domingo, maio 31

Silêncio, estamos lendo


Kaatje Vermeire

Que tudo passe

O primeiro disco de George Harrison, depois que os Beatles acabaram, chamou-se Todas As Coisas Têm de Passar.

Sim: que tudo passe, das paixões aos impasses.

Vimos tantos filmes VHS! Aquele cartucho enorme, enfiável num aparelho ao lado da tevê de tubo grossa feito toco de açougue!

Pois é, também passamos do toco de açougue para o balcão frigorífico dos supermercados.

E, depois de tanto VHS, vimos tantos DVDs, que porém também passaram, como estão passando os CDs, que já foram fita cassete um dia, quem diria.

booksdirect:

Reading in bed.

E, antes da fita cassete, só existia o gravador de rolo, antes do qual nada se gravava, os sons perdiam-se para sempre. As orquestras tocavam maravilhosamente e eram ouvidas só por quem estivesse no teatro.

A nonna ouvia rádio-novela tricotando com os pés na cadeira de palhinha, pitando palheiro e cuspindo na escarradeira – e passaram as rádio-novelas, passaram os palheiros e as escarradeiras. As cadeiras de palhinha, porém, tornaram-se chiques; de tudo fica um pouco, conforme o poeta.

Meu neto pega músicas em alta fidelidade na nuvem da internet. Outro dia descobriu minha coleção de discos long-plays no porão, perguntou: que é isso, vô? Música, falei. Ele foi tirando os discos negros das capas, até perguntar: são músicas de luto, vô?

Sou do tempo em que guri trepava em árvore e as mães davam graças a Deus, ao menos estavam à vista.

Espero que as árvores não passem. Nem a vontade moleca de trepar em árvores e em telhados.

E que também não passem os papagaios, voltem todo ano no céu dos arrebaldes, empinados por guris tão hábeis quanto descalços, e que seja por gosto, não por falta de sapatos.

Também não passem os piões, as bolinhas de gude, os bilboquês e os carrinhos de rolemã, apesar de tanto asfalto esburacado. Se passarem, que não seja porque os guris só tem olhos e dedos para celulares. Não deixe, Deus, não deixem, pais, que percam a infância só enfurnados numa telinha.

A corrupção é que podia passar, ou ao menos diminuir. Mas isso não depende de Deus, né, mas de nós.

Também não passe a vontade de comer pipoca em noite de frio, de chupar pirulito em festa de criança, de correr com cachorro em gramado, de chupar manga se lambuzando, de beber água de mina na palma da mão.

Passem os poentes, maravilhosamente. Mas não passe esta vontade de andar ou ver tevê de mão dada com meu amor, e o gosto de ser honesto mesmo quando parece que a ladroagem tomou conta de tudo.

E que passem as modas, mas o coração continue com a corda toda. Amém.

Domingos Pellegrini 

Prazer

Brittney Lee
Literatura é, acima de tudo, prazer, sem isso é bobagem
 Ignácio de Loyola Brandão


No teatro anatômico

A pouco e pouco, eu que não queria muito ser médico, queria escrever apenas, interessei-me pelo barro de que aqueles corpos eram feitos, pelo barro de que eu era feito, barro, mau cheiro, repugnância

Eu tinha dezasseis anos quando me matriculei em Medicina, as aulas começavam mais ou menos um mês depois de completar dezassete e nunca havia posto o olho em cima de um cadáver quando o ensino prático, no teatro anatómico, começou. Depois de esperar com os colegas, de bata e luvas, arrepiadinho de medo, num compartimento que dava para uma sala enorme, cheia de pias compridas, de pedra, os mortos começaram a entrar numa espécie de macas metálicas, com rodas que chiavam, nus, de dedo grande do pé munido de um cartão com o nome, amarelos, direitos como paus. Uns empregados, com uma espécie de guarda-pó, também de luvas, transferiam-nos para as pias num pivete de formol. O que parecia o chefe dos empregados, o senhor Joaquim, gordo e bexigoso, veio anunciar

- Está a sopa na mesa

e nós lá fomos, acanhadíssimos, tentando não olhar

(pelo menos eu tentava não olhar, numa vontade louca de fugir a sete pés)

à medida que nos iam distribuindo pelas pias, em redor daqueles corpos amarelos, com o formol a encher-nos de lágrimas. Lembro-me do senhor Joaquim perguntar

- Que tal a sopinha meus senhores?

a um rebanho de miúdos mais ou menos apavorados, a quem ele vendia os esqueletos que era necessário comprar para estudar os ossos. Não comprei nenhum: o meu pai conservava em casa, numa mala de vime, os ossos que arranjara em estudante, recordo-me do maxilar inferior ainda com dentes, da caveira, dos ossos mais delicados da cabeça, embrulhados em papel de seda para não se quebrarem, de um monte de costelas e de tíbias, perónios, fémures, destinados a uma aprendizagem decente, consoante me recordo da desilusão do senhor Joaquim comigo, porque tinha um negócio de venda daquelas coisas aos estudantes, que lhe arredondava os fins de mês. Um sócio dele, coveiro, entregava-lhos no cemitério, à percentagem, o senhor Joaquim, que morava numas águas furtadas, punha a mercadoria a secar no telhado, até perder os fiapos de tendões e músculos que sobravam, limpava-os, lavava-os, secava-os, juntava-os em sacos que nos vendia e lá se apanhava o autocarro a chocalhar aquilo. Perguntei-lhe como fazia para separar os ossos da cabeça e o senhor Joaquim, engenhoso, explicou-me que, pelo buraco occipital, enchia os crânios de favas, despejava-lhes água dentro, tapava o buraco com uma espécie de rolha e os ossos iam-se afastando uns dos outros à medida que as favas inchavam. Continuo sem entender a razão pela qual os vizinhos não protestavam com o fedor: se calhar todo o Campo de Santana, onde ele habitava, colaborava nos esqueletos, não sei, a realidade era que o senhor Joaquim não parecia viver em conflito com ninguém. Tinha um filho que o visitava às vezes, todo torcido, e ele nos apresentava com orgulho

- O meu rapaz, parkinsonista

dava ideia que contente com a doença:

- Não é para qualquer um.

