sexta-feira, fevereiro 28

Réquiem para o futuro


 

Quando tens de agir

O passado permite-te só criticar, porque não tens responsabilidade nenhuma. É nesse sentido que falo na redenção: o de ter presente que pode ser diferente. Pode parecer lírico, mas é muito sincero: o objetivo da minha vida é mesmo causar o mínimo de sofrimento possível. E não é só na questão dos animais. Mas isso implica uma atenção chata, um desprazer. E por muito que chateie a minha vida e a dos que estão comigo, agradeço não ter essa indiferença. Porque é acima de tudo a indiferença que permitiu todos os crimes com os quais toda a gente se indigna. É o "estamos aqui na nossa vida, temos a nossa casinha, o pãozinho, olha os comboios a passar, que é que levam lá dentro...."

Olha, há uns que se afogaram, pois é, coitadinhos, vamos lá para a nossa sopinha. Não podes escolher a indiferença. Dizer "vou ver isto e não vou ver aquilo". Ou vês ou não vês.
Dulce Maria Cardoso

Auto-retrato


É um fulano digamos que intratável, não porque trate mal a gente, pelo contrário, mas por nos deixar sempre hesitantes sobre por onde lhe pegar. Das várias actividades a que sempre se dedicou, qual é a principal? Como julgar as suas contradições, que acabam por se revelar confirmações?

Diz-se indiferente ao que os outros pensem dele, mas sentimo-lo infeliz quando o acham, por exemplo, intransigente ou passam pelo que fez e faz como cães por vinha vindimada. Chega a sofrer com isso, o pobre, não tanto por vaidade ferida como porque, então, talvez não tivesse valido a pena. A velha ideia fixa da utilidade, do dever. Uma seca. Contudo, só muito lá por dentro.
Meão de altura, como o outro, de cabelo mais escasso do que quem quer gostaria de ter, prognatismo muito acentuado, talvez pelo uso do cachimbo a toda a hora durante anos, é afinal um sujeito bem menos austero do que os que o conhecem mal geralmente supõem. Por baixo daquela exigência toda de rigor e de coerência (perante tudo e to­dos, a começar por si próprio), uma criança espreita.

Daí decerto o tal vício maior de gostar de brincar com o lume, ou seja, uma actividade permanente em desafio a si próprio e em senti­dos diferentes, com a mesma paixão ou teimosia: professor (44 anos!), militante político, que continuou a ser, mesmo depois de, por discordâncias de metodologia, se ver ou julgar sozinho, ensaísta de pendor polemizante, ficcionista, poeta – antes e depois de tudo, melhor: em tudo – pintor, agora a tempo inteiro.

Tinetazinha incurável: um desejo de per­feccionismo quase doentio. Escreveu sempre cada página dezenas de vezes, pintou e repin­tou cada uma das suas telas até à saturação. Além das que destruiu, uma montanha. É um chato em certas coisas: come porque tem de ser e só bebe água, detesta demorar-se à mesa, gostando de conviver, lamenta-se de que haja tão pouca gente com que (lhe) valha a pena fazê-lo.

Os historiadores da cultura do futuro (que os de agora estão próximos de mais) terão algumas surpresas – veleidade dele - com uma ou outra coisa que disse ou fez antes de ninguém, muito particularmente na concepção e prática do neo-realismo (um bradar no deserto!), que ajudou a fundar e defendeu até lhe parecer possível e ainda útil fazê-lo. Ag­ora foge quanto pode a refalar no assunto. O repisar enerva-o.

Bibliografia activa, resumida­mente: entre muitos escritos, palestras, entrevistas dês carácter ensaístico, «A Paleta e o Mundo», que teve o Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escri­tores no ano da publicação do último volume (1962); cinco livros de poesia, desde 1941, in­cluídos no volume «Poesia Incompleta» (1966), a que se tem de acrescentar «Le Feu qui Dort» (1967) e «Terceira Idade» (1982), prémio ex-aequo, da Associação Internacional dos Críti­cos; Literários; três livros de contos: «O Dia Cinzento» (1944), reescrito e reeditado, a partir de 1967, com o título de «O Dia Cinzento e Outros Contos», «Monólogo a Duas Vozes» (1988), um romance: «Não há Morte nem Princípio» (1969); uma pequena «Autobiografia» (1987).

Viajou pela Europa, teve duas ou três doenças graves, morrerá breve ou daqui a muitos anos. A propósito da sua primeira exposição individual de pintura aos 73 anos, terminou uma entrevista na TV desta maneira: «Aos cem anos aqui estarei de novo».

Todavia, de há tempos para cá, começou a dizer-se velho, sobrevivente, etc., porque não consegue fazer tanto quanto quer, passou a detestar deslocar-se e escabuja com a invasão da literatura pelo marketing.

Não perdoa o festim. Que com coisas sérias não se brinca e outros propósitos desactualizados. Mas a tal criança ri-se e lá o vai puxando alegremente.

No catálogo da sua exposição na Nasoni (Out./Nov. de 1989), escreveu isto: «Vou caminhando sem destino e sem repouso. Gostando sempre pouco do que pinto, precisando sempre muito de pintar. Assim foi, certamente assim será. Não ambiciono mais».

Resta saber se sim. O mais prudente é esperar.
Mário Dionísio

A sesta

Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme, espreita também de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar. Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir. E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos. E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.

Almada Negreiros

O enfermeiro

Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860 pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.

Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada.
Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.

Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu 42 anos, fiz-me teólogo — quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronel Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.

Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.

Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos!

— Você é gatuno?

— Não, senhor.

Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? Achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor ideia ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua de mel de sete dias.

No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.

Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.

— Estou na dependura, Procópio — dizia-me ele à noite —, não posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for — acrescentou rindo —, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo, Procópio?

— Qual o quê!

— E por que é que não há de crer, seu burro? — redarguiu vivamente, arregalando os olhos.

Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando.

Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por tornar à corte. Aos 42 anos não é que havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.

Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.

Vai ver o que aconteceu. Na noite de 24 de agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o prato foi cair na parede, onde se fez em pedaços.

— Hás de pagá-lo, ladrão! — bradou ele.

Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.

Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!

Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer cousa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa, na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. — “Maldita a hora em que aceitei semelhante cousa!” — exclamava. E descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.

Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranquila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra cousa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro, espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.

Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: “Caim, que fizeste de teu irmão?” Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.

A primeira ideia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:

— Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.

Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...

— Deixa lá o outro que morreu — diziam-me. — Não é caso para tanta melancolia.

E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E, elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: “Deus lhe fale n’alma!” E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...

Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.

— Quanto tinha ele? — perguntava-me meu irmão.

— Não sei, mas era rico.

— Realmente, provou que era teu amigo.

— Era... Era...

Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas.

Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime...

Crime ou luta? Realmente, foi uma luta em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa ideia. E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixei-me também nessa ideia...

Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei-me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.

— Sem dúvida — dizia eu olhando para outra parte.

Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí advogado; as cousas correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero...

— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.

E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma cousa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma cousa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando.

As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a ideia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o plano primitivo; distribuí alguma cousa aos pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia etc.: ao todo 32 contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai.

Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...

Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma cousa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: “Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados.”
Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 13 de julho de 1884

quinta-feira, fevereiro 27

Companheiros de leitura

 


O amor da velhice

O amor dos dois surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência. Riam, passeavam pela praça, comiam pipoca e faziam planos para quando se casassem.

Naquele tempo, antes dos progressos da ciência, grassava uma praga mortífera chamada tuberculose, que atacava os pulmões. Para ela não havia remédio a não ser comida, repouso e ar puro. De resto, era o próprio corpo que tinha de se curar. Pois ela, a tuberculose, invejosa da felicidade dos dois jovens, alojou-se nos pulmões do moço. Ele teve de deixar a cidade e a namorada em busca de ar puro, no alto das montanhas, num sanatório, tal como Thomas Mann descreveu no livro A montanha mágica.

Quem ia para tais lugares de cura se despedia com um “adeus” e um olhar de “nunca mais”. Na melhor das hipóteses, muitos anos haveriam de passar.

Anos se passaram, o tempo se arrastava, a espera se alongou. E, quando a espera é muito longa, os sentimentos se enfraquecem. Os pais, preocupados com o futuro incerto da filha e movidos pela prudência, convenceram-na a levar a vida, a parar de esperar.

E aconteceu com a jovem o que aconteceu com Fermina Daza, que de longe e às escondidas namorava Florentino Ariza, na estória de Gabriel García Márquez O amor nos tempos do cólera. Fermina foi obrigada pelos pais a trocar o modesto escriturário Florentino, que ela amava, pelo sólido doutor Urbino, portador de futuros, que ela não amava.

A mocinha prudente se casou. O namorado doente se casou. E por mais de cinquenta anos não se viram. Quando ele tinha 76 anos, ficou viúvo. Quando ela tinha 76 e ele 79, ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele, o amor da sua juventude, estava vivo. A curiosidade e a saudade foram fortes demais. Ela não resistiu. Foi à sua procura. Encontraram-se. E, de repente, eram de novo namorados adolescentes apaixonados. Resolveram se casar. Os filhos protestaram. Os filhos, todos eles, não suportam a ideia de que os velhos também amem. Especialmente se forem seus pais...

Mas os dois velhos, já no fim da vida, sabendo que o tempo de amor que lhes restava era curto, não deram ouvidos aos filhos – casaram-se e mudaram-se para uma cidade do interior.

Viveram um ano de amor intenso, que provocou metamorfoses: ele se descobriu poeta, começou a escrever poesia. Além disso, tirou seu violino de cima do guarda-roupa, onde ficara por muitos anos porque a sua primeira mulher não gostava da música do instrumento, e passou a fazer parte da orquestra da cidade. Confessou a um sobrinho:

– Se Deus me der dois anos com esta mulher, minha vida terá valido a pena…

Bem que Deus se esforçou. Mas o corpo já estava cansado. Morreu de amor, como temia o Vinícius. Achei essa história tão comovente que a transformei num texto.
Passaram-se semanas da sua publicação. Eram dez horas da noite. Eu trabalhava no meu escritório. O telefone tocou. Voz aveludada de mulher do outro lado.

– É o professor Rubem Alves?

– Sim — respondi.

– Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu, com o título “E os velhos se apaixonarão de novo...”. O senhor já deve ter adivinhado quem está falando...

– Não, não adivinhei — respondi. Aí ela se revelou:

– Sou a viúva.

Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de quarenta minutos, interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que os dedos dele já estivessem duros demais...

Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível. Sim, sim! Nem os violinos ficam velhos demais nem os dedos ficam impotentes para produzir música! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo, chorando — tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia... Ao terminar, ela fez esta confissão comovente:

– Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com as coisas do sexo. Nós vivíamos de ternura!

O que me fez lembrar da observação de Kundera sobre a necessidade de “salvar o amor da tolice da sexualidade”. A sexualidade pertence à ordem da biologia, o que nos aproxima dos animais. Mas o amor pertence à ordem da poesia. Abelardo e Heloísa se amaram até a morte.
Rubem Alves, "Cantos do Pássaro Encantado"

A camponesa, a égua e o cavaleiro

Num mês de Agosto tão quente que até derretia os pássaros, com excepção dos mais espertos que se metiam nos galhos das árvores mais frondosas em busca de um pouco de frescura, saía da sua choupana uma bela camponesa para tratar do campo que lhe estava destinado. Mal saiu, logo a assaltou o calor, desfazendo-lhe o cabelo que se soltava sobre os ombros, e abrasando-lhe o ânimo de tal modo que, em vez de se dirigir à sua terra, desviou-se para a margem do rio que, naquele período, corria com calma, desafiando os mais incautos a um banho que os refrescasse. Vendo que não havia ninguém por perto, e posta a roupa de lado, meteu-se a camponesa na água e, em breve, nadava em grandes braçadas, procurando o meio do rio onde melhor podia dar largas ao seu desejo de exercício.

Ora, ao mesmo tempo que a camponesa tomava o seu banho, vinha um cavaleiro pela outra margem, puxando a sua égua pela arreata, com o que nem um nem outro se cansavam inutilmente, a égua liberta da sua carga, e o cavaleiro aproveitando o pouco de sombra que a companhia da égua lhe ia dando. Chegando ao lugar em que o rio mais se alargava, a mesma ideia que tivera a camponesa tomou conta dele; e se bem o pensou melhor o fez, despindo o gibão e metendo-se pela água dentro. Acontece porém que, ao contrário da camponesa, não sabia nadar o pobre do cavaleiro; e logo, perdendo o pé, viu chegar o fim dos seus dias, com o que começou a gritar à sua égua:

- Ouve, Rocina, não deixes que o teu senhor se afunde neste charco, com o que o mundo irá perder um cavaleiro sem igual, e tu o melhor dos donos que alguma vez tiveste!

Na sua margem, ouvindo isto, a égua viu chegada a sua oportunidade de melhor vida e, sem perder tempo, pôs-se às de vila Diogo, como é timbre das éguas nobres, esperando encontrar outro senhor que a esporeasse, levando-a para novas guerras. Na aflição de se afundar, entretanto, o senhor nem deu por nada, e ainda menos por que uns braços mais ágeis no domínio das fortes correntes o seguravam, já meio desfalecido, puxando-o para a margem oposta. Como certamente adivinharam, pertenciam à camponesa esses braços salvadores; e foi neles que acordou o cavaleiro que, vindo de outro país, não entendia a língua da moça, tanto que, sem se lembrar do motivo que o fazia acordar em tão aconchegado porto, pela muita água que bebera, lhe perguntou quem era; e ela, respondendo-lhe na sua língua, mais ainda lhe confundiu o pensamento, de tal modo que, olhando à sua volta, com arbustos e flores que ressaltavam do esplendor do estio, e vendo-se a si e à sua salvadora nos trajes naturais, entendeu que tinha passado de mundo e acedera ao próprio paraíso terrestre.

- Eva: aqui se cumpre, então, o destino mais alto a que um homem pode aspirar; e vejo que Deus me recompensou pelos muitos trabalhos que levei, oferecendo-me tão belo galardão em troco do muito que passei, com a minha Rocina, destroçando infiéis que o punham em causa, e erguendo templos para sua adoração!

