sábado, fevereiro 28

Nunca deixemos de andar nele

Da biblioteca para a fogueira

Razões políticas, religiosas e morais têm levado os livros à destruição desde sua origem, na Mesopotâmia, até os dias atuais, como no saque à Biblioteca de Bagdá
 A Biblioteca de Sarajevo depois do bombardeamento de 1992
Livros são potencialmente perigosos e, por isso, devem ser destruídos. A repulsiva idéia, que o escritor italiano Umberto Eco desenvolveu, de forma impecável, em seu popular romance O nome da rosa, de 1981, é na verdade muito antiga. Surgiu com os próprios livros, que aparecem pela primeira vez, feitos em argila, na Suméria, Mesopotâmia, onde é hoje o sul do Iraque. Guerras sucessivas os destruíram - perto de 100 mil deles, estimam os historiadores. Ainda assim, expedições arqueológicas desenterraram tabletas de argila que datam dessa época. Desde esses tempos remotos, o livro – em suas primeiras formas, tabletas, depois papiros, pergaminhos – está, sempre, sob ameaça.

A saga dessas agressões é relatada em História universal da destruição dos livros, do escritor venezuelano Fernando Báez. “Os que queimam livros acabam queimando homens”, escreveu o poeta Heinrich Heine. A história prova que sim. Báez participou da comissão da Unesco que, em março de 2003, visitou o Iraque depois da invasão americana, para investigar a devastação da Biblioteca Nacional de Bagdá. Ela sofreu dois ataques com bombas e mísseis, seguidos de dois violentos saques. Todo o acervo desapareceu. Tabletas de argila dos sumérios, de 5.300 anos, foram roubadas das vitrines.

“Mas a destruição da Biblioteca Nacional não teve a repercussão mundial da pilhagem do Museu Arqueológico de Bagdá”, Báez lamenta. Em um café da capital, a poucas quadras da biblioteca, ele ouviu o desabafo de um professor iraquiano. “Nossa memória já não existe.” A destruição de livros vem de muito longe. Em 1975, arqueólogos escavaram, a 55 km a sudoeste de Alepo, na Síria, os restos de um antigo palácio. O que encontraram? Uma biblioteca enterrada, com um acervo de 15 mil tabletas. A destruição foi conseqüência de um ataque militar inimigo, a respeito do qual os historiadores, ainda hoje, se encontram divididos; uns o atribuem ao rei acadiano Naramsin, outros ao rei Sargão. Três mil anos antes de Cristo, livros já eram dizimados pela guerra.

A devastação continuou, por volta de 2000 a.C., em uma região governada pelo rei Hamurabi, que é, hoje, o sul de Bagdá. Em 689 a.C., as tropas de Senaquerib arrasaram a Babiblônia. Seu neto, o soberano assírio Assurbanipal, o primeiro grande colecionador de livros do mundo antigo, fundou, em Ninive, outra esplêndida biblioteca, arrasada ela também décadas depois. De seus restos, no século XIX, arqueólogos desencavaram mais de 20 mil tabletas, hoje guardadas no Museu Britânico. No início do século XX, arqueólogos desenterraram na antiga Hattusa, a capital dos hititas, mais de 10 mil tabletas escritas, em pelo menos oito línguas diferentes. Também a biblioteca do Ramesseum, o templo que Ramsés II construiu em Tebas para lhe servir de túmulo, desapareceu com seus rolos de papiros esotéricos.

O barato do Kafka

Clássico volta a ser bom negócio

CLASSIC TALES (detail) © Charles WYSOCKI (Artist. USA, 1928-2002) Wonderful trompe l'oeil bookshelf with sleeping cats :-)  Humor, Whimsy, Book Titles.
Detalhe de Contos clássicos Charles Wysocki (1928-2002)
Alguém pode dizer que um clássico nunca sai de moda. Isso não é inteiramente verdade. Há ciclos de interesse e de oferta que os tornam mais atraentes de tempos em tempos. É o que se vê agora no mercado literário brasileiro. Em um momento em que a economia caminha para a recessão e grandes títulos como O pequeno príncipe caem em domínio público ou rumam para tal, duas pequenas editoras começam a operar focadas nesse nicho, e outras duas já consolidadas, a Hedra e a Rocco, preparam coleções — de holandeses “esquecidos” e de obras canônicas para jovens, respectivamente. É uma boa notícia para o leitor, que tem no filão o seu investimento mais seguro. “Um clássico nunca perde a importância. Lendo clássicos, a gente se aproxima do nosso passado comum”, diz Juliana Lopes Bernardino, da Poetisa, editora que iniciou trabalhos no final de 2014 com a ideia de tirar da gaveta traduções feitas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde sua sócia, Cynthia Beatrice Costa, estuda. Para as editoras, os clássicos são um ótimo investimento. “Não publicamos livro por caridade. Publicamos porque dá lucro. Clássico dá prestígio e visibilidade, vende e dá lucro. Clássico dá lucro”, diz Carlos Andreazza, editor-executivo de ficção nacional da Record, que edita um dos maiores clássicos nacionais, Vidas secas, de Graciliano Ramos, com mais de 2 milhões de exemplares vendidos desde meados de 1970.
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sexta-feira, fevereiro 27