No meio disto apareciam os assistentes, que nos distribuíam bisturis a fim de começarmos a familiarizar-nos, numa pestilência de formol, com corpos com séculos de frigorífico em que tudo se confundia num lodo castanho, ao pé do qual o parkinsonista me parecia muito mais elegante que o Apolo Musageta ou a Madona da Caldeirinha. O teatro anatómico durava das duas às seis da tarde

(seis ou sete?)

até eu o trocar por um cinema de sessões contínuas na Praça do Chile

(numa rua por trás da Praça do Chile)

com um colega que conhecia a senhora que vendia os bilhetes. Pedia à senhora

- Dê-me dois lugares bons

a senhora, com um piscar de olhos entendido, colocava-nos ao lado de espectadoras solitárias, da idade da minha mãe, que encostavam docemente os joelhos aos nossos no escuro e nos davam a mão durante os filmes. Habitavam nas redondezas e convidavam-nos a acompanhá-las até casa para um chazinho, onde nos faziam festas na cara, nos davam beijos e introduziam dedos sábios nos intervalos dos botões da camisa, a suspirarem

- Ai menino, menino

e a experimentarem-nos a pele da barriga

- Que suave

enquanto a maior parte dos meus colegas se debatiam com os cadáveres no teatro anatómico, procurando a artéria radial numa lama confusa. A pouco e pouco, eu que não queria muito ser médico, queria escrever apenas, interessei-me pelo barro de que aqueles corpos eram feitos, pelo barro de que eu era feito, barro, mau cheiro, repugnância, e custava-me admitir que tudo aquilo tivesse vivido da maneira que eu vivia, até um dia me metamorfosear numa criatura de nudez horrível, cujos olhos abertos escutavam o vazio, não observavam o vazio, escutavam o vazio em que se tornaram, cortados pelos bisturis dos assistentes. A evidência da minha morte arrepiava-me: apenas uma questão de algum tempo e ossos, músculos, articulações, nada. Não um defunto: nada. Ficariam os livros que eu imaginava ir escrever, não ficaria, se calhar livro nenhum. Nem um dedo de senhora

- Que suave

a explorar-me a pele da barriga numa altura em que já não teria pele: apenas o que fora um corpo, com um cartão com o meu nome amarrado ao dedo do pé. Um nome que não dizia fosse o que fosse a ninguém, retalhado, inútil, explicando aos alunos o absurdo que eu era, deitado no telhado do senhor Joaquim, de ossos brancos ao léu e, no interior do meu crânio, favas a rebentarem com os pombos de Lisboa em torno."

António Lobo Antunes, em crônica publicada na VISÃO 1157

sábado, maio 30

O livro infindável

the reader by Yoncco.deviantart.com on @deviantART
Folheio o livro
infindável
em temas
e termos
e resumos
e resenhas
e cálculos
e artifícios
e artilharia
pesada

releio o texto
e desconcerto
palavras em letras
indispostas
aos olhos
fechados

o livro infindável
multiplicado
em páginas
repete passagens
de errados personagens:

os mortos
os amortecidos
as mortalhas
a sensação indecifrável
do mistério na página
seguinte.

Absorvo o tema e o contemplo
em escala: a janela
do mundo transportada
à página anterior.

O livro infindável traz
a perda de tempo. O tremor
da terra devastada.

(...)

Fecho o livro, apago minhas marcas
sobre o insucesso da leitura. Destaco
em riscos o ranger dos dentes.

O livro permanece infindável na estante
onde repousa o instante inicial do personagem.
Pedro Du Bois

Quem não gosta

Resistir é preciso


Temos de tentar mudar tudo isso. Mas a resistência é ficar contra o vento e ter confiança de que ainda existem modelos que fazem sentido, porque nós temos bons leitores. Quão terrível o encerramento das livrarias, além de mudança de vida e bancarrota do negócio, é a perda do livreiro. Um bom livreiro leva muitos anos para se formar. E, geralmente, tem na leitura uma alegria que compensa a dificuldade deste trabalho. Sendo livreiro, em última análise, é ser companheiro.
Lola Larumbe, livraria Rafael Alberti em Madri

O nascimento da crônica

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
bibliolectors:Sunday evening: resting and reading / Domingo tarde: descanso y lectura (ilustración de Riikka Sormunen)
Riikka Sormunen
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
Machado de Assis

Será?

