifanias brilhantes (e não efêmeras). Quantas lágrimas fugiram de mim, nas últimas linhas… Como sofri, aprendi e temi aquele fim, porque o fim é sempre inevitável.

Quantos livros não descartei nas primeiras folhas: ora por serem ininteligíveis na época, ora por carregarem uma prepotência insustentável. Um sorriso se encosta nos lábios ao trazer à tona alguns desses homens semi analfabetos!

Houve também as histórias curtas, magras, fáceis de ler. Pouco foram sedimentadas dentro do corpo. Jamais traziam a finalidade de ser abrigo aos bustos construídos em minh’alma.

E mais tantos amores-aventuras que poderia mensurar. Quando se gruda o olho à letra, o pulso ao limite até o ponto final. E a invasão serena, mista de alegria e alívio.

Se eu pudesse encaixar os amores nos livros, haveria também os de autoajuda, com suas fórmulas piegas, a náusea de sua previsibilidade e simplórias senhas de felicidade. Também os clássicos, pedantes, flácidos, ensimesmados, mofados e taciturnos que a gente se obriga a ler na frustrante tentativa de pertencimento, de transbordar aos outros nossa biblioteca incorporada.

Sobrará algum livro imorredouro cá dentro, então? Com os olhos do pensamento apertados em nitidez, eis que surge minha resposta: a poesia é o meu único amor que não tem prazo. Porque ela invadiu as fronteiras dessa noite com todas as janelas escancaradas às possibilidades. Imortal, com a fulgurância comparável aos fogos de artifício, quando tenho o faiscante espírito em festa. Ela, que me tece em seus retalhos e me dá o sentido desvelado de continuar. Que aniquila o laconismo mundano do choro. A ocêanica poesia que me arrebata em segundos, alucina meus poros e me deixa cambiante. Única, retira-me da medonha sonambulia perambular da ignorância. Que joga a desesperança dos trilhos para longe de mim. Esse foi o único de todos os meus amores que se perpetuou. O amor que me extrapola em lirismos e resplandeceres, sem nomeá-los de tal forma. Poesia que conflui a soturnidade, a clareza e o mais débil contentamento em verso. És a derradeira permanência neste mundo.

quinta-feira, janeiro 29

O leitor


Calor fecha BN


A Biblioteca Nacional amanheceu fechada ao público na terça-feira devido a uma paralisação de 24 horas de seus servidores. Eles reclamam do calor no prédio, que passa dos 40ºC, e dizem que o acervo corre risco. A paralisação ocorreu um dia depois de o presidente da biblioteca, Renato Lessa, dizer a funcionários que "a temperatura não interfere no acervo". Em resposta a Lessa, servidores citam texto de Jayme Spinelli, coordenador de preservação da instituição, segundo o qual "as temperaturas elevadas acarretam danos" como "deformações, ressecamento, fraturas" e "desenvolvimento de microorganismos".

Ângela Fatorelli, chefe de gabinete de Lessa, diz que a temperatura é monitorada e questiona a ideia de risco. "A biblioteca só passou a ter ar-condicionado nos anos 1970, todos os documentos ficaram sem ar até então. Não dá para dizer que os livros estão em risco, temos o aval do setor de restauração." 

A Biblioteca Nacional tem 59 aparelhos de ar refrigerado grandes e antigos, instalados há cerca de 30 anos e com histórico de problemas. Em 2013, esse sistema passou por reforma, no valor de R$ 1,25 milhão, que seria uma solução temporária, até se instalar um sistema novo.
(Fonte: Folha SP)

A cada um os seus

Cada escritor tem os leitores que merece
Mario da Silva Brito

Encontrado o caixão de Cervantes

Restos do caixão de Miguel de Cervantes, com as
iniciais M. C. 
no convento das Trinitárias
Um ataúde com as iniciais M.C., correspondentes as de Miguel de Cervantes, que continha restos de ossos em seu interior, foi encontrado no último sábado (24) na cripta das Trinitárias, convento em Madri onde desde de abril são buscados os restos mortais do universal escritor, perdidos dentro dos muros do convento feminino há quatro séculos. As iniciais são formadas com numerosos rebites de meia polegada de extensão cada um.

O achado do caixão ocorreu ao meio-dia de sábado (9h de Brasília), de acordo com fontes da pesquisa, que mantiveram um intenso hermetismo diante das dúvidas que ainda tinham. Entretanto, tudo indicava no domingo que o caixão, muito carcomido pela umidade e pelos xilófagos, com exceção de sua cabeceira, onde se encontram as iniciais – que apresentam sinais de oxidação de cor verde – abrigou o cadáver do Príncipe das Letras, lá enterrado em 23 de abril de 1616.

A equipe pesquisadora que realiza a busca, capitaneada nessa fase pelo médico forense Francisco Etxeberria, ainda não se atreve a assegurar de forma incontestável que os restos ósseos encontrados dentro do caixão pertencem a Cervantes.