Aqui se lê menos que na Venezuela, Turquia e Egito


Talvez muitos brasileiros ignorem o pouco que se lê nesse país em relação ao resto do mundo. Talvez não saibam que em um ranking dos 30 países onde mais se lê, segundo a agência Nop World, o Brasil aparece na rabeira, à frente apenas de Taiwan e Coreia. E talvez isso tenha a ver com a denúncia que o escritor Luiz Ruffato acaba de fazer em seu artigo O nosso Fundamentalismo, nesta seção do jornal.

Ganham do Brasil em número de livros lidos e de horas de leitura por pessoa, por exemplo, Venezuela, México ou Argentina dentro do continente. Fora dele, turcos, egípcios, árabes sauditas, húngaros, poloneses, indonésios, filipinos e russos –entre muitos outros– leem mais que os brasileiros.

E talvez a grande massa de brasileiros estranhasse saber que os dois países onde se leem mais livros por pessoa e se dedicam mais horas à leitura no mundo são a Índia e a China.

É possível que um analfabeto ou alguém que não tenha lido um livro na vida possa revelar uma sabedoria natural, um senso comum agudo e até uma grande carga de poesia.

Conheci algumas pessoas assim na minha vida. Entretanto, o mais natural é que um país que não lê ou que aparece, como o Brasil, entre os piores leitores do mundo, esteja comprometendo seu desenvolvimento futuro – não apenas cultural, mas também econômico. Mais ainda, dificilmente entrará no rio da modernidade e do progresso um país não-leitor ao mesmo tempo que será refém dos poderes dominantes.

(Trechos do artigo de Juan Arias)

A pergunta que não quer calar

Foram-se há muito os anos de tacão de ferro e a mãe procura para o filho o livro “Manifesto comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels.
Pega o volume e reserva, enquanto fica vasculhando as prateleiras. Mas não se contém. Pede aflita uma orientação ao livreiro:
- Será que esse livro não faz mal aos jovens?

Um terror de biblioteca

Terror destrói livros raros no Iraque

Feira de livros na rua Al-Mutanabi, no centro
 de Bagdá, capital de cultura há milênios 
Militantes do Estado Islâmico destruíram milhares de manuscritos, documentos e livros raros após invadirem a Biblioteca Pública de Mosul, no norte do Iraque, de acordo com relatos do diretor da instituição, informou o jornal britânico "The Independent". A estimativa é que pelo menos 8 mil exemplares tenham sido destruídos, muitos deles registrados na lista de raridades da Unesco.

Testemunhas disseram que os extremistas fizeram uma grande fogueira com pilhas de livros científicos e culturais. Segundo relatos citados pela Associated Press, moradores viram ainda milhares de livros serem carregados em seis caminhões. Entre os itens destruídos estariam uma coleção de jornais iraquianos do começo do século 20, mapas, livros e coleções do período Otomano.

De acordo com um professor de história da Universidade de Mosul, a destruição da biblioteca começou no início do mês. Também foram alvo dos extremistas a Biblioteca Sunita, a biblioteca do Mosteiro dos Frades Dominicanos, com 265 anos de idade, e a Biblioteca do Museu de Mosul, que continha manuscritos datados de 5000 a.C.

