terça-feira, fevereiro 27

Livro com chá

 


Leitor e autor num mundo a parte

Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mundo comum e objetivo para viver noutro mundo. A janela iluminada noite adentro isola o leitor da realidade da rua, que é o sumidouro da vida subjetiva. Árvores ramalham. De vez em quando passam passos. Lá no alto estrelas teimosas namoram inutilmente a janela iluminada. O homem, prisioneiro do círculo claro da lâmpada, apenas ligado a este mundo pela fatalidade vegetativa do seu corpo, está suspenso no ponto ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há lugar para dois passageiros: leitor e autor.

Augusto Meyer, "À Sombra da Estante"

A última carta

Sou como a palavra: minha grandeza é onde nunca toquei.
Avô Mariano


Estou deitado sob a grande maçaniqueira na margem do Madzimi. Aqui o rio se adoça, em redondo cotovelo, num quase arrependimento. Esta é a árvore onde o Avô Mariano vinha espraiar preguiças. Chamo-lhe "Avô" e sei agora que ele é meu pai. Para mim, Dito Mariano será sempre meu avô. E é assim, antigo e eterno, que o recordo deitando-se sob as ramadas da maçaniqueira. Recostado sobre o tempo, o velho Mariano ajudava a ensopar o poente. Consoante ele dizia: a tarde é o sonolento bicho, necessita de lugar macio e húmido onde cair. O enterro do sol, como o do vivente mal-morrido, requer terra molhada, areia fecundada pelo rio que tudo faz nascer.

Sob a grande sombra não me dói a ausência do mais-velho dos Marianos. Sinto falta, sim, da nossa secreta correspondência. Aquelas cartas me fizeram nascer um avô mais próximo, mais a jeito de ser meu. Pela sua grafia em meus dedos ele se estreava como pai e eu renascia em outra vida.

As cartas instalavam em mim o sentimento de estar transgredindo a minha humana condição. Os manuscritos de Mariano cumpriam o meu mais intenso sonho. Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar, vivo, ao território dos vivos. Eu me tinha convertido num viajante entre esses mundos, escapando-me por estradas ocultas e misteriosas neblinas. Não era só João Celestioso que tinha ultrapassado a última montanha. Eu também tinha estado lá.

Já não me importa esclarecer o modo como Mariano redigira aquelas linhas. Eu queria apenas prolongar esse devaneio. Deitado sob a maçaniqueira, a brisa se faz audível nos ramos que me dão sombra. Cai uma larga folha sobre o meu peito. Toco-a como se acariciasse as mãos do Avô. Aos poucos, o verde se entontece e a folha empalidece, tombando num desmaio. Apanho-a do chão. Já não é folha mas papel. E as nervuras são linhas e letras. Nos meus dedos estremece a última carta de Dito Mariano:


Meu neto, Agora sabe onde me há-de visitar. Já não necessito de lhe escrever por caligrafada palavra. Falaremos aqui, nesta sombra onde ganho dimensão, copo renascendo em outro copo. Você, meu neto, cumpriu o ciclo das visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós, corre por dentro da casa e desagua não no mar, mas na terra. Esse rio uns chamam de vida. Esta é a última visitação. Desta vez já não háverá mais cartas. Não careceremos de nos visitar por esses caminhos. De assim para sim: nesta sombra que, afinal, só há dentro de si, você alcança a outra margem, além do rio, por detrás do tempo.

Todos necessitam de grandes causas, precisam de ter pátria, ter Deus. Eu não. Me bastou ter esta árvore. Não é dessas de se domesticar em jardim. Esta árvore, tal como eu, não tem cultura ensinada. Aprendeu apenas da embrutecida seiva. O que ela sabe vem do rio Madzimi. Longe do rio, a maçaniqueira morre. É isso que a faz divina. Foi por isso que sempre rezei sob esta sombra. Para aprender de sua eternidade, ganhar um coração de longo alcance. E me aprontar a nascer de novo, em semente e chuva.

Venha aqui e se deite. Verá que o dormir, nesta berma, se faz da mais funda indolência. Agora, eu já durmo além do sono. Dormir é um rio, um rio feito só de curva e remanso. Deus está na margem, vigiando de sua janela. E invejando o irmos, infinitos, vidas afora. Vem daí o cansaço de Deus. Esse Deus do Padre Nunes se consome na desconfiança. Há séculos que Ele deve controlar a sua obra, com seu regimento de anjos. O nosso Deus não necessita de presença. Se ausentou quando fez a sua obra, seguro de sua perfeição.

Lhe contei tudo sobre sua família, desfiei histórias, desfiz o laço da mentira. Agora, já não arrisco ser emboscado por segredo. O caçador lança fogo no capim por onde vai caminhando. Eu faço o mesmo com o passado. O tempo para trás eu o vou matando. Não quero isso atrás de mim, sei de criaturas que se alojam lá, nos tempos já revirados. Por fim, me libertei dessa sonolência que me prendia ao lençol da mesa grande. Não acredita como me cansava aquela sala, como me fatigavam os visitantes que não paravam de chegar, fingindo tristezas. Onde estavam quando eu ainda era todo vivo e careci de amparo? Por que se juntaram, agora, em mostruário de choros e rezas? Não lhe parecia muito meio para pouco fim? Eu lhe respondo: o medo. É por isso que vieram. Tinham medo não da morte, mas do morto que eu agora sou. Temiam os poderes que ganhei atravessando a última fronteira. Medo que eu não lhes trouxesse as boas harmonias. Foi isso que troquei consigo, meu neto. Chamo-o assim de “meu neto” mas é uma fraqueza de expressão. Você é meu filho. Meu maior filho pois nasceu de um amor sem medida. Por isso, não o escolhi para cerimoniar a minha passagem para a outra margem. Você se escolheu sozinho, a vida escreveu no seu nome o meu próprio nome.

Nestes manuscritos me fui limpando de mim. Esses que me velavam sofriam de um engano: aquele, em cima do lençol, se parecia comigo. Mas não era eu. O morto era outro, em outro fim de vida. Eu apenas estou usando a morte para viver. Você, meu filho, você disse o certo: a morte é a cicatriz de uma ferida nunca havida, a lembrança de uma nossa já apagada existência.

Nestes dias, deitado naquela sala sem telhado, fui contemplado por luas e por estrelas. Às vezes, me descia um frio sem remédio. Me chegavam visões de uma fundura: o abismo que nenhuma ave nunca cruzou. E eu tombando, tombando sempre. Da rocha para a pedra, da pedra para o grão, do grão para a funda cova do nada. Mas depois eu sentia-o chegar, meu filho, e a minha cabeça dedilhava em sua mão: e você escrevia as minhas cartas. Me sustinha a simples certeza: a mim ninguém, nunca, me iria enterrar. E assim veio a suceder. Fui eu, por meu passo, que me encaminhei para a terra. E me deitei como faz a tarde no amolecido chão do rio. Mais antigo que o tempo. Mais longe que o último horizonte. Lá onde nenhuma casa alguma vez engravidou o chão.

Mia Couto, "Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra"

Literatura infantil do Brasil ganha destaque internacional

A boneca de pano que fala, o menino com uma panela na cabeça, e a bolsa amarela pesada de desejos: as narrativas e personagens da literatura infantil brasileira formaram gerações de leitores. Mas além de popular o imaginário nacional, as obras infantis do país ganham destaque no cenário internacional.

Neste ano, o Brasil é o único país com finalistas nas duas categorias do prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infanto-juvenil. A autora Marina Colasanti concorre entre os escritores e Nelson Cruz disputa entre os ilustradores o prêmio organizado pelo Conselho Internacional sobre Literatura para Jovens. Os vencedores serão anunciados em 8 de abril, na Feira do Livro de Bolonha.

O Brasil já venceu o Hans Christian Andersen outras três vezes: Lygia Bojunga em 1982, Ana Maria Machado em 2000 e, na categoria ilustração, Roger Mello em 2014. O prêmio é concedido ao conjunto da obra. Em número de premiações, o país ocupa a 7ª posição, atrás de EUA, Alemanha e Japão, entre outros, e, ao lado da Argentina, é praticamente o único do chamado Sul Global a conquistar esse reconhecimento.

O país possui ainda vencedores em outras premiações importantes, como o Youth Media Award, dos Estados Unidos, e o Chen Bochui International Children's Literature Award, da China. Já as editoras brasileiras aumentaram em número e receita sua participação na Feira do Livro de Bolonha, o maior e mais importante evento internacional para profissionais do setor de livros secundários à infância.