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quarta-feira, janeiro 28

Biblioteca

Duas traças, irmãs
Biblió e Teca
Na hora do almoço
Com muito alvoroço
Ouvem a voz
Da mãe traça:
Biblió, Teca!
Venham almoçar
Há guisadinho
De papel
Para traçar!


Carlos Urbim

Leitura é para todos

Sem-teto lê, num parque de Tel Aviv, os livros que recolheu 

Futebol e Ilíada

A Editora DSOP acaba de lançar “Futebolíada”, escrito por José Santos e ilustrado por Eloar Guazzelli. O livro retrata uma partida de futebol, na qual a bola é disputada pelos personagens de um dos maiores clássicos da literatura universal – a “Ilíada”, de Homero. Entram em campo gregos e troianos, que iniciam acirrada disputa, narrada em lúdicas estrofes de quatro versos.

José Santos, autor já conhecido pela incursão pela literatura infantojuvenil com livros de temáticas ligadas ao futebol (“Show de Bola”, “Almanaque da Bola”, entre outros), envolveu mais de cem alunos da Escola da Vila no processo criativo da obra, a partir de oficinas que os estimulavam não apenas a debater o clássico de Homero, mas também a criar um poema inspirado na história e a comentar as estrofes de "Futebolíada".

As analogias evidentes de jargões da guerra e do universo futebolístico constroem o vínculo indispensável entre o clássico e o futebol. "Creio que, usando uma roupa nova, o clássico pode chamar a atenção do jovem. Afinal, por que ele se interessaria por uma história que aconteceu há mais de três mil anos? No livro, tento criar paralelos entre as obras e estimular os leitores a partirem para uma versão mais longa", ressalta o autor.

terça-feira, janeiro 27

Sem palavras

David Dalla Venezia 

Sua excelência, o leitor

Loui Jover

A primeira diferença que senti entre escrever livros e escrever crônicas – trabalho novo para mim –, foi a onipresença do leitor. Nunca penso no leitor ao escrever ficção, que se cria numa redoma autossuficiente. É só quando o livro ganha o mundo que o leitor aparece de fato, de carne e osso. A relação entre o leitor de livros e seu narrador é íntima, exclusiva, intransferível, silenciosa, atemporal. O leitor de um livro é sempre um espião – abre as páginas do romance, dos poemas, dos contos, como quem espia pelo buraco da fechadura um mundo que não é o seu. Os livros vivem fechados, capa contra capa, esmagados na estante, às vezes durante décadas – é preciso arrancá-los de lá e abri-los para ver o que têm dentro. Mesmo à solta, liberto da prateleira, ao acaso da mesa ou da cadeira, a natureza do livro é sempre fechada. Jogue-o no chão: nove vezes em dez ele cairá fechado, como os gatos que, dizem, sempre caem em pé. Se cair aberto, as palavras estarão para baixo. (Não façam o teste em casa, por favor – um livro de capa amassada ou dobrada é uma vítima melancólica; é preciso prensá-lo durante 72 horas com um dicionário Houaiss para que ele se recupere, mas sempre ficará a cicatriz.)

Já o jornal são folhas escancaradas ao mundo, que gritam para ser lidas desde a primeira página. A mão do texto puxa o leitor pelo colarinho em cada linha, porque tudo é feito diretamente para ele. O jornal do dia sabe que tem vida curta e ofegante e depende desse ser arisco, indócil, que segura as páginas amassando-as, dobrando-as, às vezes indiferente, passando adiante, largando no chão cadernos inteiros, às vezes recortando com a tesoura alguma coisa que agrada ou o anúncio classificado. Súbito diz em voz alta, ao ler uma notícia grave, “Que absurdo!”, como quem conversa. O jornal se retalha entre dois, três, quatro leitores, cada um com um caderno, já de olho no outro, enquanto bebem café. Nas salas de espera, o jornal é cruelmente dilacerado. Ao contrário do escritor, que se esconde, o cronista vive numa agitada reunião social entre textos – todos falam em voz alta ao mesmo tempo, disputam ávidos o olhar do leitor, que logo vira a página, e silenciamos no papel. Renascemos amanhã.

O leitor exige como um Procon ambulante. Um dentista reclamou que, na crônica “O dentista coxa-branca”, eu denegri a “nobre profissão de odontólogo”. Outro leitor precisou que o Brasil é de fato 14 quilômetros mais largo que alto (acertei!), mas do Acre à Paraíba, e não ao Rio Grande do Norte (errei!). Um professor lembrou, com razão, que a frase “Conheci o primo exótico de uma amiga que cultivava cobras”, de uma crônica sobre animais, é ambígua. O leitor, soberano, espera do jornal o rigor da verdade, porque afinal é para isso que servem os jornais. Nesse mundo, o cronista, um falastrão compulsivo, às vezes francamente mentiroso, sofre. 