A educação (...) criou uma vasta população capaz de ler, mas incapaz de reconhecer o que vale a pena ser lido
G. Trevelvan

A hora do leitor


Preguntarse por cómo serán las cosas en el futuro es sólo el deporte favorito de la impaciencia. No sólo porque el futuro no va a llegar nunca, (¿y, además, de qué futuro hablamos?: ¿de 2050 o de 2120? ¿de 2430 o del 5320?: se habla siempre del futuro como si fuera una estación de destino, y no una estación de paso hacia otra estación, también futura), sino también porque si miras al pasado y le preguntas a él si alguien en algún momento consiguió acertar de pleno cuando se puso a imaginar en cómo serían las cosas hoy, obtienes como respuesta: nadie. En esto es bueno no ponerse estupendos y adoptar la precaución del meteorólogo: sabe que como mucho podrá predecir el tiempo que hará de aquí a tres días, para intuir qué pasará en el cuarto ya tiene que jugar a las adivinanzas con la sola seguridad de que va a equivocarse, y predecir qué tiempo va a hacer el 28 de mayo de 2019 es de idiotas.

Así pues, en la puja entre libro digital y libro de papel, que primero hizo decir a tanto gurú que sería un combate de un asalto en el que el libro digital iba a terminar con el de papel de dos uppercuts y luego hizo reaccionar a otros asegurando que el combate estaba ganado por el papel -que iba a durar 100 años y que iría noqueando a cuanto artefacto se le pusiera enfrente-, lo mejor es acogerse a la evidencia: ni siquiera hay combate. No sólo porque los hinchas de uno y otro soporte no pertenecen a hinchadas rivales sino también, o sobre todo, porque un mismo lector puede serlo en soportes diferentes sin sentir que traiciona a unos colores. Es cierto que aquí, entre nosotros, el soporte digital facilita mucho las tareas de los piratas, esos exquisitos que consideran que todo escritor -y no te digo ya un editor- es un ladrón por querer cobrar por lo que, según ellos, a todos pertenece pero que no se consideran ellos mismos ladrones por apropiarse de algo. Pero ese problema ya estaba instalado en Latinoamérica, donde se piratean los libros en papel (hace poco, en Lima, compré un ejemplar de la edición pirata de una novela mía y el amable vendedor me la rebajó unos soles por ser el autor, asegurándome que era «el original de la copia», o sea la primera edición de la edición pirata). Pude entrar en un taller donde hacían las ediciones piratas, y esos piratas al menos se daban el trabajo de cambiar el formato del libro -ensanchaban y alargaban la caja para que diese menos páginas de grosor y abaratar el coste del papel-, ir a Wikipedia a copiar la entrada dedicada al autor del volumen si el original no traía esa información, buscar una foto para la contracubierta...
Porque para que haya una literatura potente, tiene que haber una potencia de lectores
Pero siendo la piratería un problema, no es ni de lejos el gran problema de la literatura. Los editores harán sus cálculos y seguro que podrán aportar pruebas fidedignas de cuánto dinero se fuga por culpa de ese problema... pero aún así, el problema en este vertiginoso presente nuestro viene de otro lado. Los mismos políticos que aparecen en escena con sus grandilocuencias banales y sus buenas intenciones decrépitas, las mismas autoridades que se visten de gala para asistir a un almuerzo con escritores y darle un premio a un anciano por toda su carrera, los mismos que firman las bases del año que viene de galardones aquí o allá y aprueban partidas para financiar actos y simposios, o no se pierden la inauguración de los grandes espectáculos que de vez en cuando organiza la Literatura -por decirlo así, pero ya me entienden, la Feria del Libro de Madrid es el más evidente-, esos mismos parecen encantados de hacer todo lo posible por apuñalar a la literatura para que se vaya desangrando de a poco, para que vaya sumiéndose en la insignificancia. Porque para que haya una literatura potente, tiene que haber una potencia de lectores. Los lectores son, en fin, responsables de la calidad y eficiencia de lo que una literatura produzca. Sus exigencias son las que hacen crecer y fortalecerse a una literatura. Y los lectores no nacen por combustión espontánea. Si la Literatura tiene más que ver con leer que con escribir (y es evidente que sí, aunque sólo sea porque leer sólo se puede leer en presente, mientras que escribir puede ser sólo pasado, aunque sólo sea en fin porque leer es la estación de destino y escribir la de partida), parece evidente que la base fundamental para alcanzar cierta dignidad en la potencia de nuestros lectores es el sistema educativo. ¿Y qué se ha hecho de la literatura en los últimos planes del sistema educativo? El papel ancilar que ahora ocupa y que sigue encogiéndose plan tras plan (plan para hoy, hambre para mañana), parece demostrar a las claras que todo el interés que las autoridades parecen destinar a la literatura cuando se trata de ponerse un vestido de gala, se desmaya en cuanto ésta pierde el oropel y se queda en asignatura débil de bachillerato, donde es más difícil conseguir buenas fotos con autores venerables que puedan ser reproducida aquí o allá.Leia mais o artigo de Juan Bonilla 