Esse sucesso se deve principalmente à qualidade estética, aos temas universais e à sensibilidade presente no gênero. "A literatura brasileira começou a ser divulgada no exterior pelas temáticas exóticas de Jorge Amado. Poderíamos até pensar que a literatura infantil teria um mesmo caminho. Mas não. Não existe um Jorge Amado na literatura brasileira para criança", afirma Regina Zilberman, pesquisadora especialista em literatura infanto-juvenil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

As primeiras produções literárias brasileiras voltadas para a infância aparecem no final do século 19, associadas à escola. "No início, se confundia muito com o livro didático, era bastante pedagógico. De um primeiro momento, vale destacar Figueiredo Pimentel, que adaptou contos de fadas de tradição europeia, e Olavo Bilac, que escreveu poemas para crianças com tom ufanista", destaca Zilberman.

Mas é com Monteiro Lobato, a partir de 1920, que a literatura infantil brasileira dá um salto. "Lobato criou um espaço lúdico até então inexistente e que é atual até hoje. É a figura mais importante, aquela que projetou toda uma obra feita à imagem da sua", explica Zilberman.

Com a Reforma do Ensino em 1971, que promove esforços para universalização do ensino básico e torna obrigatório o estudo até a 8ª série, a literatura infantil brasileira ganha mais impulso. Neste período, surgem alguns clássicos do gênero, em muitos dos quais o protagonismo é dado às personagens infantis. Zilberman a presença destaca de personagens meninas muito ativas, desobedientes e questionadoras, presentes em obras como A fada que tinha ideias , Reizinho mandão , A Bolsa Amarela , Bisa bia, bisa Bel .

O mundo urbano, porém, tarda a entrar na literatura infantil brasileira. É apenas no início dos anos 1980 que o cenário da cidade invade as obras, trazendo temas de desigualdade social e gestão ambiental.

O gênero também merece destaque por sua ousadia. “Foi o primeiro gênero literário que tratou das questões da ditadura, manifestou a ânsia de mudança e rebeldia. O tema da identidade afro-brasileira também esteve presente desde muito cedo”, acrescenta Zilberman.

A literatura infantil brasileira é polifacetada. Há a presença de tradições lendárias, que resgataram narrativas dos povos originários ou população escravizada e se diferenciaram das tradições europeias. Há também um foco forte no ambiente familiar, de conflitos entre pais, filhos e irmãos. Mas não faltam grandes aventuras ou uma abordagem de temas mais intimistas, além dos dilemas do mundo interior. “Recentemente, também vimos alguns assuntos que parecem candentes surgirem, como homofobia, racismo, questões de gênero”, aponta Zilberman.

Para Dolores Prades, especialista em literatura infantil e juvenil e diretora da Revista Emília , a multiplicidade de origens, temáticas e influências se destaca na produção brasileira voltada à infância. "Temos muitas vertentes, ricas e diferentes. A edição não se resume mais a Sudeste. O Nordeste é muito diferente, o Sul tem características muito próprias. Então essa história oficial com origem em Lobato é, na verdade, uma realidade muito mais complexa" , expõe.
Diferentes tipos de infância e percepções editoriais

Prades também é consultor para a América Latina na Feira de Bolonha e frequenta regularmente a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, maior evento literário da América Latina. Para o especialista, esses benefícios são fundamentais para fechar negócios com outros países e servem como uma rotina para as tendências do mercado editorial.

Segundo ela, editoras com propostas bem consolidadas oferecem espaço em casas editoriais de outros países. Porém, o especialista lembra que existem diferenças culturais que são muitas vezes intransponíveis para o público. Essas diferenças transpassam a dimensão do objeto livro pois dizem respeito ao entendimento do que é infância. “Temos diferenças enormes nas infâncias pelo mundo. Existe um universo por trás de cada concepção do ser criança”, pontua Prades.

O ritmo em que os países vêm desenvolvendo suas produções também impacta em sua projeção internacional. "Alguns países têm uma tradição ininterrupta por séculos, como a Inglaterra, enquanto outros, como a Espanha, lidaram com a Guerra Civil e a ditadura, interromperam uma modernização. A América Latina também teve esses cortes", aponta a pesquisadora espanhola de livros infantis Ana Garralón.

Os especialistas da área são unânimes em dizer que uma literatura voltada às crianças não precisa ensinar um conteúdo, passar uma mensagem ou ser pedagógico: basta que seja literariamente potente. O encanto não é temático, nem na voz do narrador, mas não tem espaço criativo e nos mundos e experiências que ele permite explorar, nas personagens empolgadas e na chance de se identificar com esses personagens.

"Ainda hoje se pensa que os livros infantis deveriam ensinar alguma coisa. Isto é muito prejudicial porque o que acaba ganhando mais importância do que o como. Isso faz com que a literatura perca a qualidade e a surpresa. E as crianças não são estúpidas: sabem imediatamente quando são tratados com autonomia e quando não", afirma Garralón.

Zilberman corrobora tal visão: "A literatura é um elo de acesso da criança ao mundo e oferece possibilidades de soluções de problemas. Muita da literatura que trata de questões de gênero hoje em dia é mais pedagógica do que deveria ser. Querem ensinar tolerância, mas de cima para baixo, e não é assim que a coisa funciona".

"Tem muitos livros no mercado que pensamos até chamar de autoajuda infantil. E algumas escolas atividades esse tipo de obra. Muito do menosprezo com a literatura infantil enquanto arte vem por esse excesso de obras pedagógicas que circulam por aí. A literatura é aquela questão: não sirva para nada e sirva para tudo ao mesmo tempo", opina Prades.

sábado, fevereiro 24

Leitura de Verão

 


O Juca

O Juca era da categoria das chamadas pessoas sensíveis, dessas que tudo lhes toca e tange. Se a gente lhe perguntasse: “Como vais, Juca?”, ao que qualquer pessoa normal responderia “Bem, obrigado!” — com o Juca a coisa não era assim tão simples. Primeiro fazia uma cara de indecisão, depois um sorriso triste contrabalançado por um olhar heroicamente exultante, até que esse exame de consciência era cortado pela voz do interlocutor, que começava a falar chamente em outras coisas, que aliás o Juca não estava ouvindo... Porque as pessoas sensíveis são as criaturas mais egoístas, mais coriáceas, mais impenetráveis do reino animal. Pois meus amigos, da última vez que vi o Juca, o impasse continuava... E que impasse!

Estavam-lhe ministrando a Extrema-Unção. E, quando o sacerdote lhe fez a tremenda pergunta, chamando-o pelo nome: “Juca, queres arrepender-te dos teus pecados?”, vi que, na sua face devastada pela erosão da morte, a Dúvida começava a redesenhar, reanimando-a, aqueles seus trejeitos e caretas, numa espécie de ridícula ressurreição. E a resposta não foi nem “sim” nem “não”; seria acaso um “talvez”, se o padre não fosse tão compreensivo. Ou apressado. Despachou-o num átimo e absolvido. Que fosse amolar os anjos lá no Céu!

E eu imagino o Juca a indagar, até hoje:

— Mas o senhor acha mesmo, sargento Gabriel, que ele poderia ter-me absolvido?

Mário Quintana, "Caderno H"

Despedida

Permite que eu deseje, agora, tomado e vencido pelas urgências que de mim exigem, um canto de sono e preguiça onde ainda não se tenham inventado o telefone e o relógio. Deixa que eu seja pessoal em mais uma crônica para, ao medo das tarefas que se me impõem, querer, ardentemente, que não tirem do rol das pessoas úteis, que me esqueçam e que me abandonem, que me larguem, enfim, onde seja lícito viver ignorado e despercebido. Sinto-me vazio de poesia, esgotado de um resto de doçura que tanto prezava e, coagido pelos que revendem minhas ideias, dói-me o tempo e o esforço gastos, os ardis e os truques que emprego para arrumar palavras e construir frases de efeito. Lamento enganar a todas. Permite que eu deseje, agora, um silêncio que me contagie de tristeza, uma calma boa e definida para, num momento espontâneo e sossegado, escrever as grandes definições, as palavras que me envaideçam, os versos e as cantigas que me elevem, querida, à glória e à resolução do teu desmesurado amor. Através dessa janela vejo coisas que, antigamente, eram poderosas e fecundas. O céu repete o azul de tantas tardes acontecidas em maio, as últimas quaresmeiras do verão agonizam na saia do morro, os homens martelam a pedreira... e eu não sinto vontade de rir ou de chorar. Na rua, arrastando uma corrente eterna e incompreensível, passa mais um caminhão da Standard Oil... e eu não sinto nenhum vexame político, nenhuma revolta social. Por isso e pela descrença que em meu espírito se acentua, permite que eu deseje ser só — ou teu somente — num lugar do mundo onde os gritos não tenham eco, onde a inveja não ameace, onde as coisas do amor aconteçam sem testemunhas. Livrem-me da pressa, das datas, dos salários e das dívidas e a todos serei agradecido, num verso submisso. Livrem-me de mim, de uma certa insaciabilidade que apavora e de todos serei escravo numa humilde canção. Permite que eu só queira, agora, esse canto de sono e preguiça, onde não necessite dos atletas, onde o céu possa ser céu sem urubus e aviões, onde as árvores sejam desnecessárias, porque os pássaros se sintam bem em cantar e dormir em nossos ombros.