Cristovão Tezza 


segunda-feira, janeiro 26

Ou vida sem viver


O livro fechado


Quebrada a vara, fechei o livro
e não será por incúria ou descuido
que algumas páginas se reabram
e os mesmos fantasmas me visitem.
Fechei o livro, Senhor, fechei-o,

mas os mortos e a sua memória,
os vivos e sua presença podem mais
que o álcool de todos os esquecimentos.
Abjurado, recusei-o e cumpro,
na gangrena do corpo que me coube,

em lugar que lhe não compete,
o dia a dia de um destino tolerado.
Na raça de estranhos em que mudei,
é entre estranhos da mesma raça
que, dissimulado e obediente, o sofro.

Aventureiro, ou não, servidor apenas
de qualquer missão remota ao sol poente,
em amanuense me tornei do horizonte
severo e restrito que me não pertence,
lavrador vergado sobre solo alheio

onde não cai, nem vinga, desmobilizada,
a sombra elíptica do guerreiro.
Fechei o livro, calei todas as vozes,
contas de longe cobradas em nada.
Fale, somente, o silêncio que lhes sucede.

Rui Manuel Correia Knopfli (1932 - 1997) 

Sugestão de 'ex-libris'


Se me fosse possível desenhar um ex-libris, para pregá-lo nos livros da minha biblioteca, imaginaria um brejeiro diabinho, com o tridente, no qual estariam inscritas as palavras amar, ler e viajar.
Realmente, os maiores encantos da vida estão resumidos nessas três palavras mágicas, não necessariamente nessa ordem, porque é difícil estabelecer-lhes a primazia. Cada um desses encantos completa o outro, cada um a seu tempo e conforme a preferência pessoal. Feliz quem pode usugruir, “numa só existência”, de todo esse trio “infernal”, em qualquer ordem, ou combinados.
José Cretella Junior, "Viajando pela Europa e pelo mundo"

domingo, janeiro 25

Paraíso do escritor


Dica


Já deve ter sido dito, mas não há mal em repetir: o livro banal é o que perde à segunda leitura; o bom livro é o que ganha
Vergílio Ferreira 

O macaco que quis ser escritor satírico

Na Selva vivia uma vez um Macaco que quis ser escritor satírico.

Estudou muito, mas logo se deu conta de que para ser escritor satírico lhe faltava conhecer as pessoas e se aplicou em visitar todo mundo e ir a todos os coquetéis e observá-las com o rabo do olho enquanto estavam distraídas com o copo na mão.

Como era verdadeiramente muito gracioso e as suas piruetas ágeis divertiam os outros animais, era bem recebido em toda parte e aperfeiçoou a arte de ser ainda mais bem recebido.

Não havia quem não se encantasse com sua conversa, e quando chegava era recebido com alegria tanto pelas Macacas como pelos esposos das Macacas e pelos outros habitantes da Selva, diante dos quais, por mais contrários que fossem a ele em política internacional, nacional ou municipal, se mostrava invariavelmente compreensivo; sempre, claro, com o intuito de investigar a fundo a natureza humana e poder retratá-la em suas sátiras.

E assim chegou o momento em que entre os animais ele era o mais profundo conhecedor da natureza humana, da qual não lhe escapava nada.

Então, um dia disse vou escrever contra os ladrões, e se fixou na Gralha, e começou a escrever com entusiasmo e gozava e ria e se encarapitava de prazer nas árvores pelas coisas que lhe ocorriam a respeito da Gralha; porém de repente refletiu que entre os animais de sociedade que o recebiam havia muitas Gralhas e especialmente uma, e que iam se ver retratadas na sua sátira, por mais delicada que a escrevesse, e desistiu de fazê-lo.

Depois quis escrever sobre os oportunistas, e pôs o olho na Serpente, a qual por diferentes meios — auxiliares na verdade de sua arte adulatória — conseguia sempre conservar, ou substituir, por melhores, os cargos que ocupava; mas várias Serpentes amigas suas, e especialmente uma, se sentiriam aludidas, e desistiu de fazê-lo.

Depois resolveu satirizar os trabalhadores compulsivos e se deteve na Abelha, que trabalhava estupidamente sem saber para que nem para quem; porém com medo de que suas amigas dessa espécie, e especialmente uma, se ofendessem, terminou comparando-a favoravelmente com a Cigarra, que egoísta não fazia mais do que cantar bancando a poeta, e desistiu de fazê-lo.

Finalmente elaborou uma lista completa das debilidades e defeitos humanos e não encontrou contra quem dirigir suas baterias, pois tudo estava nos amigos que sentavam à sua mesa e nele próprio.