sexta-feira, maio 29

Livro: sempre mais uma utilidade

Noche: encender la luz para leer (ilustración de Lina Mulik)
 Lina Mulik

Defeito dos novos

O maior defeito dos livros novos é impedir a leitura dos antigos
Joseph Joubert 

Faça um marcador diferente

'Inviável', Livraria Leonardo da Vinci anuncia fechamento

Milena Duchiade
Depois de 63 anos de serviços literários prestados ao Rio de Janeiro, a Livraria Leonardo da Vinci perdeu a batalha para os novos tempos e vai fechar as portas ainda em 2015. A loja, fundada pelo romeno Andrei Duchiade, realizará uma queima de estoque a partir de 1º de junho. Milena Duchiade, herdeira do negócio, afirma que é impossível continuar operando com prejuízo. Numa tentativa de diminuir as perdas, a casa já começou a desocupar as quatro salas do histórico Edifício Marquês de Herval, na Avenida Rio Branco. Até o mês que vem, serão apenas duas, abertas até o fim da liquidação.
Nós estamos sendo punidos por nossas qualidades. Nossas virtudes tornaram-se defeitos. Não temos um café, não vendemos papelaria, nem informática. Vendemos pouca autoajuda e poucos best-sellers. Temos um nicho, muito específico, que está sob pressão
Desde 1952, a livraria é reduto de intelectuais e universitários que buscam obras importadas. Em tempos anteriores à internet, era responsável por suprir os leitores com os últimos lançamentos editoriais da Europa e dos EUA. Aos poucos, foi adicionando títulos nacionais às prateleiras. Carlos Drummond de Andrade homenageou a loja, que fica no subsolo do prédio, com versos. Na época da morte de Andrei, em 1965, quem assumiu o comando foi sua mulher, Giovanna Piraccini. Em 1996, Milena se juntou à mãe na gerência dos negócios.

Nas estantes da Leonardo da Vinci ainda repousam livros cujo preço original era cotado em pesetas espanholas e francos, da França, por exemplo. As obras, que fazem parte de um estoque estimado em mais de cem mil exemplares, foram compradas antes do surgimento do euro, em 2002, e esperam até hoje para serem vendidas. O modelo de negócios, baseado em fidelização da clientela, títulos especializados e, por conta disso, em um ritmo lento de vendas, esgotou-se de vez com o protagonismo de lojas virtuais e megalivrarias, diz Milena. Nem a incursão na Estante Virtual, site que reúne sebos e livrarias, foi capaz de reduzir as perdas. Milena afirma que as obras no Centro da cidade, nos últimos anos, aceleraram o processo:

— Foi a pá de cal que faltava. Nos dias seguintes às manifestações de 2013, as calçadas ficavam cheias de cacos das vidraças dos bancos. Quem anda na rua assim? Com a Rio Branco cheia de estilhaços e tapumes? No fim de 2014, em novembro, começaram as obras que destruíram a avenida. As pessoas não conseguem circular mais por aqui.

Leia mais 

A Livraria


Adentro os umbrais do Edifício Marquês do Herval,
o rito de passagem conduz às dimensões lúdicas.
Desço a espiral de um subterrâneo de luzes,
giram percepções de cristal:
o olhar desvenda iluminuras,
códices de preciosa indústria.
Anticaverna do tempo, flui o rio da memória,
núcleo de referência do mundo.
Nem toda livraria é um pórtico da galáxia, insígnia da vida.
Mas se Leonardo é o patrono,
um gênio conversa com o espírito dos livros
e o acervo suscita viagens insólitas.
Nem toda livraria exalta inexorável fortuna.
Mas se a vitrine é aquarela mística, ignição do estro,
motor geracional da história,
saio pela galeria conduzindo um artefato de plástico,
repleto da prosódia universal.
Se o patrono é Leonardo,
a livraria é ponto cardeal de insônia e êxtase.
Arcádia! Ágora! Acrópole!
No frontispício está escrito:
“Livraria Leonardo Da Vinci.”
Márcio Catunda

No coração do Rio

Chega-se a ser grande por aquilo que se lê e não por aquilo que se escreve
Jorge Luís Borges

Como sempre fazia, entro na Da Vinci e vou até o fundo, para, antes de ‘viajar’ pelas prateleiras, cumprimentar dona Vanna. E quem encontro sentado em altas negociações com a livreira? Luis Antonio, “sobrinho” querido, filho de amigos da vida inteira, então com menos de 15 anos, a negociar os pagamentos dos livros de Astérix que levava e dos que encomendava.

Fiquei parada, atrás dele, em silêncio, impressionada com a capacidade de negociação do garoto e mais ainda, com o modo como dona Vanna lidava com o cliente, confiando na sua palavra e anotando, em um caderno, só o nome dele e suas encomendas.

Telefone? Endereço? Nome dos pais ou responsáveis? Não, nada disso foi necessário. Ali bastava a palavra do leitor. Que se tornou tão fiel que depois dos Astérix passou a comprar ali a série Dungeons and Dragons...

Terminado o assunto entre os dois, Luis Antonio se levanta e caminha tão apressado para a porta que nem me vê. Comento com dona Vanna meu espanto e pergunto se agindo assim ela não leva muitos prejuízos. E ela: “Poucos. De adultos. Mas de um jovem, menino ainda, que sabe muito bem o que quer e que é um leitor interessado no que lê... Não. Por esse ponho minha mão no fogo”.

Quem quisesse ler e precisasse pagar em mensalidades, tinha em dona Vanna uma aliada. Velho ou menino, não importava, importava que o leitor amasse os livros como ela os amava. Ali encontrávamos os últimos livros saídos na França e toda a coleção da Bibliothèque de La Pléiade, tentação que até hoje me fascina e que só mesmo em parcelas era possível comprar.

Dona Vanna, uma senhora livreira, que atendia realmente ao leitor 
Dona Vanna amava ler. E transmitia esse afeto a quem a procurava. Foi Borges quem disse que imaginava o paraíso como uma grande livraria. Concordo com ele e digo mais: o meu céu se parece com as duas salas maiores da Leonardo da Vinci, abarrotadas de livros, com suas lombadas tentadoras como a nos dizer “me pega”!