Antonio Maria

Jardins

Comecei a gostar dos livros mesmo antes de saber ler. Descobri que os livros eram um tapete mágico que me levavam instantaneamente a viajar pelo mundo... Lendo, eu deixava de ser o menino pobre que era e me tornava um outro. Eu me vejo assentado no chão, num dos quartos do sobradão do meu avô. Via figuras. Era um livro, folhas de tecido vermelho. Nas suas páginas alguém colara gravuras, recortadas de revistas. Não sei quem o fez. Só sei que quem o fez amava as crianças. Eu passava horas vendo as figuras e não me cansava de vê-las de novo. Um outro livro que me encantava era o “Jeca Tatu“, do Monteiro Lobato. Começava assim: “Jeca Tatu era um pobre caboclo...“ De tanto ouvir a estória lida para mim, acabei por sabê-lo de cor. “De cor“: no coração. Aquilo que o coração ama não é jamais esquecido. E eu o “lia“ para minha tia Mema, que estava doente, presa numa cadeira de balanço. Ela ria o seu sorriso suave, ouvindo minha leitura. Um outro livro que eu amava pertencera à minha mãe criança. Era um livro muito velho. Façam as contas: minha mãe nasceu em 1896... Na capa havia um menino e uma menina que brincavam com o globo terrestre. Era um livro que me fazia viajar por países e povos distantes e estranhos. Gravuras apenas. Esquimós, em suas roupas de couro, dando tiros para o ar, saudando o fim do seu longo inverno. Embaixo, a explicação: “Onde os esquimós vivem a noite é muito longa; dura seis meses.“ Um crocodilo, bocarra enorme aberta, com seus dente pontiagudos, e um negro se arrastando em sua direção, tendo na mão direita um pau com duas pontas afiadas. O que ele queria era introduzir o pau na boca do crocodilo, sem que ele se desse conta. Quando o crocodilo fechasse a boca estaria fisgado e haveria festa e comedoria! Na gravura dedicada aos Estados Unidos havia um edifício, com a explicação assombrosa: “Nos Estados Unidos há casas com 10 andares...“ Mas a gravura que mais mexia comigo representava um menino e uma menina brincando de fazer um jardim. Na verdade, era mais que um jardim. Era um mini-cenário. Haviam feito montanhas de terra e pedra. Entre as montanhas, um lago cuja água, transbordando, se transformava num riachinho. E, às suas margens, o menino e a menina haviam plantado uma floresta de pequenas plantas e musgos. A menina enchia o lago com um regador. Eu não me contentava em ver o jardim: largava o livro e ia para a horta, com a idéia de plantar um jardim parecido. E assim passava toda uma tarde, fazendo o meu jardim e usando galhos de hortelã como as árvores da floresta... Onde foi parar o livro da minha mãe? Não sei. Também não importa. Ele continua aberto dentro de mim.

Bachelard se refere aos “sonhos fundamentais“ da alma. “Sonhos fundamentais“: o que é isso? É simples. Há sonhos que nascem dos eventos fortuitos, peculiares a cada pessoa. Esses sonhos são só delas: sonhos acidentais, individuais. Mas há certos sonhos que moram na alma de todas as pessoas. Jung deu a esses sonhos universais o nome de “arquétipos“. Esses são os sonhos fundamentais. O fato de termos, todos, os mesmos sonhos fundamentais, cria a possibilidade de “comunhão“. Ao compartilhar os mesmos sonhos descobrimo-nos irmãos. Um desses sonhos fundamentais é um “jardim“.

Faz de contas que a sua alma é um útero. Ela está grávida. Dentro dela há um feto que quer nascer. Esse feto que quer nascer é o seu sonho. Quem engravidou a sua alma eu não sei. Acho que foi um ser de um outro mundo... Imagino que o tal de “Big-Bang“ a que se referem os astrônomos foi Deus ejaculando seu grande sonho e soltando pelo vazio milhões, bilhões, trilhões de sementes. Em cada uma delas estava o sonho fundamental de Deus: um jardim, um Paraíso... Assim, sua alma está grávida com o sonho fundamental de Deus...

Mas toda semente quer brotar, todo feto quer nascer, todo sonho quer se realizar. Sementes que não nascem, fetos que são abortados, sonhos que não são realizados, se transformam em demônios dentro da alma. E ficam a nos atormentar. Aquelas tristezas, aquelas depressões, aquelas irritações - vez por outra elas tomam conta de você – aposto que são o sonho de jardim que está dentro e não consegue nascer. Deus não tem muita paciência com pessoas que não gostam de jardins...


Menino, os jardins eram o lugar de minha maior felicidade. Dentro da casa os adultos estavam sempre vigiando: “Não mexa aí, não faça isso, não faça aquilo...“ O Paraíso foi perdido quando Adão e Eva começaram a se vigiar. O inferno começa no olhar do outro que pede que eu preste contas. E como as crianças são seres paradisíacos, eu fugia para o jardim. Lá eu estava longe dos adultos. Eu podia ser eu mesmo. O jardim era o espaço da minha liberdade. O jardim era o espaço da minha liberdade. As árvores eram minhas melhores amigas. A pitangueira, com seus frutinhos sem vergonha. Meu primeiro furto foi o furto de uma pitanga: “furto“ – “fruto“ – é só trocar uma letra.... Até mesmo inventei uma maquineta de roubar pitangas... Havia uma jabuticabeira que eu considerava minha, em especial. Fiz um rego à sua volta para que ela bebesse água todo dia. Jabuticabeiras regadas sempre florescem e frutificam várias vezes por ano. Na ocasião da florada era uma festa. O perfume das suas flores brancas é inesquecível. E vinham milhares de abelhas. No pé de nêspera eu fiz um balanço. Já disse que balançar é o melhor remédio para depressão. Quem balança vira criança de novo. Razão por que eu acho um crime que, nas praças públicas, só haja balancinhos para crianças pequenas. Há de haver balanços grandes para os grandes! Já imaginaram o pai e a mãe, o avô e a avó, balançando? Riram? Absurdo? Entendo. Vocês estão velhos. Têm medo do ridículo. Seu sonho fundamental está enterrado debaixo do cimento. Eu já sou avô e me rejuvenesço balançando até tocar a ponta do pé na folha do caquizeiro onde meu balanço está amarrado!

Crescido, os jardins começaram a ter para mim um sentido poético e espiritual. Percebi que a Bíblia Sagrada é um livro construído em torno de um jardim. Deus se cansou da imensidão dos céus e sonhou... Sonhou com um ... jardim. Se ele – ou ela – estivesse feliz lá no céu, ele ou ela não teria se dado ao trabalho de plantar um jardim. A gente só cria quando aquilo que se tem não corresponde ao sonho. Todo ato de criação tem por objetivo realizar um sonho. E quando o sonho se realiza, vem a experiência de alegria. Nos textos de Gênesis está dito que, ao término do seu trabalho, Deus viu que tudo “era muito bom.“ O mais alto sonho de Deus é um jardim. Essa é a razão porque no Paraíso não havia templos e altares. Para que? “Deus andava pelo meio do jardim...“ Gostaria de saber quem foi a pessoa que teve a idéia de que Deus mora dentro de quatro paredes! Um coisa eu garanto: não foi idéia dele. Seria bonito se as religiões, ao invés de gastar dinheiro construindo templos e catedrais, usassem esse mesmo dinheiro para fazer jardins onde, evidentemente, crianças, adultos e velhos poderiam balançar e tocar os pés nas folhas das árvores. Ninguém jamais viu a Deus. Um jardim é o seu rosto sorridente... E se vocês lerem as visões dos profetas, verão que o Messias é jardineiro: vai plantar de novo o Paraíso: nascerão regatos nos desertos, nos lugares ermos crescerão a murta (perfumada!), as oliveiras, as videiras, as figueiras, os pés de romã, as palmeiras... E lá, à sombra das árvores, acontecerá o amor... Leia o livro dos “Cânticos dos Cânticos“!

Pensei, então, que o ato de plantar uma árvore é um anúncio de esperança. Especialmente se for uma árvore de crescimento lento. E isso porque, sendo lento o seu crescimento, eu a plantarei sabendo que nem vou comer dos seus frutos e nem vou me assentar à sua sombra.... Eu a plantarei pensando naqueles que comerão dos seus frutos e se assentarão à sua sombra. E isso bastará para me trazer felicidade!
Rubem Alves

quarta-feira, fevereiro 21

Manhã


Vocação para a vida

Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só fervor mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?