Nesse momento renunciou a ser escritor satírico e começou a se inclinar pela Mística e pelo Amor e coisas assim; porém a partir daí, e já se sabe como são as pessoas, todos disseram que ele tinha ficado maluco e já não o recebiam tão bem nem com tanto prazer.

Augusto Monterroso (1921-2003)

O ano de 1968

Lily Furedi (1896-1969)
 Era o ano tempestuoso de 1968 e a viação rodoviária pagava 6 mil cruzeiros novos por morte em acidente. O leitor se refugiava no dicionário. O bilhete da viagem marca sua parada na letra E. O povo também esperava para embarcar na esperança.
(De um diário de livreiro)

sábado, janeiro 24

A mediocridade que nos assola

Eu tenho uma dificuldade intrínseca de existir no mundo (…) dada a fragmentação com que vivemos nossas vidas. Somos todos pequenos atores de pequenas aventuras absolutamente irrelevantes. Já não existem grandes revoluções, grandes aventureiros, grandes estadistas. Nossa vida se inscreve hoje nesse gigantesco bric-à-brac do cotidiano. A grande autobiografia, hoje, seria aquela que desse conta da crescente mediocrização a que estamos sujeitos, seja através do embotamento do espírito crítico, da razão ou dos próprios sentimentos
Jamil Snege (1939-2003)

Leitura não tem peso

Catherine Ducreux 

Vendas de virtual estagnadas


Nos Estados Unidos e no Reino Unido, as vendas de e-books estagnaram há dois anos, com os digitais correspondendo a pouco mais de 20% do total de vendas de livros das editoras. A tendência à estagnação também se percebe no Brasil. De acordo com grandes editoras, a venda de digitais em 2014 correspondeu a cerca de 3% do total das vendas de livros, porcentagem similar a de 2013. Mas há casos em que os e-books continuam sendo uma boa opção – seja porque as editoras optaram por lançar alguns títulos exclusivamente no formato digital (ou o mantiveram em catálogo enquanto as edições impressas se esgotaram), seja por saírem bem mais em conta que seus correspondentes físicos, embora, no geral, e-books ainda sejam caros no país.
(Fonte: Folha Online)

Recuperado conteúdo de pergaminho calcinado

A erupção submeteu o pergaminho à temperaturas de 320º
e qualquer tentativa de desenrolá-lo o romperia
A imagem não é um pedaço de carvão, mas um pergaminho do século I escrito em grego, com um texto, possivelmente, do filósofo epicurista Filodemo de Gádara. Esses são alguns dos segredos decifrados por um grupo de pesquisadores. Usando uma avançada técnica de imagem por raios X, puderam localizar letras e palavras escritas sobre um papiro completamente carbonizado.

No dia 24 de agosto do século I da era cristã, uma tremenda erupção do Vesúvio enterrou, sob toneladas de rochas vulcânicas e cinzas, várias cidades romanas como Pompéia e Herculano. A tragédia, entretanto, serviu para conservar algumas das maravilhas do Império Romano, como os afrescos dos palácios de Pompéia. No século XVIII, foi também descoberta a Villa dei Papiri, como foi denominada.

Na encosta do vulcão, em um povoado que havia pertencido ao sogro de Júlio César, quase 1.800 rolos de papiro foram encontrados debaixo de metros de cinzas solidificada. Somente alguns puderam ser desenrolados. A grande maioria dos papiros esperou, carbonizada, que a tecnologia permitisse lê-los sem destruí-los.

É o que, pelo menos em parte, um grupo de pesquisadores italianos e franceses conseguiu. A tarefa não era simples. O papiro, o material vegetal de que os pergaminhos são feitos, teve se suportar o castigo de uma onda de fogo de 320º, ficando enegrecido e compactado. Para complicar, os escribas usavam carvão vegetal para transcrever os textos. Assim, era negro sobre negro.

“A tinta à base de carvão não penetra nas fibras do papiro, mas fica agarrada sobre elas”, explicam os pesquisadores em seu trabalho, publicado pela revista Nature Communications. Esse detalhe foi fundamental para o sucesso de sua pesquisa. O texto escrito em um pergaminho fica em relevo. Somente poucos micrômetros (a milionésima parte de um metro), mas suficientes para, com a tecnologia apropriada, diferenciar entre o carvão da escrita e o carvão do papiro chamuscado.

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quinta-feira, janeiro 22

Quem se atreve a colocar na estante?

Volume reunindo toda a publicação na Wikipédia

O revolucionário

Despedida das Brigadas Internacionais perto de
Tarragona, em 1938, série fotográfica de Robert Capa 
Em 1919, ele viajava pelas ferrovias da Itália, carregando um quadrado de oleado do quartel-general do partido, escrito em lápis indelével e dizendo que o camarada havia sofrido um bocado na mão dos Brancos em Budapeste e pedido aos camaradas que o ajudassem no possível. Usava o oleado em vez de passagem. Era muito tímido e bastante jovem, e os ferroviários passavam-no de uma turma para outra. Não tinha dinheiro, e eles o alimentavam por trás do balcão nos restaurantes das estações.