A Leonardo da Vinci, assim como a finada Casa Crashley, faziam do centro do Rio a sucursal do paraíso. Na Crashley comprei os livros da Jane Austen que marcaram minha adolescência; foi onde conheci Agatha Christie, Somerset Maughan, Hemingway e Graham Greene.

Ontem li em O Globo que a filha de dona Vanna, Milena Duchiade, declara sua livraria “inviável”. Doeu. A Da Vinci atravessou um incêndio tenebroso, passou pela estupidez dos anos de chumbo. Giovanna Piraccini, italiana de Bolonha, com seu sotaque marcante, dizia, em alto e bom som o que pensava das dificuldades que os milicos impunham à importação de livros, não escondia de ninguém que nada é mais importante que a liberdade de escolha e que a censura é burra.

Mas a livraria não atravessa o que fazem com o Rio, que anda tão acabrunhado... Já perdemos tantas coisas. Noutro dia o Elio Gaspari pediu que alguém salvasse a Casa Daros, o belo casarão em Botafogo. Sugere que milionários brasileiros façam como os Gulbenkian, os Rockefeller, os Frick, os Wallace e se unam para salvar o museu.

Drummond, um dos milhares que frequentaram a Da Vinci
Vou nas águas do excelente jornalista e sugiro: que tal os milionários (e temos tantos, não é? nunca tivemos tantos) se unirem e transferir a Livraria Leonardo da Vinci para a Casa Daros? Não vejo, em parte alguma, melhor acervo para aquele belíssimo casarão que os livros das prateleiras da grande livraria em perigo.

quinta-feira, maio 28

Momentos de leitura

Mi tiempo, mi lectura (ilustración de Nathalie Boissonnault)
 Nathalie Boissonnault

Aprovechando cualquier momento para alimentar la mente: leyendo (ilustración de Mouni Feddag)
Mouni Feddag

Viajar y leer: doble viaje (ilustración de Gerard Boersma)
Gerard Boersma

Passo Fundo - o cancelamento é uma tragédia

O anúncio do cancelamento da Jornada de Literatura de Passo Fundo, que deveria acontecer este ano, é um fato muito grave, tanto pelo que significa de prejuízo para um projeto vitorioso, como pelas implicações que decorrem dos mecanismos de financiamento da cultura em nosso país.

A Jornada de Passo Fundo é (esperamos que o uso do presente continue válido) um empreendimento de uma universidade particular. A Universidade de Passo Fundo não faz parte nem do sistema estadual nem do sistema federal de universidades públicas. Reconheço que não tenho detalhes sobre o conjunto de suas atividades, nem sobre a avaliação geral de seus cursos.



A Jornada, por sua vez, é uma iniciativa da Tânia Rösing – que acho que já está até aposentada – que a criou há quase três décadas. Muito modesta no início, foi arrebanhando admiradores e apoiadores entre alguns dos principais escritores do país, que colaboram e colaboraram para a organização do evento. Cito, de memória, alguns que já prestaram sua contribuição ao evento, como o Ignácio de Loyola Brandão, o Josué Guimarães e o Deonísio da Silva.

A principal característica da Jornada de Passo Fundo, que a torna única, é que não se trata simplesmente de um evento. Os dias da jornada propriamente dita são precedidos e sucedidos por um trabalho sistemático junto ao conjunto das escolas de ensino fundamental da região, com a leitura dos romances, contos e novelas dos autores convidados (e mesmo dos que não são). O resultado disso, pelo que já tomei conhecimento, é um efetivo aumento da qualidade dos resultados das avaliações pedagógicas na região. Não apenas no domínio do português, como também de outras áreas. Afinal, quem sabe ler e escrever corretamente com certeza tem condições de mostrar desempenho melhor nas várias áreas do conhecimento.

As notícias sobre o cancelamento da Jornada não deram conta da suspensão ou da continuidade desse trabalho junto à rede escolar. Se o cancelamento se refletir também nessa área, seu prejuízo será incomensurável para os jovens da campanha gaúcha.


A professora Tânia Rösing, sua idealizadora e até hoje dirigente, possui inúmeras virtudes que, em determinados momentos, podem até parecer defeitos. A principal é o seu compromisso com a qualidade do evento. Nisso, Tânia Rösing não transige. Conseguiu transformar um problema – o da falta na cidade de um local suficientemente grande para o acontecimento – em uma solução altamente criativa e simpática: as Jornadas acontecem debaixo de lonas de circo. Mas Tânia Rösing não abre mão da ampla seleção de convidados. Importante: os convidados não são apenas os autores. São as crianças e professores de muitos municípios em torno de Passo Fundo, que devem ir de ônibus, ter um mínimo de garantia de alimentação e segurança para participar na Jornada.

O cancelamento da Jornada deste ano, ao que tudo indica, está acompanhado também do cancelamento do que seria o 9º. Prêmio Zaffari Bourbon de Literatura. O Prêmio era (ou ainda é, oxalá) um dos mais significativos da vida literária nacional. Patrocinado pela rede de supermercados Zaffari, que faz parte do grupo Bourbon de hotéis e shoppings centres, se for cancelado também significará uma perda importante.