Costurar as feridas e amar os inimigos que odiar faz mal ao fígado, isso sem falar no perigo da úlcera, lumbago, pé frio. Amar no geral e no particular e quem sabe nos lances desse xadrez-chinês imprevisível. Ousar o risco. Sem chorar, aprendi bem cedo os versos exemplares, não chores que a vida/é luta renhida. Lutar com aquela expressão de criança que vai caçar borboleta, ah, como brilham os olhos de curiosidade. Sei que as borboletas andam raras mas se sairmos de casa certos de que vamos encontrar alguma… O importante é a intensidade do empenho nessa busca e em outras. Falhando, não culpar Deus, oh! por que Ele me abandonou? Nós é que O abandonamos quando ficamos mornos. Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da arte. Da loucura. Romper com a falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte – ainda intensos – seremos um fantasminha claro de amor.

Lygia Fagundes Telles, " A disciplina do amor"

A palavra

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito — como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.

Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.

Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento — e depois esqueci.

Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol… mas o canário não cantava.

Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven — e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?

Alguma coisa que eu disse distraído — talvez palavras de algum poeta antigo — foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
Rubem Braga

A palavra felicidade

Num arroubo poético, o vate concreto, com letras de cimento e engenhosidade, escreveu a palavra felicidade.

***

É um desses poetas jovens e irresponsáveis que saem por aí gastando seus adjetivos com futilidades como flores, estrelas e mulheres.

***

É um velhote carrancudo, presunçoso e ameaçador como um daqueles provérbios que semeiam ventos para colher tempestades.

***

Às vezes me pergunto que utilidade tenho. Não venho fazendo mais do que escrever. Escrevo sobre generalidades, sobre superfluidades, sobre abstrações. Quem olha para minhas mãos, como eu agora, sente que o melhor que pode acontecer ao mundo é não precisar delas para nada.

***

A tristeza, pelo menos a minha, é uma daquelas sérias, de juras juradas e rejuradas e papel passado.

***

Penso que as frases curtas são um direito que conquistei com a minha velhice e o meu cansaço.

***

Pensar na vida é o tipo de coisa que você só deve fazer se não tiver um filmezinho para ver ou uma casquinha de ferida para coçar.

***

Se você se esforçar muito, mas muito mesmo, quantos mil e tantos pontos ainda abaixo de Shakespeare vai ficar?

segunda-feira, fevereiro 19

Luz na escuridão

 


Jovens precisam voltar a ler para opinarem com bom senso

Atuo há cerca de três anos como colunista e para mim já está claro como a água: muitas pessoas leem apenas as manchetes e não os textos na íntegra.

Os mais ingênuos e otimistas diriam que é apenas por falta de tempo, mas, curiosamente, aqueles que não leem encontram tempo o bastante para deixar seus comentários.

Já li frases com os mais terríveis absurdos e em alguns notemi claramente um tom de maldade. Não me entristece a divergência de opiniões, pois é algo natural e que pode enriquecer muito as discussões propostas. Me entristece quando as pessoas simplesmente emitem afirmações sobre minha realidade, bagagem, experiência e intenções que simplesmente não estão coesas com a realidade.

Li uma vez um comentário que dizia: "Colunista da Faria Lima”. A intenção da pessoa era dizer que eu não sabia sobre a realidade que eu estava escrevendo. Mal ele sabia que sou nascido e criado no bairro com mais favelas da minha cidade. O comentário dele, intencional ou não, foi desrespeitoso com toda a minha trajetória.

Bom, contexto inicial a parte, já digo: esta coluna não tem como foco expor os absurdos que já li ou falar sobre o quanto isso já me magoou. Até porque, honestamente, esse sentimento de tristeza é rapidamente substituído por outros: decepção, frustração e desapontamento.
Potencial de discussão perdido

Vou explicar a razão: a cada coluna escrita, seja ela por mim ou por um autor colaborador, há um real esforço em ser fiel com a realidade da educação brasileira, em trazer assuntos pertinentes para a discussão e, sobretudo, em ampliar as vozes dos mais diversos agentes. Já tivemos textos escritos por professores, por estudantes, por universitários e pelos mais diversos personagens da educação brasileira.

Acho uma grande pena quanto todo o potencial de discussão sadia, de reflexão, de mudança de cada texto é minado simplesmente por ele não ter sido lido. Chega a ser um desperdício, e é uma grande pena.

É muito frustrante quando a coluna é publicada, e leio comentários de pessoas que claramente não leram o texto. É mais frustrante ainda o tom de certeza que pauta os comentários, e tudo fica ainda mais frustrante quando esses comentários abrem o precedente para outros. Logo em seguida, rápido o bastante, torna-se uma coluna repleta de opiniões de pessoas que nem a leram.

Não é difícil de entender. Coloco a culpa em dois fatores e são até mesmo culturais, muito maiores do que um indivíduo apenas.

O primeiro deles é um fato: as pessoas estão parando de ler. Estou à frente de uma ação social de educação há anos, e isso me possibilita ter contatos com jovens e universitários de todo o país. Noto, diante de meus olhos, a perda de atenção das pessoas em uma velocidade assustadora.

Sempre foi comum uma certa falta de atenção entre os alunos. Hoje, está absurdamente difícil conseguir a atenção e a compreensão deles para os mais simples direcionamentos e comunicados. Além disso, de uns dois anos para cá, noto que essa falta de atenção também atingiu os nossos voluntários. Estes, já universitários e das melhores instituições do país.

Imagino o quanto é difícil para os professores que atuam em salas de aula. Conseguir a atenção dos estudantes já é um grande desafio. Conseguir a compreensão se tornou uma das mais difíceis tarefas.

O outro fator tem relação direta com as redes sociais e é impulsionado pelo primeiro. As redes sociais nos possibilitam ter contato com as mais diversas pautas e assuntos. Alinhado a isso, há em nós um certo senso de militância. Com as redes, podemos militar pelos negros, pela educação, pelo meio ambiente, pela causa LGBTQIA*, pela natureza, pela saúde. Isso tudo em apenas uma manhã. Eficiente, né? É incrível o senso de ativismo. Há uma necessidade de se opinar sobre absolutamente tudo.

Embora eu ache legal as pessoas se importarem com assuntos como os que descrevi, algo me preocupa: são assuntos muito complexos, com muitas camadas e em que eu, embora possa estar munido de boas intenções, posso atrapalhar mais do que ajudar ao comentar sobre temas que não tenho nenhuma expertise.

Agora acrescente nesse cenário a falta de leitura da população. O resultado: comentam sobre absolutamente tudo, com um tom de certeza invejável e sobre assuntos sobre o qual não têm a menor ideia. Ainda pior: fazem isso, quase sempre, apenas com as informações das legendas.
Juízes da internet

Sinto pelos meus colegas jornalistas e colunistas. Sei, sobretudo agora, o quanto colocamos energia em fazer um bom trabalho e o quanto dói ver o potencial de nosso material minado, simplesmente por não ter sido lido. Sei também o quanto dói quando nos julgam enquanto pessoas físicas ou as nossas intenções.

A solução? Me perdoem o pessimismo, mas grande parte das pessoas que atuam assim, os juízes da internet, eu acredito fortemente que não irão mudar. Não todos, é claro, mas sinto que eles sempre existirão.

Penso que a solução esteja na nossa juventude. É urgente e necessário que a construção do senso crítico seja uma prioridade. Alinhado a isso, nossos jovens precisam voltar a ler. Antes que me julguem: sei que não é fácil. É uma missão hercúlea e que deverá envolver as escolas, o governo, o apoio das gigantes empresas por trás das redes sociais e da população em si.

Não é fácil, mas precisa ser feito. Como mudaremos o mundo em um contexto em que nem entendemos os problemas e o que precisa ser mudado?

Horas lentas

Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos ...
José Saramago, "As Pequenas Memórias"

Como incentivar a leitura em crianças

De acordo com uma pesquisa, o livro mais extenso já lido por 66% dos adolescentes brasileiros de 15 e 16 anos não passou de 10 páginas. Para especialistas, hábito deve vir dos pais e não imposto em troca de benefícios.

Dentre os 81 países avaliados pelo ranking do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), o Brasil ocupa apenas a 52ª colocação no quesito leitura. Os alunos brasileiros atingiram 410 pontos, bem menos do que a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que ficou entre 472 e 480.

Alarmante, o dado reflete a histórica relação ruim do brasileiro com os livros. De acordo com a última pesquisa Retratos da Leitura — feita pelo Instituto Pró-Livro, Itaú Cultural e Ibope Inteligência e divulgada em 2020 —, o país teve uma queda de 4,6 milhões de leitores em quatro anos. Apenas 31% dos entrevistados declararam ter lido um livro inteiro nos últimos três meses.


Autor do livro Faça-os ler - Para não criar cretinos digitais, o neurocientista francês Michel Desmurget enfatiza que "a leitura é uma espécie de herança que os pais passam para os filhos". "Não há solução milagrosa para perpetuar esse legado", comenta ele.

O neurocientista diz que o ideal é combinar pelo menos três táticas.

