sábado, março 4

A gente gosta da tristeza que a vida é bela

Nazaré, 16 de Maio de 1946

É uma história triste, mas eu conto-a, porque uma história triste agrada sempre. No seu sentido mais profundo, a vida é bela e alegre. Todos nós tivemos já a experiência disso milhares de vezes. Provas sobre provas de que não há Primavera sem flores, nem Outono sem frutos. Mas, apegados como estamos à aparência de tudo, esquecemos a voz do profundo, e ouvimos deliciados o som da superfície. Temos o vício da tristeza.

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Eu fui à Falca exatamente porque a vida é bela e alegre. Caminhar sobre dunas, ao nascer do sol, por entre pinheiros floridos, a ouvir o mar, é bem a felicidade. É bem ter a consciência protoplásmica de que viver é uma graça da natureza. Mas o hábito pode muito. Mal vi a cega, perdi a alegria. Que importavam dois olhos a mais ou a menos na luz universal da manhã? Comovi-me, contudo. E esqueci o bálsamo que pisava, os pinheiros acesos como candelabros, o tombo das ondas, e pus-me a falar com a escuridão. Tinha visto a mulher de longe, sentada na soleira da porta, com a costura no regaço, a passar a mão pela cabeça de uma criança. Era o velho quadro da ternura materna, mas havia no gesto o tacto de uma suavidade particular. Aproximei-me, então. E só quando cheguei mesmo ao pé dos dois olhos baços, é que alguém disse dramaticamente:

― É cega!

A Falca são quatro casas sobre a duna. Há nove pessoas e um burro.

― Mas cose... ― argumentei eu, incrédulo.

― Remenda, ponteia, prega botões, vai à fonte, cozinha...

― E não cai, não se magoa?

― Agora caio! E, se cair, a areia é mole...
A heroína da minha história triste entrava no palco a sorrir. A vida é, de facto, alegre. Eu é que estava, estupidamente, cada vez mais comovido.

― É seu filho, este miúdo? ― perguntei a medo.

― É, sim. E ainda tenho mais dois...

O burro orneou no meio das camarneiras.

― Cegou depois de os ter?

― Não, meu senhor. Foi antes, logo depois de casar. Nunca vi nenhum...

O pequenito era loiro; a mãe morena.

― Deve ser triste... ― arrisquei, cruelmente.

― Se é! Mas a gente acostuma-se a tudo. Há dias que nem me lembro.

A vida sempre a puxar para o lado bom, e eu sempre a puxar para o lado mau.

― Não faz ideia nenhuma da cara deles?

― Só pelo que me dizem...

A mão acarinhava a cabecita com mais ternura. Os dedos pareciam olhos da noite.

― E gosta de viver mesmo assim?

― Essa agora! Quem é que não gosta de viver?!
― Cega...

― Tudo é vida. É pena, mas paciência. Antes eu nunca tivesse visto a luz do dia. Não sabia o que era, pronto.

Não disse que antes nunca tivesse tido os filhos.

― E como é que havia de namorar o seu marido, se não visse?

― Também é verdade... Mas ele cá viria. Olha os homens!

― Talvez a não quisesse...

― Queria, queria! O principal estava cá...

Riu-se da brejeirice. Eu é que fiquei sério como um pau. A minha imaginação melancólica não se resignava.

― Também deve ter mágoa de o não ver agora, mudado pelos anos...

― Isso não. Tenho-o sempre novo, que é melhor...

Era escusado. A minha mazombice não se pegava.

― Então, adeus! E fique sabendo que o seu filho é bem bonito...

― Parece que sim. E os irmãos também. Andam à lenha... Este é o mais pequenino. E já cá trago outro...

O sol ia alto, e o dia estava cada vez mais alegre. Mas quê!? A gente gosta da tristeza...
Miguel Torga

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