Carta-aberta em defesa da Jornada de Passo Fundo


Nós, escritores abaixo-assinados, chamamos a atenção dos demais parceiros, e envolvidos com literatura, de leitores a estudantes, professores, jornalistas, editores, livreiros, distribuidores, bibliotecários, curadores de feiras, festas e bienais e demais agitadores culturais, para o descaso sofrido pelas Jornadas Literárias de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, na pessoa de sua criadora e organizadora, a professora Tânia Rösing, que, após trinta de anos de luta para o fortalecimento do livro e da leitura, por falta total de apoio e de sensibilidade do Ministério da Educação, do Ministério da Cultura, das secretarias estadual e municipal de cultura de sua região e de patrocinadores, teve que cancelar a edição deste ano das Jornadas Literárias, realizadas a cada dois anos, desde 1981, atraindo milhares de interessados do mundo das letras.

Em mais de três décadas, as Jornadas firmaram-se como um dos mais importantes eventos do país de incentivo à leitura e à escrita, reunindo nomes consagrados e aproximando autores, artistas e intelectuais aos leitores para, juntos, debaterem as mais diversas temáticas relacionadas à literatura. O número de participantes em uma mesma edição chegou aos mais de 35 mil em 2011 e 2013 e, no somatório das três décadas, superou 180 mil.

Vale lembrar de que a cidade de Passo Fundo tem o maior índice de leitura do país (6,5 livros ao ano por habitante contra 1,2 do Brasil), como resultado do trabalho promovido pelas Jornadas Literárias. O evento é o ápice de um processo de dois anos, envolvendo encontros mensais com autores e estudantes, um trabalho preparatório que envolve todas as escolas de ensino fundamental e médio, incluindo professores. Os alunos leem e discutem os livros e vão ao evento .

A incansável Tania Rösing ganhou no ano passado o título Amiga do Livro do Ano, concedido pela Câmara Brasileira do Livro ao personagem brasileiro que mais se destaca a cada ano na formação de leitores e incentivo à leitura e escrita.

Por tudo isto exposto, não entendemos como um evento da grandeza e da importância das Jornadas Literárias é esquecido, por instituições e patrocinadores. Perdem, com essa atitude negligente, a cidade Passo Fundo, o estado do Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo. Perdemos todos nós, que sonhamos com um Brasil consciente do seu valor e da sua cultura. Um Brasil leitor, que um evento como este está ("estava") ajudando a construir.

Juntem-se a nós nesta luta assinando seu nome na lista abaixo


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Quando não se pode parar de ler

Os heróis


Vieram me procurar uns jovens estudantes de literatura, e me pediram para responder a duas perguntas: Quais são seus heróis prediletos na literatura brasileira? E heroínas?

Lembrei-me de questionário idêntico, que me fora feito há muito tempo; encontrei o recorte em que lhe respondia e, com surpresa, verifico que as respostas a dar hoje seriam as mesmas de tantos anos atrás.


Em primeiro lugar venero Macunaíma, é claro. Macunaíma, herói da nossa gente. Macunaíma das incríveis aventuras, o herói sem nenhum caráter, que não é símbolo porque não se passa para isso, fica muito acima, quilômetros, léguas. Aquele que fez tudo que não fizemos e quereríamos fazer; com a sua gaiola de legornes debaixo do braço pode ser, à vontade, bandeirante, pirata, guerreiro, sedutor e ladrão; percorre os sete caminhos do mundo, descobre os limites indevassados da terra dos sem-fim, intriga, mente, ama, engana, briga e apanha, andando sempre muito acima do bem e do mal - pois não foi à toa que deixou a consciência na ilha de Marapatá.

Depois dele, meu predileto é o velho Vitorino Carneiro da Cunha, herói de Fogo Morto, esse nosso Quixote ou nosso cavalheiro Bayard, figura impecável, quase sem medo e sem reproche, dentro das suas limitações humaníssimas.


Incapaz de tolerar sujeição, encarnação de desassombro e da independência, advogado das causas perdidas, grandiloqüente, farofeiro e eternamente a esbravejar em sagrada ira contra os poderosos e seus malefícios. Não há quem o conheça e não o ame e, amando-o, não faça como seu próprio criador, José Lins do Rego, que confessava haver alçado o bravo capitão a uma postura de árbitro dos seus atos e seus impulsos, de tal modo que jamais se atreve a praticar, de cabeça erguida, uma ação que o velho Vitorino pudesse reprovar.

Quanto às heroínas, o primeiro lugar nessa galeria é um clássico. Não tem de escolher, está por si só escolhido e aclamado. Pois esse primeiro posto é inegavelmente de Capitu, a dos olhos de cigana, oblíqua e dissimulada, imagem do eterno e venenoso feminino. Capitu, deusa de todos nós.


O segundo lugar está meio indeciso. Poderia ser Dona Janaína, rainha do mar, poderia ser a filha da Rainha Luzia. Talvez devesse pertencer a Iracema; mas Iracema não é bem uma mulher, é uma alegoria vestida de índia, com sua personalidade toda dissolvida na prosa poética de Alencar - e dela nenhuma outra lembrança temos, além dos lábios cor de mel, do talhe de palmeira, do cabelo de asa de graúna. E isso é pouco. Antes apelar para Moema, que sabia nadar e matou-se afogada.

Mas já que me pedem uma opinião pessoal, prefiro dar o segundo lugar àquela que é realmente a predileta do meu coração e uma espécie de equivalente, no mundo livre da infância, do velho Vitorino Carneiro da Cunha: é a boneca Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, nas histórias de Monteiro Lobato.