"Primeiro, promover a leitura. Uma criança tem mais probabilidade de se tornar um ávido leitor se for incentivada a ler, visitar bibliotecas, discutir sua leitura, for informada sobre a importância da leitura e ver seus pais lendo", argumenta.

Outro ponto é demonstrar que a leitura é um prazer, mais do que uma obrigação. "Se ler for entendido como uma tarefa ou, pior, uma dor, a criança abandonará o hábito na primeira oportunidade", acredita. Para isso, ele sugere que pais estimulem os pequenos desde muito cedo, com leituras compartilhadas.

Já a terceira dica de Desmurget é aquela que parece mais difícil nos tempos atuais: limitar o tempo de tela.

"Mesmo que uma criança goste de ler, ela não vai ler se seu tempo for consumido por videogames, séries e desenhos animados", justifica.

Nesse ponto, ele faz um alerta: não cometer "o erro comum" de negociar o tempo de tela como pagamento após um determinado momento de leitura. "Isso fará com que ler pareça uma tarefa e as telas, o paraíso", analisa.

Foto em preto e branco mostra crianças sentadas ao redor de mesas em uma bibliotecaFoto em preto e branco mostra crianças sentadas ao redor de mesas em uma biblioteca

Os dados mostram que essa dificuldade é a ponta do iceberg de um país onde obras literárias não fazem parte do dia a dia. Segundo a pesquisa Panorama do Consumo de Livros, divulgada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em dezembro, 84% dos brasileiros maiores de 18 anos não compraram nenhum livro nos últimos 12 meses. Enquanto isso, mais de 50% dos entrevistados declarou que sua principal atividade de lazer são as redes sociais.

Nada indica que isso vá mudar na geração seguinte. "Os pais muitas vezes se perguntam como podem melhorar a vida de seus filhos, tornando-as mais felizes e fáceis. Uma dessas possibilidades é incutir neles o amor pela leitura", ressalta Desmurget. "Poucas atividades produzem benefícios tão significativos com um investimento tão modesto".

Para criar o hábito, o exemplo é essencial. "Se o pai, a mãe ou o cuidador tem o hábito da leitura, pega um livro, se diverte com ele, comenta determinado trecho, já é extremamente importante. Isso vai definindo e criando um lastro de exemplo a ser seguido", defende o psicólogo Cristiano Nabuco, PhD em tratamento de dependências tecnológicas.

Mestre em psicologia educacional e do desenvolvimento humano, o psicólogo Leo Fraiman ressalta que "é importante conversar [com os filhos] sobre livros que o marcaram e criar o hábito".

"A leitura está para o cérebro como a ginástica está para o corpo. Diversos estudos internacionais comprovam que a leitura traz inúmeros benefícios em diversas áreas da nossa vida. Assim, é importante não somente direcionar o filho para que leia, mas criar uma habilidade e uma cultura a partir desse hábito", comenta ele, que é autor do livro A síndrome do imperador - Pais empoderados educam melhor.

Fraiman ressalta que "a leitura não é apenas aquilo que podemos obter a partir de um livro". Assim, todos os estímulos para que a criança absorva cultura fora das telas são válidos: frequentar teatros, observar outdoors e grafites, despertar o desejo pelo conhecimento.

O psicólogo Cristiano Nabuco compara o livro com o multimídia onipresente no mundo digital.

"Quando ofereço um conteúdo audiovisual para uma criança, por exemplo um marinheiro em um navio no meio do mar, tudo está pronto. Mas quando eu leio, forço a criança a imaginar. É ela quem vai criar o tipo da onda, o tamanho do barco, pensar se o tempo está bom, se tem gaivotas…", explica Nabuco. "Isso produz o que chamamos de desenvolvimento cognitivo maior".

Desmurget lembra que ler melhora o funcionamento intelectual, mas não só. "Também estimula significativamente nossa inteligência emocional e social. Os livros nos permitem, literalmente, entrar na mente dos personagens, experimentar suas emoções e entender a lógica por trás de suas escolhas. Em última análise, leitores de ficção têm mais empatia e maior capacidade de entender os outros e a si mesmos", acrescenta.

"No final, todas essas influências contribuem muito para o sucesso acadêmico e profissional", enfatiza o francês.

quinta-feira, fevereiro 15

Hora do café

 


A morte do Ipê

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física ótica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física. William Blake sabia disso e afirmou: “A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei isso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa, porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Rubem Alves, "Do Universo à Jabuticaba"

Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias

Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo — quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro que me matasse tanto. Um amigo meu conta-me coisas terríveis do verão de Cuiabá, onde, a certa hora do dia, chega a parar a administração pública. Tudo vai para as redes. Aqui não há rede, não há descanso, não há nada. Este tempo serve, quando muito, para reanimar conversações moribundas, ou para dar que dizer a pessoas que se conhecem pouco e são obrigadas a 20 ou 30 minutos de bonde. Começa-se por uma exclamação e um gesto, depois uma ou duas anedotas, quatro reminiscências, e a declaração inevitável de que a pessoa passa bem de saúde, a despeito da temperatura.

— Custa-me a suportar o calor, mas de saúde passo maravilhosamente bem. Não sei se é isso que me diz todas as manhãs a tal cigarra. Seja o que for, é sempre a mesma coisa, e é notícia d’alma, porque é dita com um grau de sonoridade e tenacidade que excede os maiores exemplos de gargantas musicais, serviçais e rijas. A minha memória, que nunca perde essas ocasiões, recita logo a fábula de La Fontaine e reproduz a famosa gravura de Gustavo Doré, a bela moça da rabeca, que o inverno veio achar com a rabeca na mão, repelida por uma mulher trabalhadeira, como faz a formiga à outra. E o quadro e os versos misturam-se, prendem-se de tal maneira, que acabo recitando as figuras e contemplando os versos.

Nisto entra um galo. O galo é um maometano vadio, relógio certo, cantor medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra um concerto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a preguiça, colijo os trechos de sonho que me ficaram, se algum tive, e fito o dossel da cama ou as tábuas do teto. Às vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu não serei o mesmíssimo Virgílio. É o período de loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo então pela via Ápia, dobro a rua do Ouvidor, esbarro com Mecenas que me convida a cear com Augusto e um remanescente da companhia geral. Segue-se a vez de um passarinho, que me canta no jardim, depois outro, mais outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da cama e abro a janela.

Bom dia, belo sol. Já daqui vejo as guias torcidas dos teus magníficos bigodes de ouro. Morro verde e crestado, palmeiras que recortais o céu azul, e tu, locomotiva do Corcovado, que trazeis o sibilo da indústria humana ao concerto da natureza, bom dia! Pregão da indústria, tu, “duzentos contos, Paraná, último de resto!”, recebe também a minha saudação. Que és tu, senão a locomotiva da fortuna? Tempo houve em que a gente ia dos arrabaldes à casa do João Pedro da Veiga, rua da Quitanda, comprar o número da esperança. Agora és tu mesmo, número solícito, que vens cá ter aos arrabaldes, como os simples mascates de fazendas e os compradores de garrafas vazias. Progresso quer dizer concorrência e comodidade. Melhor é que eu compre a riqueza a duas pessoas, à porta de minha casa, do que vá comprar à casa de uma só, a dois tostões de distância.

Eis aí começam a deitar fumo as chaminés vizinhas; tratam do café ou do almoço. Na rua passa assobiando um moleque, que faz lembrar aquele chefe do Ministério austríaco, a que se referiu quinta-feira, na Gazeta de Notícias, Max Nordau. Ouço também uma cantiga, um choro de criança, um bonde, os prelúdios de alguma coisa ao piano, e outra vez e sempre a cigarra cantando todos os seus erres sem efes, enquanto o sol espalha as barbas louras pelo ar transparente.

Ir-me-á cantar, todo o verão, esta cigarra estrídula? Canta, e que eu te ouça, amiga minha; é sinal de que não haverei entrado no obituário do mesmo verão, que já sobe de 50 pessoas diárias. Disseram-mo; eu não me dou ao trabalho de contar os mortos. Percebo que morre mais gente, pela frequência dos carros de defuntos que encontro, quando volto para casa e eles voltam do cemitério, com o seu aspecto fúnebre e os seus cocheiros menos fúnebres. Não digo que os cocheiros voltem alegres; posso até admitir, para facilidade da discussão, que tornem tristes; mas há grande diferença entre a tristeza do veículo e a do automedonte. Este traz no rosto uma expressão de dever cumprido e consciência repousada, que inteiramente escapa às frias tábuas de um carro.

De mim, peço ao cocheiro que me levar, que já na ida para o cemitério vá francamente satisfeito, com uma pontinha de riso e outra de cigarro ao canto da boca. Pisque o olho às amas secas e frescas, e criaturas análogas que for encontrando na rua; creia que os meus manes não sofrerão no outro mundo; ao contrário, alegrar-se-ão de saber a cara ajustada ao coração, e a indiferença interior não desmentida pelo gesto. Imite as suas mulas, que levam com igual passo César e João Fernandes.