A moça, que não percebeu uma palavra do que o cavaleiro dizia, no seu delírio místico, apenas deu conta que se tratava de um belo homem, apesar de uma magreza própria dos muitos trabalhos por que passara; mas, atenta ao seu pudor, correu para trás dos arbustos onde guardara a sua roupa e, sem perder tempo, vestiu-se e fugiu para o campo onde as companheiras de trabalho já esperavam e desesperavam pela sua ajuda, deixando o cavaleiro deitado, na ilusão de que ela regressaria.

Assim se passaram minutos, se passou uma hora, e como o cavaleiro não a visse voltar, resolveu ele tomar a iniciativa e avançar até ao lugar por onde a vira partir, e para lá do qual viu abrir-se uma tão bela paisagem, que o fez convencer-se mais ainda de que era no paraíso que se encontrava. E como, no paraíso, nem os anjos nem as almas andam vestidos, nem lhe passou pela cabeça que teria de se cobrir, avançando em feliz levitação pelo chão de erva, mas conduzido por uma providência que o encaminhou até onde as camponesas, reunidas, iam trabalhando os canteiros que esperavam a sementeira próxima. Entretidas neste trabalho, só quando ele chegou junto delas se aperceberam do estado em que vinha; e, gritando, todas se afastaram, mesmo a que o salvara e que, para não se denunciar, seguiu as amigas. Ele, no entanto, reconhecendo a sua Eva, chamou-a:

- Por que me foges, senhora Eva, levando atrás de ti os formosos anjos do Paraíso terreal? Não vês que te procuro neste oásis de verdura, para que ambos realizemos a vontade divina que manda ao homem que cresça e se reproduza?

Com efeito, manifestava já o adâmico candidato os atributos do seu voto, o que mais ainda fazia fugir as camponesas que, no entanto, vendo o ridículo da situação, se iam rindo por entre os intervalos da sua fuga. Mais ria, porém, a causadora de todo aquele equivoco, sobretudo porque se lembrava do seu discurso eloquente, ao sair da água, e da incoerência dele com a figura descomposta de quem o proferia; e tão alto riu que ele, atentando em si, as deixou afastarem-se, enquanto dizia:

- Que ouço? Não é de anjo nem de Eva este som; mais me lembra a minha Rocina que, também ela, em horas mais ternas, me produz estes sons. Por isso não entendo eu palavra do que ela me diz! Então foste tu, Deus, que à minha montada restituíste a forma humana, para que de modo mais estreito ainda possa eu prosseguir a minha caminhada pelo mundo com tão querida companhia! Agradeço-te, Senhor, e não irei perder mais tempo com tão inocentes distracções.

Se bem o pensou, melhor o fez, correndo com toda a força das suas pernas em direcção à camponesa que tomava pela sua Rocina; e, chegando junto dela, saltou às suas cavalitas, gritando:

- Eia, minha Rocina! Leva-me para longe deste enganador Paraíso, onde pensei chegada a minha hora derradeira, e voltemos ao rumo da aventura, onde muitos trabalhos nos esperam ainda!

Vendo o homem às suas costas, nem a moça queria acreditar no que lhe sucedia, nem as companheiras entendiam outra coisa que não fosse a pior das intenções por parte de tão atrevido fauno. Do riso passaram então ao grito espavorido, com que ao lugar acorreram outros camponeses, e moços de varapau, que rodearam o cavaleiro e a sua desorientada salvadora, que desta vez nada pôde fazer por ele enquanto os aldeãos, deitando-o por terra, o deixaram moído de tareia, e como morto, após o que todos regressaram a casa.

Acordou o cavaleiro do seu desmaio era já noite avançada. No ermo, onde não se ouvia vivalma, outro que não ele se teria assustado, muito embora o estado dolorido em que tinha regressado a este mundo nem lhe desse oportunidade de pensar em coisas do outro, não fosse o caso de ouvir um resfolegar brusco mesmo sobre o seu rosto. Refeito do susto, levou a mão à origem do ruído, dando com o focinho de Rocina que, cumprido um dia de louca correria em liberdade, que a fizera dar a volta à nascente do rio, acabou por voltar ao seu dono que, na escuridão, a confundiu com a sua Eva:

- Oh meu amor, sabia que não me irias deixar, depois deste assalto em que os infiéis me deixaram como vencido; e quero ir contigo a tirar a desforra do assalto!

No entanto, tacteando com mais vagar, no escuro, foi descobrindo com a mão que era focinho de equídeo e não feminino rosto o que sobre ele se debruçava; e mais deu por um corpo coberto de pêlo, e longas patas ferradas, em nada condizentes com a memória que Eva lhe deixara. Então, voltou a dirigir-se ao Ente supremo com desconsoladas palavras:

- Oh Senhor, por que voltaste a dar à minha Eva a forma de Rocina? Que pecado foi o meu, que me roubaste do paraíso e me voltaste a pôr no exílio terreno, onde terei de retomar os meus caminhos em demanda de provas e desafios, de que estou cansado, como se não tivesse já provado o meu valor com tantas vitórias sobre os mais ferozes inimigos?

Pôs-se então a pensar, enquanto andava, ainda combalido da pancada; e não andou muito que não chegasse novamente ao pé do rio, já a madrugada despontava. Ali, encontrou a solução para o seu problema.

- Ouve, Rocina: a única maneira de resolver isto, fazendo regressar o teu corpo de cavalo à figura angélica da minha Eva, é voltar a atirar-me à água para que, passado este Letes, tu me venhas salvar de novo!

E assim se voltou o cavaleiro a atirar ao fundão, de onde não mais saiu, sem que Rocina percebesse por que é que, pela segunda vez, ele a obrigava a dar a volta à nascente do rio, e mais ainda por que razão, desta vez, ninguém a esperava do outro lado.
Nuno Júdice

Súplica por uma árvore

Um dia, um professor comovido falava-me de árvores. Seu avô conhecera Andersen, esse pequeno deus que encantou para sempre a infância, todas as infâncias, com suas maravilhosas historias. Mas, além de conhecer Andersen, o avô desse comovido professor legara a seus descendentes uma recordação extremamente terna: ao sentir que se aproximava o fim de sua vida, pediu que o transportassem aos lugares amados, onde brincara em menino, para abraçar e beijar as árvores daquele mundo antigo – mundo de sonho, pureza, poesia – povoado de crianças, ramos, flores, pássaros... O professor comovido transportava-se a esse tempo de ternura, pensava nesse avô tão sensível, e continuava a participar, com ele, dessa cordialidade geral, desse agradecido amor à Natureza que, em silêncio, nos rodeia com a sua proteção, mesmo obscura e enigmática.

Lembrei-me de tudo isso ao contemplar uma árvore que não conheço, e cujo tronco há quinze dias se encontra ferido, lascado pelo choque de um táxi desgovernado. Segundo os técnicos, se não for socorrida, essa árvore deverá morrer dentro em breve: pois a pancada que a atingiu afetou-a na profundidade de sua vida.

Cecília Meireles, "O que se diz e o que se entende"

Uma fábula chatinha


Sentado à beira do caminho, o homem cansado ficou quieto, espiando a vida que passava.