Em 2003, durante a invasão americana, parte da biblioteca já havia sido destruída.

quinta-feira, fevereiro 26

Receita de mestre

Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do fato estético. O que são as palavras dormindo num livro? O que são esses símbolos mortos? Nada, absolutamente. O que é um livro se não o abrimos? Simplesmente um cubo de papel e couro, com folhas; mas se o lemos acontece algo especial, creio que muda a cada vez
Jorge Luís Borges

Os sacerdotes dos livros

História verdadeira, contada por Tarcísio Trindade à Pública: O homem abre a mala e espalha os livros no chão. É um dos muitos vendedores de alfarrábios e outras velharias que costumam encher a Feira do Rastro de Madrid, Espanha. Estamos num domingo dos anos 60. Tarcísio Trindade veio a Espanha trazer a mãe ao médico. Aproveita para dar uma volta pelo que é considerado a maior feira da ladra em todo o mundo. É um hábito próprio de uma família de antiquários como a sua. O homem espalha vários volumes, uns recentes outros muito velhos, alguns álbuns de banda desenhada. Tarcísio baixa-se, atraído por um calhamaço cuja encadernação lhe parece bastante antiga. Folheia-o. É uma "miscelânea", com quatro obras encadernadas juntas, todas da mesma época. Século XV, quase pode garantir. "Quanto é?" Trás o incunábulo por 500 pesetas.

Já no hotel, folheia a sua preciosidade com a mãe. Não há dúvidas: um dos quatro livros está escrito em português. Intitula-se "Tratado de Confissom". E, também parece não restarem dúvidas, foi impresso em 1489, em Chaves. Ora é sabido que o livro impresso mais antigo escrito em português é o "Vita Christi", de 1495. Ou melhor: era.

Neste momento, Tarcísio só tem uma ideia na cabeça: vender o incunábulo. Quarenta anos mais tarde, a estratégia será a mesma. Na sua livraria, na Rua do Alecrim, em Lisboa, as obras não param muito tempo. É costume os colegas livreiros lá irem esquadrinhar os últimos achados do Tarcício, e levarem alguns para revenda.

Um desses colegas, Tavares de Carvalho, aprendeu com ele a arte dos negócios bibliófilos. Mas adoptou um estilo diferente: gosta de manter os livros em seu poder durante anos. Segundo ele, porque tem cultura suficiente para saber o valor de uma obra e não tem pressa de a vender. Espera até que apareça alguém a oferecer o preço justo. Se não aparecer, não vende. O que também é bom. É prestigiante para o livreiro o saber-se que possui certas obras, tal como é saber-se que protagonizou certas histórias. Peças de valor imenso, como uma primeira edição de "Os Lusíadas" ou da "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, acabam por emprestar o seu valor ao próprio livreiro, enquanto estiverem na sua estante. E usado esse valor ele fará melhores negócios, sem alienar os preciosos volumes.

Se isto é verdade, ser proprietário do "Tratado de Confissom" equivaleria a um autêntico título nobiliárquico. Não obstante, Tavares de Carvalho teria recusado dar os 150 contos que Tarcísio lhe pediu por ele, em 1964.

Leia mais o artigo de Paulo Moura

Cuidado!


O freguês ideal

Na história dos sebos cariocas, há um caso talvez único no ramo. Uma livraria foi premiada com o freguês ideal. Com uma certa frequência, entrava na loja, escolhia o que ia levar e sequer pedia o costumeiro desconto então muito comum entre os sebistas. O livreiro saudou a boa venda e nuna imaginou, naquele momento, que estava premiado.

Foi descobrir dias depois que não havia melhor freguês. Ainda embrulhados, os livros voltaram. “Uma doação para você”, diz o freguês, entregando ao livreiro aqueles mesmos livros que comprou ali.

As compras e as “doações” seguiram-se por muito tempo e, às vezes, com uma desculpa pela demora em levar de volta os volumes.

quarta-feira, fevereiro 25

O poder contra o livro

Reconstituição da famosa biblioteca de Alexandria, que, segundo novos estudos, teria
sido destruída devido a cortes de orçamento, e não pelo fogo como sempre se divulgou
A urgência temerosa de destruir ou suprimir um determinado livro é, em si mesma, um reconhecimento de seu poder
Allison Hoover Bartlett 

Livros vendidos como heroína

Cabrera Infante na biblioteca de sua casa
Os livros do autor mais importante de Cuba, Guillermo Cabrera Infante, são vendidos de maneira clandestina na feira do livro de Havana. “Tenho algo bem precioso do Mestre de Gibara”, anuncia em voz baixa um homem alto e bem vestido.

Esta semana funciona em Cuba uma feira de livros que tem como sede La Cabaña, uma antiga fortaleza militar com mais parentesco com a repressão e a morte que com a poesia e a literatura: ali instalou seu quartel general Ernesto Che Guevara em janeiro de 1959. Por esses dias, ali se vendem livros e as pessoas buscam algo que ler entre os estandes onde se apresentam as joias das letras as antologias de discursos de Fidel Castro e de Hugo Chávez, e recorrem com desesperança aos locais onde se apresentam peças que aplaudem ou silenciam o que passa na vida.