Emília não tem medo de ninguém; nem da vida, porque boneca propriamente não vive, nem da morte, porque boneca não morre. Não admite leis, nem regras, nem gramática. Não respeita cara nem autoridade. Bruxa de pano com olhos de linha preta, assim mesmo acha que tem tudo, não quer ouro nem fortuna, nem amantes, nem poder. Só quer aventuras e o direito de abrir a boca e opinar sobre o que bem entende. Emília, meu exemplo e minha aspiração, tantas vezes, meu raio de sol, asneirento, faísca de liberdade, de coragem, e de insolência, minha mestra e meus amores - Emília, Marquesa de Rabicó.

Rachel de Queiroz (O Estado de São Paulo/30/11/2002
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quarta-feira, maio 27

Mulher lendo

biblioklept:Woman Reading — Utagawa Kuniyoshi
Utagawa Kuniyoshi

O tempo, esse avalista da qualidade

une des plus anciennes librairies de Kyoto
Uma das mais antigas livrarias de Kyoto
Quanto melhor é um livro, mais tempo leva a vender, porque a venda está na razão inversa do tempo necessário para compreender e aquilatar o mérito que ele tem
Honoré de Balzac 

A 'biblioteca' de Shonibare


Instalação de Yinka Shonibare na exposição Africa Africans, no Museu Afro Brasil, em São Paulo, que retrata a arte africana contemporânea. A "biblioteca" é formada por livros encapados em tecidos com motivos africanos

Resultado de imagem para Yinka Shonibare, MBE, SHO at Brighton Festival 2014

Decompondo uma biblioteca

Improbables Librairies, Improbables Bibliothèques
Não sou capaz de dizer que obra ou que autor inoculou em mim o vício da leitura, porque nasci entre livros, milhares deles. Meu pai tinha estantes espalhadas por várias partes da casa, inclusive na garagem. 

A presença da biblioteca, sua imponência concreta, material, sempre me impressionou. Por maiores que fossem minhas divergências com meu pai, eu sabia que aquele era o bem a ser legado. Em toda minha vida, creio que só não fui proibido de mexer nos livros. E isso, naqueles tempos severos, não era pouco.

Obviamente, eu tinha títulos só meus, que ocupavam três ou quatro prateleiras: romances policiais e de terror, compartilhados com minha mãe, particularmente os da Agatha Christie; livros comprados em bancas de jornal, como a fabulosa série da Giselle Monfort, a espiã nua que abalou Paris, que ainda conservo; alguns livros sobre umbanda e candomblé; e muita coisa do Círculo do Livro: Amado, Verissimo, Nelson Rodrigues.

Não devo ter feito esta reflexão, na época; mas talvez intuísse que aquelas três ou quatro prateleiras materializavam o traço rebelde da minha personalidade. Meu pai não condescendia que eu experimentasse os prazeres simples da rua ― pela mesma razão que via com desconfiança aquele gosto literário "popular", que poderia me afastar da erudição.

Quando ingressei na faculdade de matemática, a noção de que o conhecimento é um bem físico ― e cabe numa biblioteca ― se manifestou em mim de forma consciente. Meus colegas estudavam em apostilas fotocopiadas. Aquilo, para mim, era inconcebível: eu necessitava de livros, dependia daquele objeto para aprender. Passei, então, a montar algo que não era apenas uma coleção aleatória, mas uma pequena biblioteca pessoal, que obedecia a um plano rigoroso e predeterminado. Podia me orgulhar de ter livros que inclusive não faziam parte da bibliografia. Foi essa uma lição que a biblioteca me ensinou: a busca do conhecimento deve ser feita de maneira independente.

Houve nessa época um caso curioso e decisivo, na minha história de leitor. Meu livro de cálculo diferencial era o de um certo Piskounov, um nome assim. Era uma obra que ninguém possuía. Logo que se espalhou a notícia de que eu estudava cálculo num livro russo, fiquei com um imenso prestígio entre os colegas comunistas; e ganhei de um deles um pequeno volume do poeta Agostinho Neto, o presidente comunista de Angola ― que me iniciaria numa das mais importantes aventuras da minha vida: a literatura africana.

Lama

Quando meu pai morreu, eu deveria, naturalmente, herdar a biblioteca; mas uma outra circunstância triste mudou completamente meu destino. Como a casa ficara fechada, uma rachadura no teto permitiu que as chuvas destruíssem praticamente tudo. Nunca esqueci a imagem de toda aquela inteligência transformada em lama. Sabia que o conhecimento era concreto, mas não me dera conta de que fosse perecível. 

improbables librairies improbables bibliotheques - Google zoeken

De toda aquela massa, só consegui salvar um exemplar das poesias completas do Fernando Pessoa. Este livro foi o único objeto pessoal que herdei. Passei a sentir, assim, uma necessidade radical de reconstituir a biblioteca. Não sei se foi isso que me fez decidir voltar à faculdade. Mas, dessa vez, para estudar literatura.

Meu primeiro projeto foi o de ler toda a literatura brasileira. Todos os sábados eu ia ao centro da cidade para pechinchar nos sebos, em todos eles. Talvez já tivesse consciência de sofrer de uma obsessão certamente adquirida em função daquela primeira biblioteca: a de obter um conhecimento que fosse total, absoluto, ainda que num campo específico do saber.