Era uma vez um homem cansado que ia indo por um caminho. Tinha passado do meio-dia, a tarde estava ficando muito quente. No ar azul e claro não soprava nenhum vento. O homem procurou a sombra de uma árvore, sentou e ficou ali, quieto.
Até que passou um surfista. Ia de moto, sem camisa, a bermuda colorida, a prancha amarrada na garupa da moto. Abanou para o homem sentado, mas ele não se mexeu.

“Coitado” — pensou o homem. — “Vai indo assim todo animado. Parece que não sabe que vai morrer um dia.”

Remexeu a areia com um pedacinho de pau, mas sem prestar atenção. Então passou uma velhinha que parecia saída de um livro de histórias infantis. Usava um vestido escuro, comprido, e carregava no ombro uma dessas latas de metal, cheia de leite. Caminhava muito depressa.

“Coitada” — pensou o homem. — “Velha desse jeito, pra que tanta pressa? A morte vai chegar logo — e aí?”

Acendeu um cigarro, ficou soltando anéis de fumaça contra o céu cada vez mais azul. Aí passaram duas moças de braço dado. Parecia que recém-tinham tomado banho, tão fresquinhas estavam. Os cabelos ainda molhados brilhavam ao sol. Cochichavam e riam muito, olhando o homem sentado, que nem olhava para elas.
“Coitadas” — o homem pensou. — “Tão assanhadinhas. Ah, se elas soubessem que a morte existe e pode chegar a qualquer momento…”

Ficou um rastro de perfume no ar, mas ele nem respirou mais fundo nem nada. De repente um passarinho começou a cantar, no galho bem acima dele. Ouviu um pouco, depois cuspiu de lado.

“Coitado” — o homem pensou. — “Esse idiotinha fica cantando à toa, de repente vem um moleque, joga uma pedra e pronto, acabou.”

Estendeu as pernas, mas logo as recolheu assustado. De longe, vinha um barulho forte como o de um exército em marcha. O homem fixou bem os olhos na curva da estrada. Até que apontou um elefante lá longe. Depois vieram tigres, macacos, camelos, mágicos, equilibristas: era um circo passando. Os palhaços fizeram micagens especiais para ele, mas o homem não deu atenção. A bailarina, equilibrada num pé só sobre o pônei branco, jogou uma rosa vermelha de tule a seus pés, mas ele não apanhou.

“Coitados” — pensou o homem. — “Quanta ilusão. Um dia o circo pega fogo, a morte chega e de que serviu essa alegria toda?”

Com a ponta do pé, empurrou para longe a rosa vermelha. Nesse momento, ia passando um casal de namorados. O rapaz pegou a rosa, sacudiu para afastar a poeira, depois colocou-a nos cabelos da moça. Ela sorriu, e agradeceu com um beijo. Ele respondeu com outro, ela com outro — e assim foram indo, aos beijos, até sumirem.

“Coitados” — pensou o homem. — “Amor, amor: não tem besteira maior. Casam, têm filhos, ficam velhos, doentes. Um dia morrem e pronto.”

A tarde quase já tinha virado noite, quando um vulto encapuzado veio se aproximando. Ele precisou apertar os olhos para ver melhor. Mesmo assim, não via direito a cara do vulto que se aproximava cada vez mais, até parar bem na frente dele.

— Quem é você? — o homem perguntou.

A figura afastou o capuz, mostrou os dentes arreganhados e disse:

— Sou a Morte. Posso sentar ao seu lado?

O homem deu um pulo.

— Não — ele disse. — Já está ficando tarde e eu ainda tenho muito o que fazer.

Virou as costas e saiu correndo, sem olhar para trás.
Caio Fernando Abreu, "Pequenas epifanias"

terça-feira, fevereiro 25

Floresta encantada

 


Um fugaz sinal

Foi na passagem dos dias do mês de Tamuz para o mês de Av, quando se colhiam as uvas nos vinhedos e os primeiros figos maduros começavam a pintar entre a sombra verde das ásperas parras, que estes acontecimentos se deram, uns correntes e habituais, como ter-se chegado carnalmente um homem a sua mulher e passado o tempo dizer-lhe ela a ele, Estou grávida de ti, outros em verdade extraordinários, como caberem as primícias do anúncio a um mendigo em trânsito que, com toda a razoabilidade, nada deveria ter com o caso, sendo apenas autor do até agora inexplicado prodígio da terra luminosa, posta fora de alcance e investigação pela desconfiança de José e a prudência dos anciãos. Vão chegar aí os grandes calores, os campos estão pelados, só restolho e secura, Nazaré é uma aldeia parda rodeada de silêncio e solidão nas sufocantes horas do dia, à espera de que venha a noite estrelada para poder ouvir-se o respirar da paisagem oculta pela escuridão e a música que fazem as esferas celestes ao deslizarem umas sobre as outras. Depois da ceia, José ia sentar-se no pátio, do lado direito da porta, a tomar ar, gostava de sentir soprar-lhe na cara e nas barbas a primeira aragem refrescante do crepúsculo. Quando já se pusera de todo escuro, Maria vinha também e sentava-se no chão, como o marido, mas do outro lado da porta, e ali ficavam os dois, sem falar, ouvindo os rumores da casa dos vizinhos, a vida das famílias, que eles ainda não eram, faltando os filhos, Praza ao Senhor que seja um rapaz, pensava José algumas vezes ao longo do dia, e Maria pensava, Praza ao Senhor que seja um rapaz, mas as razões por que o pensava não eram as mesmas. A barriga de Maria crescia sem pressa, tiveram de passar-se semanas e meses antes que se percebesse às claras o seu estado, e, não sendo ela de dar-se muito com as vizinhas, por tão modesta e discreta ser, a surpresa foi geral nas redondezas, como se ela tivesse aparecido de balão da noite para o dia. Porventura o silêncio de Maria tinha uma outra e mais secreta razão, a de que nunca, por nunca ser, pudesse vir a estabelecer-se uma relação entre a sua gravidez e a passagem do mendigo misterioso, precaução esta que só deveria parecer-nos absurda, sabendo como as coisas se passaram, se não se desse o caso de, em horas de afrouxamento do corpo e livre devaneio do espírito, ter Maria chegado a perguntar-se, mas porquê, Deus Santo, ao mesmo tempo aterrada pela insensatez da dúvida e alterada por um estremecimento íntimo, sobre quem seria, real e verdadeiro, o pai da criança que dentro de si se está formando. É sabido que as mulheres, quando no seu estado interessante, são atreitas a entojos e fantasias, às vezes bem piores do que esta, que manteremos em segredo para que não caia mancha na boa fama da futura mãe.

O tempo foi passando, um lento mês seguindo-se a outro, o de Elul, ardente como uma fornalha, com o vento dos desertos do sul varrendo e queimando os ares, época em que as tâmaras e os figos se tornam em pingos de mel, o de Tishri, quando as primeiras chuvas do outono amaciam a terra e chamam os arados à lavra para as semeaduras, e foi no mês seguinte, o de Marhesvan, tempo da apanha da azeitona, que finalmente, arrefecendo já os dias, José se resolveu a carpinteirar um rústico catre, que para cama digna desse nome já sabemos que não lhe chega a ciência, onde Maria, depois de esperar tanto, pôde descansar o pesado e incómodo ventre. Nos últimos dias do mês de Quislau e quase todo o mês de Tavet caíram as grandes chuvas, por isso teve José de interromper o trabalho no pátio, apenas aproveitava as breves abertas em se tratando de peças de grande tamanho, o mais comum era estar dentro de casa, a jeito de receber a claridade que vinha da porta, e aí raspava e alisava os jugos que deixara em tosco, cobrindo o chão à sua volta de aparas e serradura que Maria depois vinha varrer e lançar ao pátio.