Ficou espantado com a Itália. Era um belo país, dizia ele. As pessoas eram todas bondosas. Estivera em muitas cidades, muito caminhara, e vira muitos quadros. Comprou reproduções de Giotto, Mesaccio e Pierro della Francesca e as carregava embrulhadas em um exemplar do 'Avanti'. Não gostou de Mantegna.

Apresentou-se em Bolonha, e eu o levei comigo até Romagna, onde precisava ver um homem. Fizeram juntos uma boa viagem. Estávamos no início de setembro, e o campo era muito agradável. Ele era um magiar, um rapaz muito agradável e muito tímido. Os homens de Horthy haviam feito certas coisas perversas com ele. Falou um pouco delas. A despeito da Hungria, acreditava completamente na revolução mundial.

– E como vai indo o movimento na Itália? - perguntou.

– Muito mal - respondi.

– Mas vai melhorar – disse ele. - Vocês têm tudo aqui. É o único país de que todos podem ter certeza. Será o ponto de partida de tudo.

Em Bolonha, dissemos adeus e ele tomou o trem para Milão, de onde seguiria para Aorta e atravessaria a pé as montanhas até a Suíça. Falei com ele a respeito dos Montegnas em Milão.

– Não – disse ele, muito timidamente, não gostava de Mantegna. Escrevi-lhe indicando onde comer em Milão e os endereços dos camaradas. Agradeceu muito, mas seu pensamento já se voltava para a travessia das montanhas. Estava muito ansioso em atravessar enquanto o tempo era bom. Adorava as montanhas no outono. A última coisa que soube dele foi que os suíços o tinham na cadeia perto de Sion.

Ernest Hemingway( 1899-1961)

Música para Leitura

'Fui um leitor apaixonado'


 David Carmack Lewis 
Eu fui um leitor apaixonado. Não havia livros em minha casa, mas costumava ler bastante nas bibliotecas públicas, especialmente à noite. Lia indiscriminadamente. Lembro-me de ler a tradução do «Paraíso Perdido» quando tinha 16 anos. Não havia ninguém que me dissesse o que experimentar a seguir. Por isso tive uma educação literária anárquica cheia de lacunas, mas com o tempo consegui organizar uma espécie de visão coerente da literatura, acima de tudo da literatura francesa.
José de Sousa Saramago (1922 - 2010)

quarta-feira, janeiro 21

O salutar hábito de leitura


O hábito da leitura deve começar bem cedo, já na infância. Mas se nessa fase da vida a criança não se sentir suficientemente estimulada a conviver com os livros, em que pese à insistência de seus pais e professores, ainda se tem a fase da adolescência para que esse hábito seja criado. O que não se pode admitir é que os seus mentores sintam-se derrotados nesse mister.

E se passadas essas duas primeiras fases os livros ainda estiverem distantes do dia-a-dia das pessoas, não se quer dizer com isso que os adultos não poderão adquirir o hábito da leitura; a pessoa adulta consciente deve saber que o conhecimento facilita a sua vida, que a cultura faz com que as portas se abram para ela, que vive num mundo cada vez mais exigente a esse respeito.

O fato é que muitos são os motivos que desviam crianças e adolescentes da leitura em nosso país, que ainda não saiu da sua condição de pobreza. Para o pai ou a mãe que ganham um salário-mínimo ou um pouco mais que isso por mês, para sustento de sua família, é evidente que nada sobra para os livros, que, diga-se, estão muito caros, mesmos os livros usados, que são encontrados nas livrarias conhecidas como ‘sebo’.

Nessas livrarias, que vendem livros usados, este ou aquele livro pode ser adquirido por preço quase insignificante, mas isso, no entanto, não se constitui em regra. Pelo contrário, tenho verificado que aí esses livros usados estão também com preços muito elevados, sem que para isso se encontre justificativa, já que os livreiros os compram por preços quase que simbólicos, para depois revendê-los.

Por esses motivos, poucas são as casas de brasileiros que têm uma pequena prateleira com livros, sem falar em biblioteca, que, nesse caso, para o nosso país seria uma desmedida pretensão. E aqui não estamos nos referindo a casas de pessoas pobres, obviamente. Falamos de casas de pessoas da classe média e das pessoas abastadas, que, por certo, não sentiriam o peso dos preços dos livros, caso viessem a comprá-los.

Por este ou por aquele motivo, não se adquire o hábito da leitura. A regra, infelizmente, é a ausência de livros nas casas dos brasileiros, salvo raríssimas exceções. E, com essa ausência, não se pode pretender que crianças e adolescentes se sintam estimulados à leitura. Não se pode desconhecer os mistérios que os livros provocam nessas criaturas, que, quando podem, abrem-nos para matar a sua curiosidade - e é justamente aí que começa o hábito da leitura.