O mais curioso da feira de Havana é que os livros do autor mais importante do país têm que ser vendidos de maneira clandestina. Faz isso, por exemplo, um homem alto e bem vestido que se move entre os grupos eventuais de leitores e diz em voz baixa: “Tenho algo a bom preco do Mestre de Gibara”.
Não se fala do escritor. Mas se refere nada mais nada menos do que ao homem da vila da zona oriental de Cuba, onde nasceu, na primavera de 1929, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), Prêmio Cervantes de 1997 e fundador, com sua geografia da noite havanense, de um país mais adorado e esplendoroso que o que dirigem os que o proíbem.

O escritor completa nesta semana sua primeira década de imortalidade verdadeira e nesse tempo foram publicados quatro livros que redimensionam sua obra e afirmam sua lenda de rebeldia pessoal. Aí estão nas mãos dos leitores da Espanha e da América Latina os novos títulos publicados pela Galaxia Gutenberg: “A ninfa inconstante”, “Corpos divinos”, “Mapa desenhado por um espião” e o primeiro tomo, dedicado a sua crítica de cinema, de suas Obras Completas.

Assim começa o livro

O passado é um fantasma que não é preciso convocar com médiuns ou invocar com abra-essa-obra. É na realidade da recordação um ravenant total. Não é preciso pôr as mãos em cima da mesa, de palmas para baixo, ou responder aos três toques rituais ou perguntar «Quem vem lá?». O espírito do passado está sempre a vir. Um copo de água e uma flor amarela chegam. Não é necessário repetir frases encantatórias ou cast a spell: todos os mortos estão aqui, vivos, exibidos por trás de uma janela de vidro preto, de uma câmara escura, de uma obra de artifício. Os entes passados estão vivos porque para nós não morreram. Estamos vivos porque eles não morrem. Nós somos os mortos vivos
A Ninfa Inconstante, Prólogo

Imagem do Dia


Sebo de e-books... na Holanda

Na Holanda, os leitores de e-books podem revender seus livros digitais “usados”. É que foi lançada por lá a e-bookStore Tom Kabinet oferecendo o serviço de venda de livros digitais “usados”. A loja entrou no ar em junho, mas as editoras holandesas recorreram à justiça contra a Tom Kabinet. A loja teve uma vitória parcial e voltou às operações recentemente. A Justiça holandesa entendeu que as vendas de e-books usados no país não é ilegal, mas que a Tom Kabinet não tinha tomado medidas suficientes para evitar a pirataria. A princípio, a Tom Kabinet limitou a venda de livros com DRM livre e de ePubs com marcas d’água digitais. Como medida contra a pirataria, o site adicionou marcas d’água digitais em livros que passaram pela loja, mas isso não foi suficiente para o Tribunal de Amsterdam. Como resposta à Justiça, a Tom Kabinet decidiu que compraria de volta apenas os e-books vendidos pelo site, ou seja, os usuários que compraram e-books “novos” no site da Tom Kabinet poderão revendê-los.

terça-feira, fevereiro 24

Bibliotecária em pilates

A paixão da leitura

Aos sete anos me apaixonei perdidamente pela leitura. Não em sentido figurado, mas num verdadeiro ato de amor. De amor e solidão, pois me escondia nos lugares mais insólitos para ler, exigindo do livro uma reserva, um segredo, um acumpliciamento que não poderia existir às claras e testemunhável. A volúpia de ler era o meu pecado. E eu pecava com volúpia, escondido embaixo do sofá da sala de visitas que cheirava a cera e a vermelhão, no oásis do linóleo verde, vendo os acenos das cortinas de filó que pendiam da janela – possíveis bridas de meus corcéis do sonho. Ali possuía fisicamente os livros pelo tato, pelo olfato, pela visão de olhos esbugalhados e gozosos, na mente que se despenhava pelos abismos de mil léguas submarinas ou escoteiramente acompanhava o pequeno vigia lombardo pelas florestas infiltradas de inimigos. Horas e meses e anos devorei – mas degustando cada palavra, principalmente aquelas cujo sentido não sabia – os quinze voluptuosos volumes do Thezouro da Juventude, encadernados em couro verde, com letras de ouro nas lombadas. Ler era viver, era mais: era viver muitas outras vidas além da minha, em terras em que eu jamais sonharia alguma vez estar, e mais ainda, em terras que nem mesmo existiam, já que nem eram mencionadas no livro e que o êxtase da leitura me induzia em mente a percorrer.