No mês de Shevat floriram as amendoeiras, e entrara-se já no mês de Adar, depois das festas do Purim, quando apareceram em Nazaré uns soldados romanos, dos que então andavam por Galileia, de povoado em cidade, de cidade em povoado, e outros pelas mais partes do reino de Herodes, fazendo saber às populações que, por ordem de César Augusto, todas as famílias que tivessem o seu domicílio nas províncias governadas pelo cônsul Públio Sulpício Quirino estavam obrigadas a recensear-se e que o recenseamento, destinado, como outros, a pôr em dia o cadastro dos contribuintes de Roma, teria de ser feito, sem excepção, nos lugares donde essas famílias fossem originárias. À maior parte da gente que se tinha juntado na praça para ouvir o pregão, de pouco se lhe dava o aviso imperial, pois que, sendo naturais de Nazaré e lá fixados desde gerações, aqui mesmo se recenseariam. Porém, alguns, que tinham vindo das distintas regiões do reino, de Gaulanitide ou Samaria, de Judeia, Pereia ou Idumeia, de aquém e de além, de perto e de longe, logo começaram a deitar contas à vida e à viagem, uns com os outros murmurando contra os caprichos e a cobiça de Roma, e falando do transtorno que ia ser a falta de braços, agora que chegava o tempo de ceifar o linho e a cevada. E os que tinham famílias numerosas, com filhos na primeira idade ou pais e avós caducos, se não tinham transporte próprio bastante, pensavam já a quem poderiam pedir emprestado ou alugar por preço justo o burro ou os burros necessários, sobretudo se a viagem ia ser longa e trabalhosa, com mantimentos suficientes para o caminho, odres de água se tinham de atravessar o deserto, esteiras e mantas para dormir, vasilhas para a comida, algum abrigo suplementar, pois as chuvas e o frio ainda não se foram de todo e alguma vez será preciso dormir ao ar livre.

José veio a saber do édito mais tarde, quando já os soldados tinham partido a levar a boa nova a outras paragens, foi um vizinho da casa ao lado, Ananias chamado, quem apareceu em alvoroço a dar-lhe a notícia. Este era dos que não tinham de ir de Nazaré ao recenseamento, de boa se livrara, e porque, havendo decidido que, por causa das colheitas, este ano não iria a Jerusalém, à celebração da Páscoa, se de uma viagem se tinha desobrigado, outra não o obrigava. Vai pois Ananias informar o seu vizinho, como é de dever, e vai contente, embora pareça que exagere algum tanto na expressão do rosto as demonstrações desse sentimento, queira Deus não seja porser portador duma notícia desagradável, que mesmo as melhores pessoas estão sujeitas às piores contradições, e a este Ananias não o conhecemos bastante para saber se, neste caso, se trata de reincidência num comportamento habitual ou acontece por tentação maligna de um anjo de Satã que na altura não tivesse nada mais importante que fazer. E foi assim que veio Ananias bater à cancela e chamou José, que primeiro não ouviu por estar manejando ruidosamente martelo e pregos. Maria, sim, tinha um ouvido mais fino, mas era ao marido que reclamavam, como iria ela puxar-lhe pela manga da túnica e dizer, Estás surdo, não ouves que te estão a chamar. Gritou mais alto Ananias, e então suspendeu-se o bate-que-bate, e veio José saber o que lhe queria o vizinho. Entrou Ananias, e tendo despachado as saudações, perguntou, em tom de quem quer certificar-se, Tu donde és, José, e José, sem saber que era o que lhe queriam, respondeu, Sou de Belém de Judeia, Que está perto de Jerusalém, Sim, bem perto, E vais a Jerusalém a celebrar a Páscoa, vais, perguntou Ananias, e José respondeu, Não, este ano resolvi não ir, que está minha mulher no fim do tempo, Ah, E tu, por que queres sabê-lo. Foi aí que Ananias alçou os braços ao céu, ao mesmo tempo que punha uma cara de lástima inconsolável, Ai coitado de ti, que trabalhos te esperam, que canseira, que fadiga imerecida, aqui entregue aos deveres do teu ofício e agora vais ter de largar tudo e ir por esses caminhos, e tão longe, louvado seja o Senhor que tudo reconhece e remedeia. Não quis José ficar atrás em demonstrações de piedade, e, sem indagar ainda das causas da lamúria do vizinho, disse, O Senhor, querendo, me remediará a mim também, e Ananias, sem baixar a voz, Sim, ao Senhor nada é impossível, tudo conhece e tudo alcança, assim na terra como nos céus, louvado seja Ele por toda a eternidade, mas neste caso de agora, que Ele me perdoe, não sei se te poderá valer, que estás em poder de César, Que queres dizer, Que aí vieram uns soldados romanos passando aviso de que até ao último dia do mês de Nisan todas as famílias de Israel terão de ir recensear-se aos seus lugares de origem, e tu, coitado, que és lá de tão longe.

