sexta-feira, julho 24

Testamento de um gênio centenário

Livreiro não se contém e reproduz o depoimento do arquiteto Oscar Niemeyer sobre sua relação com a leitura. Niemeyer fala da relação com os autores e sua universalidade quanto à leitura. Num texto singular, com a mesma delicadeza de sua curvas arquitetônicas, o arquiteto nos traça seus caminhos pelos livros.

“Com o tempo, sentia-me - como a maioria dos meus colegas - pouco informado nos assuntos fora da arquitetura e resolvi deles me ocupar.Lembrava Rodrigo a me dizer: “Oscar, leia os gregos e os clássicos portugueses.” E li. Li muito. Li como quem nada sabe e tudo quer aprender. Li com a devoção com que lera, anos atrás, a obra de Le Corbusier.E comecei pelos gregos, como meu amigo aconselhava, curioso diante dos discursos de Sócrates e Platão, da maneira inteligente com que faziam seus diálogos, astuciosos, de exemplar coerência. E passei, em seguida, aos clássicos portugueses, a Diogo do Couto, Fernão Lopes e outros, a contarem as pilhagens pelas costas da África e as “espingardadas” com que as resolviam. Era a linguagem simples, concisa, direta, que Rodrigo apreciava.Interessado na literatura, segui em frente lendo, cuidadoso, devagar, os discursos de Vieira, os livros de Herculano, Eça de Queiroz e Machado de Assis.Herculano, com sua linguagem severa; Eça às vezes barroco, mas cheio de graça e espontaneidade. Como ainda hoje recorro aos Maias ou à Ilustre Casa de Ramires!Machado de Assis, a fazer ironias, a invadir a alma de seus personagens.Não tinha pretensões literárias. Queria apenas poder explicar meus projetos de forma clara e simples. E prossegui, debruçado na literatura do Brasil e Portugal, a sentir, em cada um dos que lia, suas grandezas e qualidades. E li de Machado aos novos escritores desses dois países, entusiasmado com a simplicidade de alguns, com a imaginação e espontaneidade de outros, com a preocupação política e social dos que trazem a miséria dentro do peito. E passei aos estrangeiros, surpreso com a unidade literária de Camus; a inteligência e cultura de André Malraux; a invasão do ser humano de Freud, Kafka e Dostoiévski; a pureza de Gide e Tchekhov; o realismo de Henri Miller; a agilidade e o talento de Proust; a grandeza dos escritores russos como Tolstoi, Tchekhov, Dostoiévski e Gorki.Mas, sempre pela rama, sentia que a literatura não me bastava, que precisava conhecer melhor o mundo em que vivemos, o porquê da nossa presença neste velho planeta.E os ensaios sobre a vida, a genética e o cosmo me atraíram. Quanta coisa aprendi a ler Jacob e Monod, a obra de Sartre a nos induzir que toda a vida é um fracasso, a nos explicar seu existencialismo: “A antecipação da existência da criatura sobre a essência.”Nas horas vagas, lia os livros didáticos de Celso Cunha - e os grandes mestres da poesia, Baudelaire a falar de amor. Neruda a cantar a revolução.Não me permitia criticar ninguém nem assumir posições radicais. Era apenas um curioso no assunto. Lia com igual respeito um livro de García Márquez e Jorge Amado ou um romance de Anatole France; uma poesia de Appolinaire ou outra de Drummond ou Gullar. Em cada um deles apreciava coisas diferentes como se estivesse defronte de uma pintura de Matisse e de um quadro de Picasso. Até os livros policiais de Simenon me atraíam, o que, ao comentá-los, deixava irritados nossos “intelectuais”, que um dia fuzilei contando que nas suas Lettres au Castor Sartre satisfeito disse: “Hoje li três livros de Simenon.”Quando um escritor mais importante me fascinava, procurava ler sua correspondência. Quantas coisas aprendi lendo as cartas de Lenin a Gorki e Tchekhov, as memórias de Gide, Buñuel e tantos outros!Pessoalmente, prefiro a linguagem simples, do cotidiano. “A literatura se engrandece quando se aproxima da linguagem oral,” disse Moravia numa das suas entrevistas.Mas, se os livros de conteúdo social me entusiasmavam, outros, que nada disso oferecem, também me atraíam. Era a pureza literária a dispensar outros predicados, embora, juntos, pudessem, sem dúvida, se enriquecer ainda mais. Mas como a beleza se impõe! E lembro estes versos magníficos de Freire, transcritos num livro de Jorge Juiz Borges:“Peregrina Paloma imaginaria/Que enardeces os últimos amores/Alma feita de luz, de música e de flores,/Peregrina Paloma imaginaria.”E o comentário de Borges: “Esse verso não explica absolutamente nada. Mas para mim é inesquecível.”
Publicado aqui

Nenhum comentário:

Postar um comentário