A leitura fez de mim um aventureiro e um cientista, às vezes com riscos de catástrofe. Minha irmã mais nova serviu de alvo às nossas flechas moicanas e um tiro de espingardinha de chumbo repercutiu no beco da farmácia. Ajoelhado em grãos de milho, de castigo por causa da peripécia, minha única preocupação era a de que meu pai me proibisse de ler. Eu não saberia suportar essa paixão contrariada. Mas meu pai era compreensivo, incentivava meu capricho, fazia gosto no namoro. E passei às biografias, aos romances, à medida que ia crescendo e já não me escondia embaixo do sofá. Agora procurava os jardins, o alto do Santo Cristo para meu ato público de ler. Minha volúpia se tornava mais discreta: quem me visse diria que eu estava apenas lendo e não possuindo voluptuosamente as páginas do livro.

Com o passar do tempo, meu ritual de ler assumiu várias formas: a leitura à noite, enquanto os outros dormiam; a leitura nos momentos de espera e nos meios de transporte – mas leitura em todo e qualquer instante em que não estivesse executando alguma obrigação. Pois ler era agora sobreviver. Era fugir às condições precárias que me eram impostas. Era continuar senhor de um mundo só meu, onde as coisas mais incríveis aconteciam pelo arranjo mágico de um conjunto de letras dispostas no papel.

Sempre fui fiel à minha paixão, embora fosse uma paixão pluralística e donjuanesca, pois inúmeros eram os objetos do meu amor: fileiras e mais fileiras de livros que eu ia guardando nas estantes. Hoje me surpreendo de, às vezes, tomar de um livro que li há quarenta anos ou de encontrar num deles uma dedicatória cuja data me enche de espanto pela brutal passagem do tempo. Mas, ao abri-lo, como que volto a provar daquela mesma emoção com que o li em criança ou muito jovem e me dou conta de que, apesar do tempo, a minha paixão pela leitura não arrefeceu. Olho para a estante e vejo enfileirados todos os gritos de angústia que feriram a minha sensibilidade de ontem, todos os versos de amor que retiniram nos meus ouvidos de rapaz. E me surpreendo, às vezes, ao fechar cauteloso a porta do quarto e tomar com carinho algum volume recém-saído, ao ver que o vou possuir hoje, agora, com aquela mesma volúpia do menino que lia embaixo do sofá.

Ivo Barroso (Reproduzido dO TREM Itabirano nº 114, fevereiro/2015)

Múltiplo uso do livro

A sogra

Quem não gostou foi a futura sogra. Chamou o filho. Instigou-o: “Essa menina está fazendo você de gato e sapato. Isso não é papel! Onde é que nós estamos?” Ele, que adorava a noiva, que a colocava acima de tudo e de todos, cortou o debate: “Vamos mudar de assunto, sim, mamãe?” A velha, porém, era tremenda. Largou o filho com as seguintes palavras: “Está certo, não se fala mais nisso. Mas quero te dizer uma coisa: aqui há dente de coelho.” E o fato é que, sem dizer nada a ninguém, ela andava desconfiadíssima. De quem ou de que, nem ela própria saberia dizê-lo. Nesta mesma tarde, porém, recorreu a vários conhecidos, atrás de uma informação, até que descobriu um detetive particular. Chamou o homem; perguntou:

– O senhor é discreto?

– Um túmulo!

– Ótimo. Eu preciso mesmo de um túmulo. Trata-se do seguinte...

Incumbiu o sujeito de acompanhar os passos de Margô; advertiu: “Pode ser palpite meu, mas não custa apurar.” O fulano concordou, grave: “Evidente! Evidente!” Deixou-o com a super-recomendação: “Ninguém pode saber disso!” Quarenta e oito horas depois, o detetive reaparecia, de olho esgazeado. Contou, longamente, o que apurara. De vez em quando, interrompia o relatório para exprimir seu estupor: “De arder! De arder!” Assombrada, a velha balbuciou: “Eu só acredito vendo com os meus próprios olhos!” E o detetive: “Amanhã, eu mostro o homem à senhora!”
Nelson Rodrigues

segunda-feira, fevereiro 23

Quando 'A Traça' faz parte da paisagem

A livraria no Meio Oeste americano tem o nome de "A traça" (The Bookworm) 

Encontrado conto perdido há 100 anos

Elliot e o livreto com obra de Doyle
O livro faz parte de uma coleção de caridade para reconstruir uma ponte 
Walter Elliot, carpinteiro aposentado de 80 anos, residente em Selkirk, no Sudeste da Escócia, encontrou uma raridade ao limpar o sótão. Em uma pilha de livros, com páginas presas por um barbante, encontrou uma velha coleção de histórias intitulado Book o’ the brig, livreto de 1904 que os moradores editaram a fim de levantar dinheiro para substituir a ponte sobre o rio Ettrick, que uma inundação tinha destruído em 1902.

