terça-feira, maio 31

Velha crônica de mestre

Um livro*


Rubem Braga (1913-1990)


Então lhe aconteceu parar diante de uma grande vitrina de livraria. Parou de um modo quase mecânico, fatigado de ter caminhado tanto tempo pelas ruas do centro: e atraído pelos títulos. Lembrou-se que antigamente freqüentava livrarias; sabia as novidades que chegavam da Europa, encomendava livros de que via noticias em revistas estrangeiras, vasculhava lentamente os "sebos", horas e horas, escolhendo pequenas brochuras encardidas que o interessavam. E se lembrou do estranho fascínio que subitamente exerciam sobre ele certos assuntos – por exemplo, da impaciência dolorosa com que esperou ter dinheiro suficiente para comprar aquele grosso livro francês sobre hereditariedade, que folheava de vez em quando e namorava todos os dias.
Eram gostos arbitrários, que duravam semanas ou meses, e variavam de história das religiões a livros de aventuras polares. Várias vezes formou pequenas bibliotecas absurdamente variadas que ia dispersando ao sabor de suas mudanças e viagens. E quando distribuía esses livros por amigos ocasionais, na hora de arrumar a mala, sentia um grande prazer em se desfazer deles e de tudo o mais que possuía, de sair outra vez para outra cidade qualquer com sua pequena mala de poucas roupas, leve e livre.
Nunca aprendeu nada a rigor: acumulava noções úteis e inúteis sobre mil coisas, guiado apenas pelo capricho e pela curiosidade. Mas a verdade é que uma parte de sua vida estava nos livros, nos horizontes que eles abriam na vaga esperança de achar neles um caminho ou inspiração para não sabia o quê. E agora reparava – só agora reparava - que no turbilhão medíocre de sua vida que ia passando, ele se afastara dos livros, como quem insensivelmente vai deixando velhos amigos.
E agora ali, diante da vitrina cheia de novidades, e alguns antigos livros raros, sentiu uma vontade de comprar muitos volumes, de fugir para alguma casa do interior com longas tardes sossegadas, e passar os dias longe da vida, lendo, sem pensar mais nada.
Mas a idéia de comprar trouxe-lhe a idéia de dinheiro: pensou em duas dívidas desagradáveis, e saiu andando com uma espécie de raiva humilde, que era uma espécie de resignação.
*(Texto publicado em outubro de 1958 na extinta (infelizmente) revista Leitura)

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