Outro óbice para que crianças e adolescentes passem a se interessar e gostar de livros está na ausência de bibliotecas públicas nas pequenas cidades e nas cidades de porte médio. Até nas importantes capitais do país se depara com poucas bibliotecas. Com isso se nota que o poder público não está interessado em aplicar verbas em bibliotecas, que, certamente, não lhes dão votos. Esses mesmos políticos temem que eleitores esclarecidos não os escolham para representá-los, quando pleiteiam um determinado cargo.

Resta-nos a esperança que livros mais baratos sejam editados, o que será possível, sem dúvida, se os editores tiverem por alvo as pessoas pobres, que não têm a exigência de capas sofisticadas e de papel da melhor qualidade. Não quero dizer com isso que o livro sofisticado, na sua apresentação, deva desaparecer; acho que, ao lado deles (dos livros caros), devem ser editados livros de baixo custo, mesmo que sejam subsidiados pelo Governo, que fiquem ao alcance das pessoas de poucas posses.

Ao barateamento do livro deve somar-se a abertura de bibliotecas públicas em todas as cidades do país, em número que seja proporcional a de seus habitantes. Assim, existindo bibliotecas com um bom acervo de livros de bons escritores, crianças e adolescentes passarão a lê-los, não tenho a menor dúvida.

Nesse caso, os professores se encarregarão de mostrar o caminho da biblioteca aos seus alunos. Resta-nos ainda essa esperança (livro de baixo custo e bibliotecas públicas), para que, no futuro, o brasileiro passe a contar com os benefícios da leitura.

Pedro Luso de Carvalho

'Desfibrilador' contra coma por causas eletrônicas

Cartum de Mohammad Khajali, do Irã, selecionado no 41º Salão Internacional de Humor de Piracicaba

Bibliotecas, palácios do povo


O historiador Stuart A. P. Murray traça a história das "casas dos livros" em um volume que defende seu boom em tempos de crise 
A única coisa que sobreviveu a mais de 10 horas de bombardeio pelos nazistas foram as paredes da biblioteca. Hollan House, em Londres, é atacada em 1940, impactos a destruíram quase completamente e foi tomada pelas em chamas. Quando os primeiros sobreviventes estiveram entre as ruínas, a biblioteca permanecia intacta, apenas um par de cópias tinha caído na batalha. Stuart A. P. Murray passou anos investigando como centenas de coleções de livros têm sobrevivido a guerras, incêndios, roubo, censura e saques. 

Além de analisar a evolução e o desenvolvimento destas "casas da cultura", que começaram a ser construídas há mais de 5 mil anos, com os primeiros escritos, e que hoje em dia têm adquirido uma importância superlativa em sociedades ocidentais, o historiador conta em detalhes como evoluiu a fabricação de livros, e como, para diminuir o custo de produção, o seu valor na sociedade caiu drasticamente.

"A tarefa dos escribas foi tão árdua que escreveram maldições aos potenciais ladrões", Murray diz no livro ”Bibliotecas: Uma história ilustrada”, publicado agora na Espanha, detalhes de como evoluiu a fabricação de livros, e de como, para diminuir o custo de produção, o seu valor na sociedade caiu drasticamente. "Eu sofro dor em voz alta pedindo clemência e não sendo permitido para se recuperar de sua agonia, até que ele se decomponha. Permita que os vermes dos livros eles roam suas entranhas", lê-se num dos trechos mais cruéis. “Nós passamos a subestimar a livros e bibliotecas, no entanto, desde há alguns anos, retornamos para alterar a tendência, "diz o autor.
Leia mais, em espanhol
As bibliotecas nos recordam nossa humanidade, preservam nosso legado como espécie e nos proporciona as bases intelectuais com que construímos o futuro. (...) O renovado progresso econômico e cultural da Europa reproduziu fome de livros e de educação, assim como a sabedoria antiga e o conhecimento contemporâneo que nos transmitiram

terça-feira, janeiro 20

Universitários preferem impresso


Uma pesquisa com mais de 300 estudantes universitários nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha e na Eslováquia constatou que a maioria prefere os livros físicos aos e-books, em particular para leituras mais "sérias". Consultados sobre o suporte em que preferem ler, incluindo livro impresso, celular, tablet, e-reader e computador, 92% elegeram o papel por conseguirem se concentrar mais no texto impresso do que nas versões digitais. O estudo é apresentado no livro "Words onscreen: The fate of reading in a digital world", da professora de Linguística da American University Naomi Baron.
A pesquisadora destacou duas questões por trás do resultado, que chama a atenção pelo fato de os jovens, acostumados a fazer tantas coisas nas telas, mostrarem-se resistentes aos e-books: primeiro, os estudantes disseram que se dispersam, são atraídos por outros estímulos; depois, eles relataram que sentem os olhos cansados, dor de cabeça e outros desconfortos físicos ao ler por mais tempo num tablet ou computador.
(Fonte: O Globo)

O que mais queremos


A biblioteca, o ministro e os alunos que zeraram


Na casa da minha avó, sempre existiu uma biblioteca. Lá dentro, uma coleção de livros de capa vermelha me chamava atenção, aos 7 anos. Lia de tudo, mas sempre voltava aos contos de um dos volumes, que tinha um cheiro só dele. Basta fechar os olhos para tê-lo aqui outra vez.