"É uma encantadora pequena história. Eu não tenho idéia de quantas foram feitas ou quantos foram vendidos, mas eu já tinha o livro por meio século. Eu me lembro de ter comprado", disse Elliot.

Em suas 48 páginas, estava publicada uma história perdida de Sherlock Holmes, escrito por Arthur Conan Doyle. Um conto de 1.300 palavras, desaparecido por mais de cem anos, intitulado Descobrindo os municípios da fronteira e, por inferência, o bazar de brigadeiro.

Conan Doyle era já um famoso escritor já havia publicado dois anos antes . O Cão dos Baskervilles, mas publicou a história numa colaboração ao livro dos escritores vizinhos amadores para colaborar com a boa causa. Inclusive sua presença no último dia do bazar para arrecadar fundos para a ponte é anunciada na última página.

"Normalmente, as pessoas costumavam jogar esses livros ou se livrou deles. Mas isso tem sido com a minha família o tempo todo", segundo o carpinteiro aposentado que colocou o documento em exposição no Museu comunitário de Selkirk.

Portão da imaginação

O livro é o portão de acesso
à liberdade e ao saber.
E nem sequer cobra ingresso:
basta abri-lo, entrar… e ler!

Antônio Augusto de Assis

Uma fada com 'Ulisses' debaixo do braço

Sylvia Beach y James Joyce, en una oficina de París.
Sylvia e Joyce no escritório da Shakespeare&Company 
Criou a melhor livraria da Paris dos anos 1920, juntamente com sua parceira Adrienne Monnier. O local foi o epicentro da Geração Perdida, com Hemingway, Scott Fitzgerald, Ezra Pound, D.H. Lawrence. Mas seu grande cúmplice foi James Joyce, que publicou "Ulisses" em 1922. Apésar de aparentemente distante, Sylvia Beach foi a matrona da maior concentração literária da Paris daqueles anos. E mais: parece que a geração perdida era de fato uma lenda articulada para ela lhe dar abrigo, contorno e lenda. Com uma suavidade de senhora feroz suavizou os egos monumentais da manada de escritores, conjunto dos momentos mais poderosos da cultura europeia contemporânea, na pequena livraria do número 12 da Rue de l'Odéon: Shaskepeare & Company.

domingo, fevereiro 22

Ligeiro como quem rouba

Roubo de livro tem sempre história curta ou muito longa, mas nenhuma bate o recorde daquele ladrão ligeiríssimo. Entrou na loja, deu bom dia ao livreiro e quase instantaneamente agradeceu: “Muito obrigado”. Intrigado com aquele entrar e sair rapidíssimo da livraria, o livreiro foi à estante onde o “freguês” esteve num piscar de olhos. E ali constatou que tinha perdido um dicionário Webster, de formato grande, que até hoje não sabe onde o ladrão escondeu. 

Voracidade


Estou a léguas de distância dessa geração. Sou uma leitora voraz dos livros de papel
 Anna Maria Martins

Túnel do Tempo

Fotografia de Jessie Tarbox Beals, em 1910, registra a bibliotecária narrando uma lenda indígena para jovens de uma escola judaica

Onde estão as fadas


Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros. Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente “Les Contes” do poeta Maurice Bouchor, narrativas extraídas do folclore e adaptadas ao gosto da infância por um homem que conservava, dizia ele, olhos de criança. Eu quis começar na mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na "página certa", fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: "O que queres que eu te leia, querido? As Fadas?" Perguntei incrédulo: "As Fadas estão aí dentro?"
Jean-Paul Sartre (1905-1980) 

sábado, fevereiro 21

Tirinha


Oliver Sacks se despede

"Foi um privilégio e uma aventura"
Com um artigo simples, emotivo e direto, paradoxalmente cheio de otimismo, o escritor e neurologista Oliver Sacks, de 81 anos, anunciou no The New York Times, que sofre de um câncer terminal e que tem apenas mais algumas semanas de vida. "Acima de tudo, fui um ser com sentidos, um animal pensante, neste maravilhoso planeta, e isso, em si, foi um enorme privilégio e uma aventura", escreveu o autor de “Tempo de Despertar”, “Um antropólogo em Marte” e “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu”, entre outros, alguns adaptados para o cinema e venderam milhões de exemplares.