Ora, antes que José tivesse tempo de responder, entrou no pátio a mulher de Ananias, que ela se chamava Chua, e, indo direita a Maria, expectante na soleira da porta, carpiu como o marido, Ai pobre, pobre, ai delicada, que será de ti, tão perto de dares à luz, e terás de ir não sei aonde, A Belém de Judeia, informou o marido, Ui, que longe isso está, exclamou Chua, e não era um falar por falar, pois em uma das vezes que fora em peregrinação a Jerusalém descera até Belém, ali ao lado, para orar diante do túmulo de Raquel. Maria não respondeu, esperava que falasse antes o marido, mas José estava enfadado, uma notícia de tal importância deveria ter sido comunicada por ele, à mulher, em primeira mão, usando as palavras adequadas e sobretudo o tom justo, não desta maneira descabelada, os vizinhos a entrarem-lhe pela casa dentro, aos gritos. Para disfarçar a contrariedade deu ao rosto uma expressão de composta sisudez e disse, É certo que Deus nem sempre quer poder o que pode César, mas César nada pode onde só Deus pode. Fez uma pausa, como se necessitasse penetrar-se do sentido profundo das palavras que pronunciara, e acrescentou, Celebrarei a Páscoa em casa, como já tinha decidido, e irei a Belém, uma vez que assim terá de ser, e se o Senhor o permite estaremos de volta a tempo de Maria dar à luz em casa, mas se, pelo contrário, o não quiser o Senhor, então o meu filho nascerá na terra dos seus antepassados, Se não tiver de nascer no caminho, murmurou Chua, porém não tão baixo que a não ouvisse José, que disse, Muitos foram os filhos de Israel que nasceram no caminho, o meu será mais um. A sentença era de peso, irrefutável, e como tal a receberam Ananias e a mulher, de repente sem palavras. Tinham ido ali para confortar os vizinhos pela contrariedade duma viagem forçada e comprazer-se na sua própria bondade, e agora parecia-lhes que estavam sendo postos na rua, sem cerimónia, foi nesta altura que Maria veio para Chua e lhe disse que entrasse na casa, que queria pedir-lhe conselho sobre uma lã que ali tinha para cardar, e José, querendo emendar a secura com que havia falado, disse a Ananias, Peço-te, como bom vizinho, que durante a minha ausência veles pela minha casa, que mesmo correndo tudo pelo melhor nunca estarei de volta antes de passado um mês, contando o tempo da viagem, mais os sete dias de isolamento da mulher, ou o que em cima disso tiver de ser se lhe vem a nascer uma filha, que não o permita o Senhor. Respondeu Ananias que sim, ficasse ele descansado, que da casa lhe cuidaria como se sua própria fosse, e perguntou, veio-lhe de repente, não o tinha pensado antes, Quererás tu, José, honrar-me com a tua presença na celebração da Páscoa, reunindo-te aos meus parentes e amigos, pois que não tens família em Nazaré, nem tua mulher a tem também, depois que lhe morreram os pais, tão avançados já em idade quando ela nasceu que ainda hoje as pessoas se andam perguntando como foi possível a Joaquim engendrar em Ana uma filha. Disse José, risonhamente repreensivo, Ó Ananias, lembra-te daquela murmuração de Abraão, entre a boca e as barbas, incrédulo, quando o Senhor lhe anunciou que lhe daria descendência, se poderia uma criança nascer de um homem de cem anos e se uma mulher de noventa anos seria capaz de ter filhos, ora Joaquim e Ana não estavam em tão provecta idade quanto a de Abraão e Sara em aqueles dias, portanto muito mais fácil terá sido a Deus, mas para Ele não há impossíveis, suscitar entre os meus sogros uma vergôntea. Disse o vizinho, Eram outros os tempos, o Senhor manifestava-se em presença todos os dias, não apenas nas suas obras, e José respondeu, forte em razões de doutrina, Deus é o próprio tempo, vizinho Ananias, para Deus o tempo é todo um, e Ananias ficou sem saber que resposta dar, não era agora a altura de trazer ao colóquio a controversa e nunca resolvida polémica acerca dos poderes, tanto os consubstanciais como os delegados, de Deus e de César. Ao contrário do que estariam fazendo parecer estes alardes de teológica prática, José não esquecera o inesperado convite de Ananias para celebrar com ele e os seus a Páscoa, apenas não quisera demonstrar demasiada pressa em aceitar, como logo havia resolvido, bem se sabe que é mostra de cortesia e bom nascimento receber com gratidão os favores que nos fazem, porém sem exageros de contentamento, não vá dar-se o caso de pensar o outro que ficámos à espera de mais. Enfim, agora lho agradecia, louvando-lhe os sentimentos de generosidade e boa vizinhança, ao tempo que vinha saindo Chua da casa, e trazia consigo Maria, a quem dizia, Que boa mão tens para cardar, mulher, e Maria corava muito, como uma donzela, porque a estavam louvando diante do marido.

Uma boa recordação que Maria veio a guardar desta Páscoa tão prometedora foi não ter tido que participar na preparação das comidas e terem-na dispensado de servir os homens. Foi poupada a esses trabalhos pela solidariedade das outras mulheres, Não te canses, que mal podes contigo, foi o que lhe disseram, e deviam sabê-lo bem, que quase todas eram mães de filhos. Limitou-se, ou pouco mais, a atender ao seu marido, que ali estava, sentado no chão como os outros homens, curvando-se finalmente para encher-lhe o copo ou renovar-lhe no prato as rústicas iguarias, o pão ázimo, a febra de cordeiro, as ervas amargas, e também umas certas bolachas feitas de moinha de gafanhotos secos, petisco que Ananias prezava muito por ser de tradição na sua família, mas a que alguns dos convidados torciam o nariz, se bem que envergonhados da mal disfarçada repugância, pois em seu íntimo se reconheciam indignos do exemplo edificante de quantos profetas, no deserto, haviam feito da necessidade virtude e do gafanhoto maná. Para o fim da ceia, já a pobre Maria se havia sentado à parte, com o seu grande ventre pousado sobre a raiz das coxas, banhada em suor, mal ouvindo os risos, os ditos e as histórias, e as contínuas recitações das escrituras, sentindo-se, a cada momento, prestes a abandonar definitivamente o mundo, como se estivesse suspensa de um delgado fio que fosse o seu último pensamento, um puro pensar sem objecto nem palavras, apenas saber que se está pensando e não poder saber em quê e para que fim. Despertou em sobressalto, porque no sono, subitamente, vindo duma treva maior, lhe apareceu o rosto do mendigo, e depois aquele seu grande corpo coberto de farrapos, o anjo, se anjo era, entrara no sonho sem se anunciar, nem sequer por uma fortuita lembrança, e ali estava a olhá-la, com um ar absorto, talvez também uma levíssima expressão de interrogativa curiosidade, ou nem mesmo isso, que o tempo de notá-lo viera e passara, e agora o coração de Maria palpitava como uma ave assustada, e ela não sabia se tivera medo ou se alguém lhe dissera ao ouvido uma inesperada e embaraçosa palavra. Os homens e os rapazes continuavam ali, sentados no chão, e as mulheres, afogueadas, iam e vinham, oferecendo os últimos alimentos, mas já se notavam os sinais da saciedade, só o ruído das conversas, animadas pelo vinho, é que subira de tom.

Maria levantou-se e ninguém reparou nela. A noite fechara-se por completo, a luz das estrelas, no céu limpo e sem lua, parecia produzir uma espécie de ressonância, um zumbido que raiava as fronteiras do inaudível, mas que a mulher de José podia sentir na pele, e também nos ossos, de um modo que não saberia explicar, como uma suave e voluptuosa convulsão que não acabasse de resolver-se. Maria atravessou o pátio e foi olhar para fora. Não viu ninguém. A cancela da sua casa, ao lado, estava cerrada, tal qual a tinha deixado, mas o ar movia-se como se alguém tivesse acabado de passar por ali, a correr, ou voando, para não deixar da sua passagem mais do que um fugaz sinal, que outros não saberiam entender.
José Saramago, "O Evangelho segundo Jesus Cristo"

Possibilidades

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulhas e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão.

Wislawa Szymborska

A hora do diabo

Saíram da estação, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás, para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer ser uma estação de comboios.

Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa. Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro.

— Então? — perguntou ele.

E ela:

— Correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante. — E acrescentou, antes que ele perguntasse — Umas pessoas que estavam lá no baile trouxeram-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou!

E, num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar.

Os seus sonhos adquiriram uma feição estranha, pontuados com coisas inexplicáveis por qualquer experiência que se conheça. Pairou nela o desejo de grandes coisas, como de alguém que um dia foi separado, numa vida antes desta, por sobre todas as idades da terra. E viu-se a deslocar por uma ponte de uma grande altura, de onde se vê todo o mundo. Em baixo, a uma distância mais que impossível, estavam, como astros espalhados, grandes manchas de luz: cidades, sem dúvida, da terra. Uma figura de vermelho apareceu-lhe e apontou-lhas, dizendo:

— São as grandes cidades do mundo. Aquela é Londres — e apontou uma na distância descida — Aquela é Berlim — e apontou para outra. — E aquela, ali, é Paris. São manchas de luz na treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas, incrédulos do mistério e do conhecimento.