Ah! enquanto eu ia escrevendo essas melancolias aborrecidas, o sol foi enchendo tudo; entra-me pela janela, já tudo é mar; ao mar já faltam praias, dizia Ovídio por boca de Bocage. Aqui o dilúvio é de claridade; mas uma claridade cantante, porque a cigarra não cessa, continua a cigarrear no arvoredo, fundindo o som no espetáculo. Como há pouco, na cama, miro a cantiga e ouço o clarão. Se todos estes dias não fossem isto mesmo, eu diria que era a comemoração da chegada dos três reis.

Essa festa popular, não sei se perdurará no interior; aqui morreu há muitos anos. Cantar os reis era uma dessas usanças locais, como o presépio, que o tempo demoliu e em cujas ruínas brotou a árvore do Natal, produção do norte da Europa, que parece pedir os gelos do inverno. O nosso presépio era mais devoto, mas menos alegre. Durava, em alguns lugares, até o Dia de Reis. A cantiga da festa de ontem era a mesma em toda a parte,

Ó de casa nobre gente,
Acordai e ouvireis,


e o resto, que pode parecer simplório e velho, mas o velho foi moço e o simplório também é sinal de ingênuo.
Machado de Assis

Restos do carnaval

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Clarice Lispector, "Todos os Contos"

quarta-feira, fevereiro 14

Barco de socorro

 


Um homem de consciência

Chamava-se Joao Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o deperecimento visível de sua Itaoca.

“Isto já foi muito melhor”, dizia consigo. “Já teve três médicos bem bons — agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando…”

João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

“É isso”, deliberou lá por dentro. “Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.”

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada…

Ser delegado numa cidadinha daquelas é coisa seriíssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar
sovas, que vai à capital falar com o Governo. Uma coisa colossal ser delegado — e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!…

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalinho magro e partiu.

Antes de deixar a cidade foi visto por um amigo madrugador.

– Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

– Vou-me embora — respondeu o retirante. — Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

– Mas, como? Agora que você está delegado?

– Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro. Adeus.

E sumiu.
Monteiro Lobato

As árvores e os livros

As árvores como os livros têm folhas

e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».

É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
Jorge Sousa Braga, "Herbário"

Anão de jardim

A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota mas esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. Não de gesso como pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu. Sou feio mas sou de pedra e do tamanho de um anão de verdade com aquela roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a carapuça. A larga jaqueta fechada por um cinto e as calças colantes com as botinhas pontudas, de cano curto. A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão sério. As crianças (poucas) que me viram não acharam a menor graça em mim. Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino de olhar dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões) que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito. Não agrado as crianças e nem espero mesmo agradar essas sementes em geral ruins, com aqueles defeitos de origem somados aos vícios que acabam vindo com o tempo. Quais desses pequeninos modelados pela vulgaridade dos pais vão chegar à plenitude de seres honestos? Verdadeiros? Não quero ser um anão puritano, afinal, não estou pedindo heróis, não estou pedindo santos mas dentre esses machos e fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? Dê um passo à frente aquele que conseguir escapar da agressividade num mundo onde a marca (principal) é a da violência. Pois é, as crianças. Não tive melhor impressão dos adultos, pelo menos dos habitantes dessa casa. Tirante o Professor (bom e bobo) pude ver (por dentro) a sedutora Hortênsia que desde o começo desconfiou de mim, Não parece um anão filosofante? Prefiro os anões inocentes, ela disse. Então a Marieta riu com seu hipócrita lábio leporino, É um anão de gesso, Professor? Não dá sorte, resmungou. Ele não respondeu, tinha o cachimbo no canto da boca e estava ocupado em me instalar mais confortavelmente entre os tufos de samambaia e próximo da cadeira onde vinha se sentar para tocar o seu violoncelo. Pois é, os adultos. A saltitante Hortênsia matou (devagar) o Professor com doses (mínimas) de arsênico dissolvido no chá-mate. Não era melhor a chantagista Marieta que vestia as roupas da patroa quando ela viajava e dava beijos estalados no focinho do Miguel para depois aplicar-lhe os maiores pontapés quando não via ninguém por perto. Falei em Miguel, um vira-lata que Hortênsia achou na rua quando voltava do encontro com o amante, ela ficava generosa depois desses encontros, recolheu o Miguel com suas pulgas e numa outra noite recolheu o gato no qual botou o nome de Adolfo. Esse sempre foi sagaz como a própria dona mas ainda assim eu o preferia ao Miguel que era superficial, confiado, na primeira vez em que me viu levantou a perna e mijou na minha bota.


Fui feito de uma pedra bastante resistente mas há um limite, meu nariz está carcomido e carcomidas as pontas destes dedos que seguram o meu pequeno cachimbo. E me pergunto agora, se eu fosse um anão de carne e osso não estaria (nesta altura) com estas mesmas gretas? Nem são gretas mas furos enegrecidos como os furos dos carunchos, a erosão. Tanto tempo exposto aos ventos, às chuvas. E ao sol. Tudo somado, nesta minha vida onde não há vida (normal) o que me restou foi apenas isto, juntar as lembranças do que vi sem olhos de ver e do que ouvi sem ouvidos de ouvir. Presenciei, assisti como testemunha impassível (na aparência) ao que vagarosa ou apressadamente foi se desenrolando (ou enrolando) em redor, tantos acontecimentos com gentes. Com bichos. Mas tudo já acabou, as pessoas, os bichos, desapareceram todos. Fiquei só dentro de um caramanchão em meio a um jardim abandonado. Pela porta (porta?) deste caramanchão em ruínas vejo a casa que está sendo demolida, resta pouco dessa antiga casa. Quando ainda estava inteira havia em torno uma espécie de auréola, não eram as pessoas mas era a casa que tinha essa auréola mais intensa nas tardes de céu azul. E em certas noites claras, quando em redor dela se formava aquele mesmo halo luminoso que há em redor da lua. Agora há apenas névoa. Pó. A morte lenta (e opaca) da casa exposta vai se arrastando demais, os dois operários demolidores são vagarosos (preguiçosos) e estão sempre deixando de lado as picaretas para um jogo de cartas com uma cerveja debaixo do teto que ainda resta. Falei na auréola da casa. Esse suave halo também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do Professor mas isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. Mas assim que a distraída Hortênsia (fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras), assim que começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno na caneca do chá-mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor começou a ficar mais triste. E o halo foi se apagando até desaparecer completamente. O Professor, Hortênsia e Marieta. O Professor tocava seu violoncelo e sonhava até que interrompeu (ou continuou?) o sonho debaixo da terra. Hortênsia, a (falsa) distraída podia ter ido embora simplesmente com seu amante corretor de imóveis mas e a herança? Na última vez em que apareceu aqui no caramanchão teve um olhar pensativo para o violoncelo lá no canto. Voltou o olhar para mim e disse como se eu tivesse lhe pedido satisfações, Depois eu volto para levar. Não voltou. Saiu com seu passinho curto e o seu espelho e o seu gozo. Depois de tão longa temporada com um músico velho, só um corretor tão jovem quanto voraz, foram cúmplices no crime. Será que o tempo (o remorso) vai um dia corroer as delicadas entranhas de Hortênsia como corroeu a minha cara? Fico às vezes me perguntando por que a Marieta me irritava ainda mais do que a própria assassina que pelo menos sabia o que queria e fez (bem) o que planejou. Mas a Marieta-Alcoviteira era uma estúpida, chantageou (mal) a patroa e só não foi além porque mediu a força da outra e teve medo, recuou. Habilmente, Hortênsia se desfez dela, mandou-a cozinhar em outra freguesia até o dia em que ela mesma for cozinhada no fogo do inferno. Os bichos? Adolfo, o gato, assim que desconfiou que as coisas por aqui não andavam brilhantes, fez sua valise e tomou rumo ignorado, sempre foi misterioso. Continua em algum lugar com o seu mistério. Miguel, o cachorro, era superficial mas esperto, quando viu o navio afundando, saiu correndo e foi se aboletar com os móveis no caminhão da mudança e de lá ninguém conseguiu tirá-lo, o que fez a Marieta perder o fôlego de tanto rir quando avisou à patroa que o Miguel já tinha ido na frente esperar por ela na nova casa. O triunfo da impunidade.