Intitulada Minha Própria Vida, em homenagem à autobiografia escrita pelo filósofo David Hume quando também soube que sofria de uma doença sem cura, sua despedida, é cheia de otimismo: "Estou intensamente vivo e quero e espero que o tempo que me resta por viver me permita aprofundar minhas amizades, me despedir daqueles que amo, escrever mais, viajar se tiver a força suficiente, alcançar novos níveis de conhecimento e compreensão. Isso incluirá audácia, clareza e falar com franqueza; vou tratar de acertar minhas contas com o mundo. Mas também terei tempo para me divertir (inclusive para fazer alguma estupidez)".

RN deve investir R$ 15 milhões em bibliotecas

Biblioteca Câmara Cascudo não tem data para ser reaberta
Existe um grande projeto para transformar a capital potiguar em uma cidade leitora. Trata-se do Plano Municipal do Livro, da Leitura, da Literatura e das Bibliotecas de Natal, que começou a ser elaborado no ano passado, com previsão de ser implantado nos próximos dez anos. Mais de R$ 15 milhões, das pastas da Cultura e Educação, estão assegurados para serem utilizados até 2017 nas ações do plano. Uma delas é a construção de bibliotecas-parque nas quatro regiões de Natal. A ideia é inspirada nos exemplos de Bogotá e Medellín, na Colômbia. Nas duas cidades colombianas, a política de implantação de bibliotecas-parque virou referência em desenvolvimento social e enfrentamento à violência urbana.
Elaborado por um grupo de trabalho que reúne distintos segmentos ligados à leitura e literatura, o Plano Municipal do Livro, da Leitura, da Literatura e das Bibliotecas de Natal será implantado com base em sugestões apresentadas pelos próprios moradores da cidade, colhidas no ano passado junto aos mais diversos públicos, incluindo, obviamente, pessoas do meio literário. As ações ainda terão como subsídio uma pesquisa inédita na capital potiguar, também realizada em 2014, e que, entre outros dados, traz informações sobre hábito de leitura e renda da população.

Brechas que nos levam a paraísos


Dentro de toda grande obra sempre há brechas, livros que não foram pensados. É como um caminho fora da estrada principal, onde há riachos e passarinhos. Há muitos livros que ficam voando e de repente pousam no seu ombro, pedindo para ser editados
Maria Amélia Mello deixou a José Olympio depois de mais de 30 anos e assume agora a editora literária da Autêntica. Leia mais

sexta-feira, fevereiro 20

O livro desconhecido

Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sabe, às vezes penso que estou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente amado. Uma das fantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase lida, com lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: "Mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!"
Clarice Lispector 

O equilíbrio encontrado


O humanista que inventou o livro de bolso

Ilustração para “O sonho de Poliphilo”
Uma exposição na Biblioteca Nacional da Espanha lembra o primeiro editor literário de História
Aldus Manutius (1451-1515) encarna o protótipo do humanista do Renascimento. Considerado o primeiro editor literário de História, recuperou o grego clássico, quando quase ninguém dominava o idioma além dos bizantinos e quatro sábios. E ainda foi o inventor da brochura. É a esse empreendedor e humanista que a Biblioteca Nacional de Espanha dedica a exposição “500 anos sem Aldus Manutius: Merchants no Templo da Literatura”, ficará aberta até até 19 de abril. Ele será uma das muitas atividades planejadas para este ano Manuziano , em comemoração ao aniversário da sua morte (em 6 de Fevereiro de 1515), que inclui eventos em Londres, Veneza, Nova Iorque, Milão, Dublin, Glasgow e Los Angeles.

Em seu catálogo estão 120 títulos, incluindo muitas primeiras edições de clássicos gregos, obras bilíngües e que foi considerado o livro já impresso mais bonito: “O sonho de Poliphilo” (Hypnerotomachia Poliphili), anônimo, escrito em italiano, com mais de 200 gravuras , e publicado por solicitação. Mil interpretações sujeitas a trabalhar Javier Azpeitia, a preparação de um romance sobre a editora italiana , resume: "O primeiro romance gráfico com as últimas tecnologias. Os Finnegans Wake da Renascença, de acordo com a maioria dos escritores. Um tratado de arquitetura que inspirou os criadores do Jardim de Versalhes, de acordo com o mais requintado gosto. Novela ilegível escrita por um pedante sem leitores, como os céticos ".