O objetivo, na prática, era inalcançável; mas foi essa meta que me fez desenvolver a capacidade de ler tão rápido sem perder a concentração. A frase clássica mens sana in corpore sano, na verdade, é tautológica, porque o cérebro é uma parte do corpo. A leitura, assim, é uma atividade atlética como outra qualquer: exige treino, exige condicionamento físico. Por isso, não há livros difíceis, apenas leitores mal treinados.

Embora minha biblioteca continuasse crescendo, percebi que para compreender a essência da literatura brasileira, para obter um conhecimento total sobre ela, seria necessário compará-la a outras. Comecei, então, um processo compulsivo de comprar livros para formar, nessa mesma biblioteca, uma seção com os grandes clássicos universais, muitos dos quais eu conhecera na biblioteca paterna.

Então, aos autores brasileiros se somaram franceses, russos, portugueses, ingleses, italianos, norte-americanos, espanhóis, alemães e o magistral conjunto dos chamados hispano-americanos. Alguns dirão que essa biblioteca não tinha nada de especial, era uma simples coleção de clássicos. Mas havia uma diferença: é que, a partir dos poemas do Agostinho Neto, também passei a ler ― e muito ― os escritores da África.

E foi a experiência profunda e original expressa na literatura africana que me fez perceber que os cânones convencionais são o reflexo de uma mentalidade colonial e evolucionista. Assim, para obter o conhecimento total da literatura, era necessário incluir, além dos africanos, o mundo inteiro. E era fundamental estudar as literaturas antigas, clássicas e medievais. Porque a comparação tinha também que se fazer no tempo.

O cúmulo desse processo ocorreu quando constatei que a literatura ― aliás, a literariedade é anterior à escrita; e para compreendê-la era necessário conhecer as culturas ágrafas, a mitologia dos povos ditos primitivos. E não bastava o texto dos mitos: tinha que ler também monografias etnográficas que me permitissem interpretá-los.

Desmonte

Minha biblioteca, nessa altura, atingira proporções enormes, borgeanas. Mesmo mantendo um sistema rígido de leitura, concluí que nem em 60 anos eu conseguiria ler todos os meus livros. E foi essa consciência que me fez, de uma hora para outra, simplesmente abdicar da literatura, como objeto de um conhecimento total.

E talvez estivesse influenciado por uma estranha descoberta, lida em algum lugar: a de que Borges conservava em casa não muito mais que 500 volumes. 

Tomado de Improbables Librairies, Improbables Bibliothèques

Comecei, então, um processo muito mais complexo que o de construir uma biblioteca: o de desmontá-la. Talvez nem todos tenham noção do que significa, para um viciado em livros, reduzir todas as possibilidades de conhecimento (e de prazer) a não muito mais de 4 mil obras. Não vale a pena mencionar detalhes, que seções foram mais ou menos afetadas. Importa é que no fim desse drama consegui tornar a casa transitável, moderar a compulsão e descobrir coisas muito profundas a respeito de mim mesmo.

Primeiro: que o excesso de subjetividade me incomoda, que ainda conservo um certo espírito matemático. Por isso, a grande enxurrada que partiu foi de romances, enquanto permaneceu a maioria dos contistas ― que lidam com um gênero mais intelectual.

Segundo: que, embora a ideia de "civilização" pressuponha ou enseje a de "palavra escrita", não tenho por ela, a "civilização", tanto apreço assim. Por isso, não consegui me libertar de nenhum livro de mitologia; concluí, depois de muito tempo, que os grandes feitos literários da humanidade foram alcançados na pré-história.

Terceiro: que sou quase um alienado, que não me interesso por muitos dos problemas do meu tempo. Por isso, conservei as literaturas antigas, clássicas e medievais, em detrimento da modernidade.

Quarto: que não passo de um provinciano. Por isso, mantive intacta a literatura brasileira, não fui capaz de retirar nenhuma obra escrita na minha língua, a língua hegemônica do Brasil, que nenhum acordo ortográfico tornará universal.

Os volumes que saíram da minha casa foram trocados por créditos num elegante sebo do centro do Rio, que dispõe também de um restaurante. Tenho, assim, bebido e petiscado boa parte dos meus antigos livros.

Dizem que costumo frequentar o sebo para estar, de alguma forma, perto deles. É uma calúnia. Esses livros não me dão saudade. Vou lá para falar de futebol, beber uma cerveja, cantar sambas antigos. Porque a vida tem outras coisas muito boas.

Alberto Mussa  (Texto originalmente publicado no caderno "Prosa & Verso" do jornal O Globo, em 31 de outubro de 2009)

terça-feira, maio 26

O mundo em nossas mãos

Biblioteca: cidade do livro, de Colin Thompson
As bibliotecas são como aeroportos. São lugares de viagem. Entramos numa biblioteca como quem está a ponto de partir. E nada é pequeno quando tem uma biblioteca. O mundo inteiro pode ser convocado à força dos seus livros
Valter Hugo Mãe

Leitura em viagem

harpagone:

passent les heures…….

O Limpa-Palavras

Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
Álvaro de Magalhães 

Nossa salvação

fantagraphics:

We’ll be at TCAF all weekend long. There’ll be panels, signings, and books for your enjoyment. Get the breakdown on the Flog!
Neste momento de tanta angústia o livro torna-se a tábua possível de resistir ao naufrágio e comandar marés. Cabe a ele a missão de povoar solidões
Paulo Bomfim