Debandaram todos. Eu fiquei. Eu e o violoncelo esquecido e apodrecendo lá no canto. A madeira do caramanchão também apodreceu debaixo das trepadeiras ressequidas, um dia os homens da demolição entraram aqui para fazer suas avaliações. Olharam o violoncelo, bateram com os nós dos dedos na madeira, Será que isso vai render alguma grana? o mais velho perguntou. O outro fez uma careta, Apanhou muita chuva, não serve nem para o fogo, disse e botou a mão no meu ombro. E este anão rachado? Deixa este por minha conta que eu acabo com ele. Saíram e ficou o silêncio murmurejando no jardim. Uma aranha cinzenta desceu e foi tecer sua teia entre as grossas cordas do violoncelo mas as cordas já estavam fracas e como se a teia pesasse, foram estourando aos poucos, tóim, tóim. Então a aranha abandonou a casa musical, deve estar por aí com os insetos e outros bichinhos que continuam fazendo (e desfazendo) os seus negócios. Volto às minhas lembranças que foram se acumulando no meu eu lá de dentro, em camadas, feito poeira. Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o nada que nem chega a ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU SOU. Meu peito (rachado) continua oco. A não ser um ou outro inseto (formiga) que se aventura por esta fresta, não há nada aqui dentro e contudo ouço o coração pulsante repetir e repetir EU SOU. Fiquei como um homem que é prisioneiro de si mesmo no seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar e eu estou fincado no lugar onde me depositaram e esqueceram. Até ser removido. Ou destruído, o que vai acontecer logo, os demolidores estão chegando à última parede da casa. Logo eles virão com as picaretas nesta direção, já disse que o mais jovem (e mais forte) me escolheu. E até que esses operários sabem fingir eficiência, a pressa porque apressado mesmo é o corretor- amante, ontem ele andou por aqui. Deu suas ordens com a maior ênfase, está impaciente, o terreno é grande e está localizado num bairro elegante, quer fazer logo o negócio. Quando foi embora no seu belo carro, fiquei olhando o jardim com sua folhagem desgrenhada enfrentando bravamente o capim furioso. Um jardim selvagem mas fácil de abater, trabalho vai dar a figueira-brava com suas raízes agarradas à terra, se descabela às vezes quando fica em pânico. Mas antes será a vez deste caramanchão e eu aqui dentro. Meu avô também era meio arrogante, me disse o Professor certa noite. E riu seu riso breve, nesse tempo ainda ria. É com arrogância que agora espero a morte? Não tenho medo, não tenho o menor medo e essa é outra diferença importante entre um anão de pedra e um homem, a carne é que sofre o temor e tremor mas meu corpo é insensível, sensível é esta habitante que se chama alma. Falei em alma, seria ela um simples feixe de memórias? Memórias desordenadas, obscuras. Tudo assim esfumado como um sonho entremeado de fantasmas, seria isso? Não sei, sei apenas que esta alma vai continuar não mais neste corpo rachado mas em algum outro corpo que Deus vai me destinar, Ele sabe. E agora me lembro da noite em que este peito rachou feito uma casca de ovo: Hortênsia entrou aqui trazendo um pratinho de biscoitos e a caneca fumegante de chá-mate. Deixou a bandeja na mesinha e fez um ligeiro afago na cabeça do Professor que estava abraçado ao violoncelo mas com as mãos descansando frouxas sobre as cordas. Ela voltou para mim o olhar buliçoso, E como vai o anão filosofante? Um dia vou tapar os seus ouvidos com duas bolinhas de algodão, ela disse rindo. E levou a caneca ao Professor, Toma logo, querido, assim vai esfriar! Foi quando meu peito pareceu intumescido, inchado, era tamanha a minha fúria e asco, quis saltar e jogar longe aquela caneca, Não beba isso! O que eu teria lhe transmitido nesse instante para que ela tivesse aquela reação estranha? Ficou de costas, afastou-se. Ele pegou a caneca, soprou a fumaça e tomou um largo gole como um viciado em veneno. Teve um sorriso descorado quando me indicou com a mão que segurava a caneca, Deixa o Kobold com seus ouvidos, preciso de um ouvinte assim severo. Fechei os olhos (olhos?) para não vê-lo beber o resto do chá.

Vou jogar no clube, ela avisou ao sair toda saltitante, andava às vezes feito um passarinho. Ah, não vá deixar de tomar sua sopa, já avisei a Marieta. Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!… Vai chover, Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção à casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor. Então as formigas foram subindo pelo meu corpo e vieram (em fila indiana) me examinar. Entraram pela fresta, bisbilhotaram o avesso da pedra e depois saíram obedecendo a mesma formação, além de disciplinada a formiga é curiosa e essa curiosidade é que a faz eterna.

Kobold. Pois Kobold foi o nome que o Professor me deu, ele estava num antiquário quando me descobriu de repente no fundo penumbroso de uma das salas. Achou graça em mim (nesse tempo ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito parecido com seu avô chamado Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a pele toda enrugada e esse jeito pretensioso de juiz que julga mas não admite ser julgado. Inclinou-se para me examinar e pareceu agradavelmente surpreendido, Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos deuses chineses para ouvir melhor as preces. Não vai ouvir preces mas o meu violoncelo, ele avisou ao me instalar no chão arenoso do caramanchão, entre dois tufos de samambaia. Sua música era boa? Era ruim? Não sei e nem ele ficou sabendo, esse meu dono era tão fraco que não teve nem forças para cumprir sua vocação, não tomava notas ou então rabiscava desordenadamente as composições em folhas que acabava perdendo e a Marieta jogava no lixo. Tocava o violoncelo horas seguidas (blom, blom, blom) refugiado ali no verde do caramanchão fechado pelas trepadeiras e nesses momentos parecia (vagamente) feliz. E agora me lembro, quando um sabiá veio cantar na figueira, ele se encantou e acabaram ambos fazendo um dueto, o sabiá soltava seus gorjeios agudos e o violoncelo respondia com sons tão graves que pareciam vir das profundezas da terra. Me lembro ainda que ele lamentou um dia, Que pena, o sabiá foi embora. Numa tarde em que Hortênsia chegou com a manta para cobrir-lhe os pés (fazia frio), surpreendeu-o falando sozinho e fingiu zangar-se, Não quero que fale sozinho, querido, isso é coisa de velho! Ele suspirou, Mas eu sou velho. E defendeu-se em seguida, Não estou falando sozinho, estou falando com o Kobold. Mas isso já faz muito tempo, ela era amante do banqueiro com quem ia para a Europa, acho que não pensava (ainda) em assassinar o Professor. Nessa época ele estava de cama com bronquite e era aqui no caramanchão que ela vinha telefonar para o amante. Trazia o pequeno telefone dentro da sacola de lona vermelha e ficava fazendo suas ligações secretas. Quando não conseguia comunicar-se com ele (era casado) mandava a Marieta levar-lhe os bilhetes. Aqui ela teve a notícia da morte do banqueiro e pela palidez que vi em sua face (sempre corada) pude bem imaginar o quanto ele era rico. Vieram em seguida os outros amantes, demorou um certo tempo para conhecer o corretor que acabou seu cúmplice. Pelas conversas (em código) que chegavam (às vezes) ao auge da discussão, deu bem para perceber que ele queria recuar, deve ter tido medo. Mas quando esse tipo de mulher mete uma coisa na cabeça, vai mesmo até o fim. A diferença foi que dessa vez a mensageira Marieta (que já devia estar chantageando) ficou completamente de fora.

Amanheceu. Ontem, os homens derrubaram o último muro e hoje será a vez do caramanchão, ouvi os dois combinando, a figueira vai ficar para depois. Deixa o anão comigo, o mais jovem lembrou e fez um gesto obsceno. Tenho pouco tempo. Sei que esta essência (alma?) que me habitou tantos anos não vai agora se esfarelar como a pedra, sei que vou continuar, mas onde? Reconheço que sou mal-humorado, intolerante, não devo ter sido um bom parceiro nem de mim mesmo nem dos outros, não me amei e nem amei o próximo. Mas convivendo com esse próximo eu poderia ser diferente? Tanta ambição, tanta vaidade. Tanta mentira. O Professor era delicado, manso de coração mas não era irritante com a sua mornidão? A bondade sem a coragem, sem a energia, ele nem dava pena, dava até raiva. Dos outros, desses não quero nem falar, tenho pouco tempo, confesso que não fui mesmo compassivo e assim ainda ouso sonhar com uma outra vida porque sempre sonhei (e ainda sonho) com Deus. Então peço isto, queria servi-lo na ativa, quero lutar com o amor que sou capaz de ter e não tive, queria ser um guerreiro, não um discípulo- espectador mas um discípulo-guerreiro, me pergunto até hoje como aqueles lá permitiram a crucificação de Jesus Cristo. Eu sei do seu desencanto diante deste mundo que ficou ruim demais e ainda assim estou pedindo, quero lutar, me dê um corpo! Imploro o inferno do corpo (e o gozo) que inferno maior eu conheci aqui empedrado. Na hora do julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d’água, lava as mãos e diz: “Estou inocente do sangue deste justo”. Ah! eu queria tanto entrar ali na forma de uma serpente e picar Pôncio Pilatos no calcanhar!