Em 1997, aos 11 anos, mudei-me para Barcelona. Não sabia dizer nem “hola, qué tal?”. Do lado do apartamento onde morava, tinha uma biblioteca de dois andares. Não era a única do bairro e podia pegar emprestado os livros que quisesse, garantidos gratuitamente pelo governo. Diante do medo de um idioma desconhecido, tinha um paraíso de estantes para me dar coragem.

Depois descobri que podia usar cadernos para puxar o ar. Um sutil rastro de oxigênio ficava escondido entre a costela e o abismo. Tinha de viver qualquer coisa que fosse ali, no branco da página, para investigar o paradeiro do fôlego e seguir adiante.

Faço esta digressão porque andei me perguntando quais são as lembranças das primeiras experiências de leitura e escrita que têm os mais de 529 mil estudantes que zeraram a redação do Exame Nacional do Ensino Médio. Não só de autores ou grandes obras, mas de como é estar diante da palavra com prazer e curiosidade. E os gestores públicos? Como têm contribuído para essa situação?

O novo ministro da Educação, Cid Gomes, foi governador do Ceará durante os últimos oito anos. Neste estado, a principal biblioteca pública estadual está fechada desde fevereiro de 2014 para passar por reformas que nunca começaram. Nos últimos tempos de portas abertas, os usuários levavam ventiladores próprios e abriam as janelas para suportar estar lá dentro, enquanto a maresia prejudicava o acervo já tão sofrido. Não são feitos reparos desde 2002.

Não são discursos “preocupados” que sobem os pontos da redação (e transformam vidas inteiras). Professores e alunos estão vinculados a um sistema educacional frágil. Que o novo ministro, antes de apelar para o que ele chamada de “amor”, garanta livros e educação de qualidade. Que apalavra seja usada para transformar e não para enganar ou ocultar precariedades. Não se constrói uma “pátria educadora” com tão poucas bibliotecas. E o pior: com as portas fechadas.

Artigo de Iana Soares transcrito de O Povo

Criança lê por prazer


Uma pesquisa feita com 2 mil crianças britânicas entre 5 e 16 anos mostrou que 78% delas leem por prazer, 55% preferem o livro em papel, 11% gostam de ler em tablets, 8% em e-readers e 5% em celular. Segundo o Childwise Monitor Report, 20% das crianças ouvidas têm um leitor digital – índice 4% maior do que o do passado e 15% maior do que em 2010. 
(Fonte: O Estado de S. Paulo)



segunda-feira, janeiro 19

Leitura subjetiva ou ignorante?

Os tolos leem um livro e não o entendem; os espíritos medíocres creem entendê-lo perfeitamente; os grandes espíritos às vezes não o entendem por inteiro: acham obscuro o que é obscuro, como acham claro o que é claro; os espíritos afetados querem achar obscuro o que não o é, e não entender o que é muito intelegível. 
Jean de La Bruyére (1645 – 1696)

Poemas


Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mário Quintana

Editar em tempos de cólera


Hildebranda tinha uma concepção universal do amor, e achava que qualquer coisa que acontecesse com uma pessoa afetava todos os amores do mundo inteiro.
Gabriel García Márquez, "Amor nos tempos do cólera"

Os muitos séculos que existem entre a primeira vez que um indivíduo morreu arbitrariamente por ter opinião e os nossos dias consolidaram a consciência de que a opinião é inata ao ser humano e, portanto, um direito não somente de tê-la, como também expressá-la, especialmente considerando sua natureza de viver em comunidade.

Por se tratar de uma conquista histórica, um valor quase folclórico que passamos de geração em geração, a liberdade de expressão tem algo da concepção universal do amor de Hildebranda Sanchez, na obra de Gabriel García Márquez: toda vez que acontece algo, é como se afetasse todas as liberdades de expressão no mundo inteiro. E é por isso que os editores, jornalistas e formadores de opinião de todo o mundo se manifestaram energicamente – suscitando, inclusive, inconformismo de muitos por não ter sido noticiado, com a mesma energia, o massacre de aproximadamente duas mil pessoas na Nigéria na mesma semana, ou por não se noticiar mensalmente o alto índice de homicídios de jovens brasileiros nas periferias.