— Que coisa tão pavorosa e tão bonita! Mas o que é aquilo tudo ali em baixo?

— Aquilo, minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por incumbência de Deus, tentei o seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já esperava, porque o Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em contacto direto com os Superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em linguagem iniciática, e o Candidato portou-se admiravelmente.

— Não percebo. Foi daqui, realmente, que tentou Cristo?

— Foi. Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma montanha. No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos agora, era o cume. Que bem que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além de Deus. Segui, porque era o meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o com tudo quanto havia. Se tivesse seguido o meu próprio conselho, tê-lo-ia tentado com o que não pode haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força do Destino, supremo arquiteto de todos os mundos, o Deus que criou este, e eu que, porque o nega, o sustenta?

— Mas como é que se pode sustentar uma coisa por a negar?

— É a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se eu não existisse, nada existiria, porque não havia a que opor-se, como a pomba do meu discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor no vácuo.

“A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e nossos.

— Mas, se o mundo é ação, como é que o sonho faz parte do mundo?

— É que o sonho, minha senhora, é uma ação que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?

— Sim, mas é triste o acordar...

— O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não durma. Já uma vez ele mo disse...

Ela olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do fundo de toda a alma que nunca sentira.

— Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?

— Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado.

— Como?

— Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema nem se sobressalte.

E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade.

— Eu sou de fato o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso.

“Dato do princípio do mundo, e desde então tenho sido sempre um ironista. Ora, como deve saber, todos os ironistas são inofensivos, exceto se querem usar da ironia para insinuar qualquer verdade. Ora eu nunca pretendi dizer a verdade a ninguém em parte porque de nada serve, e em parte porque a não conheço. O meu irmão mais velho, Deus todo poderoso, creio que também a não sabe. Isso, porém, são questões de família.”

“Talvez não saiba porque é que a trouxe aqui, nesta viagem sem termo real nem propósito útil. Não foi, como parecia que ia julgar, para a violar ou atrair. Essas coisas sucedem na terra, entre os animais, que incluem os homens, e parece que dão prazer, creio, segundo me dizem de lá de baixo, até às vítimas.”

“De resto, não poderia. Essas coisas acontecem na terra, porque os homens são animais. Na minha posição social no universo são impossíveis não bem porque a moral seja melhor, mas porque nós, os anjos, não temos sexo, e essa é, neste caso pelo menos, a principal garantia. Pode pois estar tranquila porque a não desrespeitarei. Bem sei que há desrespeitos acessórios e inúteis, como os dos romancistas modernos e os da velhice; mas até esses me são negados, porque a minha falta de sexo data desde o princípio das coisas e nunca tive que pensar nisso. Dizem que muitas feiticeiras tiveram pactos comigo, mas é falso; ainda que o não seja, porque o com que tiveram pacto foi com a própria imaginação, que, em certo modo, sou eu.”

“Esteja, pois, tranquila. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas Deus é pior num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível, que é muito menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem. Passam. Antes assim, não é verdade?”

Fernando Pessoa, "A hora do diabo e outros contos"

Uma velha gramática e um bando de memórias

Meu pai me apresentou às delícias de explorar um sebo. Lembrei-me disso, hoje, quando organizando novas prateleiras colocadas neste fim de semana, me encontrei com um livro muito antigo que ele comprou para mim, quando comecei a estudar francês aos dez anos de idade. Num final de tarde, vindo do trabalho, papai me entregou um pacotinho, não muito grande, bem embrulhado em papel pardo, com barbante de algodão de dois fios, verde e branco que se enroscavam um no outro. Muito bem feito, com as rebarbas de papel dobradas em ângulos nas laterais e depois viradas para reforçar as aberturas, o pacote, embalado sem luxo, tinha um pequeno laço no centro, revelando o cuidado do vendedor com a compra. Era um livro. Um livro muito diferente de todos que eu conhecera até então. Antigo. A capa dura, com dorso em tecido vermelho, tinha ao centro a gravura de uma mulher sentada, tal qual deusa da antiguidade, talvez Minerva, ladeada por duas crianças: um menino e uma menina. Em típica estética do início do século XX, a capa também descreve, de uma só vez, em palavras, todo o conteúdo do livro: Curso seguido pela Escola de Paris, inscrito nas listas dos departamentos (estados na França), adotado em todos os países de língua francesa. 800 exercícios 380 ditados e redações, 240 gravuras, publicado pela Librairie Larousse, Paris [1911]. Há outra frase descritiva, mas o tempo já apagou muitos dos caracteres. Era a Grammaire de Claude Augé, volume relativo ao curso mediano. Em seu interior havia, pontuando os exercícios de leitura, gramática e demais pontos de ensino, deliciosas gravuras, quadradinhas, não passando de dois centímetros e meio cada, que ilustravam a lição e me deram muitas vezes asas para imaginação. Fui uma criança e adolescente sonhadora e, sentada à mesa da sala de jantar, fazia os meus exercícios, vagarosamente, sempre com auxílio de um de meus pais. Mas era comum eles, de repente, pararem as explicações, chamando minha atenção para o texto, para o presente, para o que fazíamos, porque aquelas gravurinhas nos cantos, nas bordas das páginas me levavam a outros mundos. Provavelmente, frustrados com meu progresso em casa, aos doze anos entrei para a Aliança Francesa, e por anos seguidos estudei lá, até mesmo depois de casada, quando morei em São Paulo. Porque comecei muito cedo no aprendizado do francês acredito que a familiaridade com a língua tenha me ajudado bastante, de maneira totalmente inesperada, em ocasiões que ficam para serem contadas de outra vez.


Na minha família, naquela época, a língua francesa era a língua estrangeira a se conhecer. Não é que não dessem valor ao inglês. Fui aluna, por poucos anos, da Cultura Inglesa, porque meus pais achavam importante eu ter um mínimo de conhecimento de inglês. Mas eu já era adolescente cheia de rebeldia, largando o inglês assim que pude. A ironia do destino foi que justamente na Cultura Inglesa, do Jardim Botânico, vim a conversar pela primeira vez com o adolescente, que eu já conhecia de vista, porque voltávamos da escola no mesmo transporte público, que mais tarde, poucos anos depois, se tornou meu marido. Nessa época eu ainda não sabia que o destino iria me trazer a obrigação do inglês. O francês continuou como a língua estrangeira mais importante. Quem poderia imaginar que casada, eu iria morar nos Estados Unidos e voltar de lá mais de três décadas depois? Esses certamente não eram os planos quando comecei a aprender francês com minha mãe, em casa. Meu avô materno havia passado algum longo tempo, na Suíça, a trabalho, voltando algumas vezes mais tarde na década de 1950. Sua primeira e longa estadia foi após a Segunda Guerra Mundial. Vovô era um intelectual, advogado, professor e mais tarde, na década de cinquenta tornou-se escritor com uma coluna sindicalizada nos jornais, que aparecia em diversas publicações por todo Brasil. Ele era fluente em francês. Seu diário, de que sou a guardiã, tem observações interessantes sobre diversas épocas de sua vida. Alguma coisa que ele preferia deixar velada, escrevia em francês. Francês era sua língua de escape, ainda que eu não saiba exatamente quando a aprendeu. Por causa de sua estadia na Suíça, tínhamos lá em casa muitos livros com belas fotos daquele país, e eu, uma coleção de bonecas dos diversos cantões suíços.