As vozes dos demolidores estão mais nítidas, um deles parou para arregaçar as mangas da camisa, vai acender um cigarro. Baixo o olhar e vejo um escorpião que saiu de debaixo da pedra e se aproximou até parar interrogativo diante do bico da minha bota. Sei que é o último bicho que vejo, nenhum medo nem dele nem da morte mas agora é diferente, estou ansioso, ansioso, ah! se pudesse compreendê-lo, mas escorpião não precisa de compreensão, precisa de amor. Tem a cor da palha seca e a cauda erguida, está com a cauda em gomos sempre erguida no alto e em posição de dardo, o veneno na ponta aguda, é um lutador pronto para se defender. Ou atacar. Avançou mais e as pinças dianteiras que sondam e informam — as pinças se imobilizaram endurecidas no ar. A cauda (rabo) erguida e pronta para o combate se ele pressentir que minha bota vai avançar. Aí está o taciturno habitante das cavidades. Das sombras. E me lembro de repente, vi certa tarde um casal (macho e fêmea) passeando de mãos dadas, é possível? mas vi o casal sair de mãos dadas sob o sol que se escondia, também eles se escondendo.

Os homens estão parados na entrada do caramanchão e combinam um jogo para mais tarde, o mais velho parece satisfeito, o trabalho está praticamente terminado. O escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática. Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco, lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito  deste céu de outubro.
Lygia Fagundes Telles

terça-feira, fevereiro 13

Em viagem

 


Meu primeiro poema

Agora vou contar-lhes uma história de pássaros. No lago Budi, os cisnes eram perseguidos com ferocidade. Aproximavam-se deles sorrateiramente nos botes e, em seguida, rápido, rápido, remavam... Os cisnes, como o albatroz, devem correr patinando sobre a água, empreendendo dificilmente o voo e levantando com dificuldade as grandes asas. Alcançados, eram exterminados a pauladas.

Trouxeram-me um cisne meio morto. Era uma dessas aves maravilhosas que não voltei a ver no mundo: o cisne de pescoço negro, uma nave de neve com o pescoço esbelto como que metido em uma estreita meia de seda negra, o bico alaranjado e os olhos vermelhos.

Isto foi perto do mar, em Porto Saavedra, Imperial do Sul.

Entregaram-no a mim quase morto. Lavei suas feridas e lhe empurrei pedacinhos de pão e peixe pela garganta. Devolvia tudo. No entanto, foi se refazendo de seus ferimentos, começou a perceber que eu era seu amigo. E comecei a compreender que a nostalgia o matava. Então, carregando o pesado pássaro em meus braços pelas ruas, levei-o ao rio. Ele nadava um pouco, perto de mim. Eu queria que ele pescasse e lhe indicava as pedrinhas do fundo, as areias por onde deslizavam os peixes prateados do sul. Mas ele olhava a distância com olhos tristes.

Assim diariamente, por mais de vinte dias, levei-o ao rio e o trouxe à minha casa. O cisne era quase tão grande quanto eu. Uma tarde ficou mais alheio, nadou perto de mim, mas não se distraiu com os insetinhos com que eu queria ensinar-lhe novamente a pescar. Ficou muito quieto e o tomei de novo nos braços para levá-lo à casa. Então, quando o tinha à altura do peito, senti que se desenrolava uma tira, algo como um braço negro que me roçasse o rosto. Era seu comprido e ondulante pescoço que caía. Assim aprendi que os cisnes não cantam quando morrem.


O verão é abrasador em Cautín. Queima o céu e o trigo. A terra quer recuperar-se de sua letargia. As casas não estão preparadas para o verão, como não estiveram para o inverno. Vou pelo campo e ando, ando. Perco-me no monte Nielol. Estou só, tenho o bolso cheio de escaravelhos. Numa caixa levo uma aranha peluda recém-caçada. Não se vê o céu no alto. A selva está sempre úmida. Resvalo. De repente grita um pássaro: é o grito fantasmagórico do chucao.(1) Sou trespassado por um arrepio. Apenas se distinguem os copihues como gotas de sangue. Sou somente um ser minúsculo debaixo dos fetos gigantes. Junto à minha boca voa uma torcaza(2) com um ruído seco de asas. Mais acima outros pássaros riem de mim com riso áspero. Encontro com dificuldade o caminho. Já é tarde.

Meu pai não chegou ainda. Chegará às três ou às quatro horas da manhã. Subo ao meu quarto. Leio Salgari. A chuva desaba como uma catarata. Em um minuto a noite e a chuva cobrem o mundo. Ali estou só e em meu caderno de aritmética escrevo versos. Na manhã seguinte me levanto muito cedo. As ameixas estão verdes. Subo os montes. Levo um pacotinho com sal. Subo numa árvore, me instalo comodamente, mordo com cuidado uma ameixa e tiro dela um pedacinho, empapando-a com sal. Como até cem ameixas. Já sei que é demais.

Incendiou-se nossa casa, notícia misteriosa. Subo a cerca e olho os vizinhos. Não há ninguém. Levanto alguns pedaços de pau. Nada mais que umas miseráveis aranhazinhas. No fundo do terreno está o reservado. As árvores junto dele têm lagartas. As amendoeiras mostram sua fruta forrada de felpa branca. Sei como caçar os moscardos sem fazer-lhes dano, com um lenço. Mantenho-os presos por um momento e os aproximo dos meus ouvidos. Que zumbido magnífico!

Que solidão a de um pequeno menino poeta, vestido de negro, na fronteira espaçosa e terrível. A vida e os livros pouco a pouco vão me deixando entrever mistérios esmagadores.

Não posso esquecer do que li essa noite: a fruta-pão salvou Sandokan e seus companheiros numa Malásia distante.

Não gosto de Buffalo Bill porque mata os índios. Mas que bom cavaleiro! Que lindas as pradarias e as tendas cônicas dos peles-vermelhas!

Muitas vezes me perguntaram quando escrevi meu primeiro poema, quando nasceu em mim a poesia.

Tratarei de lembrar. Muito longe na minha infância e tendo apenas aprendido a escrever, senti uma vez uma intensa emoção e tracei algumas palavras semi-rimadas mas estranhas a mim, diferentes da linguagem diária. Passei a limpo num papel, preso de uma ansiedade profunda, de um sentimento até então desconhecido, espécie de angústia e tristeza. Era um poema dedicado à minha mãe, isto é, a que conheci como tal, a madrasta angelical, cuja sombra suave protegeu toda minha infância. Completamente incapaz de julgar minha primeira produção, levei-a a meus pais. Eles estavam na sala de jantar, mergulhados em uma dessas conversas em voz baixa que dividem mais que um rio o mundo dos meninos e dos adultos. Desdobrei o papel com as linhas, trêmulo ainda com a primeira visita da inspiração. Meu pai, distraidamente, tomou-o em suas mãos, leu distraidamente e distraidamente mo devolveu, dizendo:

– De onde o copiaste?

E continuou conversando em voz baixa com minha mãe seus assuntos importantes e remotos.

Parece-me recordar que assim nasceu meu primeiro poema e que assim recebi a primeira mostra distraída da crítica literária.

Entretanto avançava no mundo do conhecimento, no desordenado rio dos livros como um navegante solitário. Minha avidez de leitura não descansava de dia nem de noite. Na costa, no pequeno Porto Saavedra, encontrei uma biblioteca municipal e um velho poeta, Dom Augusto Winter, que se admirava de minha voracidade literária.

– Já os leu?, dizia, passando-me um novo Vargas Vila, um Ibsen, um Rocambole. Como um avestruz, eu tragava sem discriminar.

Por esse tempo chegou a Temuco uma senhora alta, com vestidos muito compridos e sapatos de saltos baixos. Era a nova diretora do liceu de meninas. Vinha de nossa cidade austral, das neves de Magallanes. Chamava-se Gabriela Mistral.

Eu a olhava passar pelas ruas do povoado com seus vestidões até os tornozelos e tinha medo dela. Mas quando me levaram para visitá-la, achei-a simpática. No rosto queimado em que o sangue índio predominava como um belo cântaro araucano, seus dentes branquíssimos mostravam-se num sorriso pleno e generoso que iluminava a casa.

Eu era jovem demais para ser seu amigo – e tímido e ensimesmado demais. Poucas vezes a vi – mas o bastante para cada vez sair com alguns livros que me presenteava. Eram sempre novelas russas, que ela considerava como o máximo da literatura mundial. Posso dizer que Gabriela me 
me iniciou nessa séria e terrível visão dos novelistas russos e que Tolstói, Dostoiévski e Tchecov entraram na minha predileção mais profunda. Continuam me acompanhando.
Pablo Neruda, "Confesso que Vivi"
Notas:
(1) Chucao: (Zool., Chile) pássaro de plumagem parda, que habita a espessura dos bosques. (N. da T.)
(2) Torcaza: espécie de pomba, chamada “paloma torcaz”, que vive no campo e se aninha nas árvores mais elevadas. (N. da T.)