Sim, a mídia de massa retratou o atentado a Charlie Hebdo com a dor de quem via o seu próprio editorial sendo atacado, potencializando o movimento Je suis Charlie, bem como o Je ne suis pas Charlie.

O “mas” nosso de cada dia e o Estado de Direito

Basicamente, o movimento “ne suis pas” acrescenta o “mas” após a afirmação: “É um absurdo o atentado, mas os cartunistas pegaram pesado”; “É uma tragédia, mas eles sabiam que caçoar os muçulmanos daria nisso” etc.

Essa estrutura de raciocínio atribuindo parte da responsabilidade pela ocorrência do crime à vítima é a mesma que aquela máxima machista que atribui o estupro à roupa da vítima. Acrescentar qualquer “mas” ao atentado terrorista ao Charlie é dizer que eles pediram para morrer tanto quanto uma mulher estuprada estava querendo por causa de sua minissaia – não se pode culpar a vítima pela loucura alheia.

Sei que muitos leitores tiveram acesso às polêmicas charges e ficaram chocados com seu teor – e elas foram feitas para isso mesmo: polemizar – e passaram a repensar sobre a tal liberdade de expressão. Talvez, pensando melhor, a liberdade de expressão teria limites, não?

Pois sim, a liberdade de expressão tem limites, como qualquer direito o tem. E, considerando que se trata de um direito fundamental, os limites não podem ser arbitrados pelo medo, pela moral, pelo “mimimi”, pela mediocridade, pelos religiosos (dos fundamentalistas aos não praticantes), pela conveniência ou ainda pela sogra. Direitos fundamentais devem ser limitados pelo próprio Direito: se a liberdade de expressão de alguém for ofensiva/excessiva a outrem, esse pode exigir judicialmente muita coisa – a reparação moral ou material, a retratação, o direito de resposta, a retirada de circulação etc. Pode exigir um tanto de coisas, mas não pode explodir o coleguinha, nem na França, nem na Nigéria, tampouco no Brasil.

Aliás, esse mesmo Estado de Direito também deve assegurar proteção às minorias, como no caso da minoria muçulmana que vive na França e passou a sofrer retaliações das mais diversas formas pelo reforço do preconceito que o ataque terrorista promoveu. Da mesma forma, também deve restringir atos da minoria muçulmana radical que vive na Nigéria e que quis impor novo ordenamento jurídico baseado em sua religião, resultando no lamentável massacre de dois mil cidadãos.

Por conta disso, não se pode incluir qualquer “mas” a direitos fundamentais, seja da minoria, da maioria, de bom ou mau gosto. Não se pode conceder liberdade de expressão apenas às expressões Don Juan que buscam agradar e conquistar a todos. E, se a expressão de alguém for excessiva, que o próprio Direito corrija, não a AK-47 mais próxima.

Tendo lembrado que temos um Estado de Direito na França e na Nigéria, gostaria de lembrar que, muito embora também tenhamos um Estado de Direito no Brasil, ter opinião por aqui é algo bem arriscado. Sem manter opiniões tão contundentes quanto os cartunistas e editores de Charlie, muitos autores e editores brasileiros recebem ameaças e violências das mais diversas formas.

No ano passado, a sede da Editora Abril foi depredada por vândalos, em retaliação à capa da revista Veja daquela semana. Gostem ou não da revista, ela assume uma postura editorial e, provavelmente por causa disso, sua editora foi atacada – apesar de ter sido numa sexta-feira de outubro, não se pode alegar que foi por causa do Halloween e dos “doces ou travessuras”...

Não raramente, o colunista da UOL Leonardo Sakamoto relata nas redes sociais as ofensas e ameaças que recebe por conta de sua coluna naquele portal de notícias. O Blog do Sakamoto não publica charges polêmicas como Charlie, mas igualmente possui opinião (goste você da opinião dele ou não) e se expressa.

Até mesmo Carlos Ruas, autor dos quadrinhos Um sábado qualquer, que utiliza humor leve para falar de religião, recebe ameaças e ofensas. E fico imaginando os diversos jornais, jornalistas, colunistas e autores que temos pelo Brasil afora expressando suas opiniões, o que já não receberam de ameaças ou violências. Muitos editores e autores já me confessaram não expor publicamente sua opinião para não correr riscos, e tampouco adotam linha editorial ou teórica clara para evitar qualquer conflito.

O que isso demonstra? Que se você tem uma opinião e não quer ter problemas, mantenha-a para si. Não a expresse. Opinar é insalubre. E quem vive de ideias, deve pleitear na Justiça do Trabalho o adicional por periculosidade. Imagine o que é ser editor e autor em tempos de cólera? Deveria haver um seguro para isso: Seguro-opinião contra terceiros.

Leia mais o artigo de Henderson Fürst