A decisão de Manutius ocorre em um contexto de salto tecnológico e cultural revolucionário, com o advento da imprensa, por volta de 1450. Nas próximas cinco décadas numa oferta desproporcional são impressos na Europa entre 30 mil e 40 mil incunábulos diante da escassez de população leitora.

quinta-feira, fevereiro 19

Carnaval

Carnaval, César Lacanna (1901-1983)
E foi-se o Carnaval. E só ficou,
de tudo, uma lembrança dolorida
que resta desse amor que se acabou
numa alegria que redime a vida.

Da loucura da febre que passou,
a alma se sente só e consumida;
na solidão que o sonho lhe deixou
a saudade ainda vive, malsofrida.

E, tristemente, o coração recorda,
na angústia de uma louca nostalgia,
esse sonho fugaz que ele sonhou.

Carnaval de um amor que, na alma, acorda
a esperança de uma última alegria,
entre as cinzas de tudo que passou.
Afonso Louzada 

Assim começa o livro...

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

Tudo era confusão na casa dos Oblónski. A esposa ficara sabendo que o marido mantinha um caso com a ex-governanta francesa e lhe comunicara que não podia viver com ele sob o mesmo teto. Esta situação já durava três dias e era um tormento para os cônjuges, para todos os familiares e para os criados. Todos, familiares e criados, achavam que não fazia sentido morarem os dois juntos e que pessoas reunidas por acaso em qualquer hospedaria estariam mais ligadas entre si do que eles, os familiares e criados dos Oblónski. A esposa não saía de seus aposentos, o marido não parava em casa havia três dias. As crianças corriam por toda a casa, como que perdidas; a preceptora inglesa se desentendera com a governanta e escrevera um bilhete para uma colega, pedindo que procurasse um novo emprego para ela; o cozinheiro abandonara a casa no dia anterior, na hora do jantar; a ajudante de cozinha e o copeiro haviam pedido as contas.


Tempos de horror

Venda de livros nas ruas de Varsóvia, em 1941, sob ocupação nazista

Um mapa para as bibliotecas

Carrinhos de feira viram pequenas bibliotecas
itinerantes no Shopping Popular da Ceilândia 
Quando pensamos numa biblioteca, imaginamos um lugar silencioso e cheio de livros aguardando leitores, que, para lê-los, devem seguir duas regras à risca: se usar a sala de leitura, não faça barulho; se pegar o livro emprestado, devolva-o no dia certo. Mas alguns brasileiros estão usando sua criatividade e as próprias mãos para transformar bicicletas, carrinhos de feira, geladeiras e objetos em bibliotecas, incentivando a leitura em locais onde as bibliotecas públicas não chegam.

É o que mostra um mapa com aproximadamente 60 iniciativas de incentivo à leitura, produzido pelo blogue Bibliotecas do Brasil, organizado por Daniele Carneiro e Juliano Rocha. Apaixonados por livros, e convictos de que havia muitas iniciativas de incentivo à leitura dentro e fora do país feitas pela própria população, eles perceberam que faltava uma voz na mídia para divulgá-las:

"Vimos que essas ações cobriam uma boa parte do Brasil e resolvemos mostrar isso graficamente ao colocar todas as ações em um mapa, para reforçar esta ideia de que os brasileiros gostam de ler quando lhes é dada a oportunidade e de que existem pessoas que acreditam nos livros livres como agentes de mudança nas mais diversas comunidades. Com esse apoio visual, fica mais fácil para os próprios projetos de incentivo à leitura criarem uma rede de contatos para se ajudarem e trocarem experiências. As bibliotecas que mais nos interessam são as bibliotecas comunitárias, bibliotecas livres, minibibliotecas ou bibliotecas públicas que são atuantes e preocupadas em trazer os leitores para seu interior e despertar neles o gosto pela leitura".

quarta-feira, fevereiro 18

O livro e a mediocridade


Máscaras

Aubrey Beardsley (1872-1898) para a série “Pierrot’s Library” ("A biblioteca de Pierrô")
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morreríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! Não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo, eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Clarice Lispector

terça-feira, fevereiro 17

O amante

 
Deitada em minha rede com o livro sobre meu colo em êxtase puríssimo...não sou mais aquela menina  com seu livro, mas uma mulher com seu amante..!!
Clarice Lispector