Esse não foi o único livro de sebo que papai me trouxe de presente. Muitos outros fizeram parte da minha vida de estudante e certamente da minha vida de leitora. A Grammaire de Augé, foi o início de um relacionamento feliz com livros antigos. Um de meus primos, que era afilhado de papai, uma vez me disse que papai sempre lhe dava presentes de aniversário para crianças um pouquinho mais velhas. Ele gostava, mas tinha que se esforçar para apreciá-los. O mesmo acontecia comigo. Tenho certeza de que meu francês aos dez anos não deveria ser do nível para essa gramática, segundo volume de uma série de quatro, do ensino para nativos da França. Mas nem papai, nem mamãe se preocuparam com isso. Aulas particulares de mamãe começaram quase imediatamente após o livro de Claude Augé chegar lá em casa. Foram aulas pequenas, sem grandes exigências, mas hoje, abrindo aqui e ali, vendo minhas anotações, em pedacinhos de papel marcando lugares específicos no livro, me surpreendi com o material que cobrimos.

Procurei por essa gramática na Estante Virtual, site de venda de livros de segunda mão. A gramática ainda existe à venda e há também outros livros novos e antigos esperando por compradores. Depois de uma hora vagando virtualmente pelos sebos do país, comprei alguns livros que irão alegrar minhas leituras este ano. Mesmo assim, ainda prefiro entrar nas poucas lojas de livros usados que conheço aqui na cidade, respirar o ar dos livros antigos, um misto de tabaco, mofo, papel velho e poeira que certamente não são bons para alergias, mas a gente dá um jeito. E gosto de desfrutar do silêncio. Adoro o silêncio que livros trazem a qualquer lugar. Gosto também de sair, depois de ter manuseado uma centena de volumes, com uma sacola com dois, três, cinco livros que eu não sabia, ao entrar, que precisava ler; que só de abri-los se tornam indispensáveis para mim. Hoje, eles vêm para casa em sacos plásticos, quando não em sacola do supermercado reutilizada. Perdemos o encanto de um pacote bem feito, de papel pardo, provavelmente puxado de um rolo grosso preso no tampo do balcão. Papel milimetricamente dobrado e redobrado; pacote finalizado com barbante de algodão, cujo fio desce de um rolo colocado no teto. Aqueles eram livros garbosamente vestidos e respeitados pela importância que poderiam ter em nossas vidas.
Ladyce West

segunda-feira, fevereiro 24

É Verão!


 

Sazonais eternidades

Abres-me, janela,
e antigas memórias
me salpicam o rosto,
chuvas ainda por desabar.

Escancaradas portadas,
devolvem-me o corpo,
esse mesmo corpo
que, para febre e desejo,
em outro corpo acendi.

Abres-me, saudade
e o tempo se descalça
pra atravessar
incandescentes brasas.

e quando,
de novo, me encerras
volto a dormir
como dormem os rios
em véspera de serem água.

A saudade
é o que ficou
do que nunca fomos.
Mia Couto, "Tradutor de chuvas"

Quando vim primeiro para Lisboa ...

Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.

Era eu criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me, de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, minha.

Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cerebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.

Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiza que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidados, as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar lá de cima, saudoso hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.

Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstracta, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem, — di-lo-ia Vieira — literais. É na minha suposição de sentir que me magoo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e sinto.

E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação. São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa queda.

Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar para a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro directamente sensível, na minha pele arrepiada, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso e pessoal da nossa recordação.

E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornasse independente, soam, soam, soam as escalas lá em baixo lá em cima da primeira casa de Lisboa onde vim habitar.
Fernando Pessoa, "Livro do desassossego"

Precisamos falar de Ivan Lessa

Chegaram os 90 anos de Ivan Lessa (1935-2025), aquele que disse “De 15 em 15 anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos”, e como não há nenhum livro preparado para saudar a data, qualquer homenagem ao grande escritor, parece que chegou a vez de o Brasil se esquecer dele – mas eu não.

Tinha humor ácido, cáustico, crítico, debochado (escolham, qualquer adjetivo será frágil para seu sarcasmo, inclusive sarcasmo) e foi autor de frases curtas, duras e grossas sobre o “Bananão”, que era como chamava o Brasil (saiu daqui em 1978 para morar em Londres, entre outros motivos, dizem, por não aguentar mais gente assobiando no elevador). Eu gosto especialmente da frase “Todo brasileiro vivo é um milagre”. Outra: “3 entre 4 políticos não sabem que país é este. O outro pensa que é a Suécia”. Que tal “Vamos deixar para trás esse negócio de sodomia”?

O paulista Ivan Lessa foi uma das estrelas do Pasquim, o jornal de humor que revolucionou a imprensa brasileira a partir de 1969, e em plena ditadura mandou frases como “O militarismo é a greve da inteligência”. Diante dos plásticos de “Ame-o ou deixe-o”, colados nos carros pelos golpistas de 64, Ivan respondeu com “O último a sair apague a luz do aeroporto”.

Dizia-se de fôlego curto, capaz apenas de frases, contos, crônicas (“Eu aprendi a escrever em duas laudas e meia”). Passou a vida atormentado pelos que, diante de seu manejo fabuloso das palavras, pediam um romance caudaloso – e aí Ivan aproveitava o ensejo para mandar um de seus bordões furiosos: “Vão se roçar nas ostras!”.

Os seus três livros de crônicas foram lançados por esforços de terceiros, afinal “Só se escreve para provocar um inimigo, conquistar uma mulher ou ganhar dinheiro”. Os fardões da glória literária não o motivavam: “Cada vez que morre um membro da Academia Brasileira de Letras um cidadão do Norte põe na máquina uma folha de papel e escreve: capítulo primeiro”.

Ivan não era de esquerda, nem de direita, defendia a liberdade de mandar o pau na canalha, fosse ela qual fosse, desde que fizesse por merecer a justiça do cascudo. “Vocês são todos uns idiotas”, dizia o título de uma crônica. Nem todas suas frases, publicadas nos jornais da época, podem hoje chegar aos olhos das novas gerações de leitores, gente de profundo prezo ao identitário e demais positivismos humanitários destes tempos. O estilo era o fino, o papo, um sopapo atrás do outro:

“Morrer no Nordeste é conhecido como migração em busca de melhores condições de vida”. “Se o latim é uma língua morta porque falam tanto em cunnilingus?” “Mesmo em terra de cego, quem tem um olho é muito malvisto.” “As feministas são donas dos próprios corpos. Agora, os dos filhos pertencem às creches.”

De 15 em 15 anos é preciso lembrar de Ivan Lessa, e aqui estou eu. Foi um dos maiores escritores brasileiros, parceiro de Machado e Veríssimo na arte de usar o humor para dar uma geral no “Bananão”. Continua atualíssimo: “O Brasil é o único país do mundo onde os criminosos não voltam ao local do crime. Na verdade, nunca o deixaram.” Ivan pode ser citado até para explicar o mais recente golpe da milicada: “Tudo na vida é passageiro, menos o general, o almirante e o brigadeiro”.