terça-feira, junho 13

Assim começa o livro...

“Nunc et in hora mortis nostrae. Amen.” O Rosário de todo dia chegara ao fim. Durante meia hora, a voz pacata do Príncipe recitara os Mistérios Dolorosos; durante meia hora, outras vozes, misturadas, tramaram uma algaravia ondejante sobre a qual se destacaram as flores de ouro de palavras incomuns: amor, virgindade, morte; e enquanto durou aquela algaravia o salão rococó pareceu ter mudado de aspecto — até os papagaios com suas asas iriadas sobre a seda da tapeçaria se mostravam intimidados; mesmo a Madalena, entre duas janelas, parecia uma penitente, e não uma loura linda absorta em sabe-se lá que devaneios, como sempre era vista. 

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Agora, silenciada a voz, tudo retornava à ordem, à desordem habitual. Pela porta por onde os criados haviam saído, o alano Bendicò, triste por ter sido excluído, entrou e abanou a cauda. As mulheres se levantaram lentamente, e o oscilante repuxo de suas saias pouco a pouco deixava à vista os nus mitológicos que se desenhavam sobre o fundo leitoso dos ladrilhos. Permaneceu encoberta apenas uma Andrômeda a quem a batina do Padre Pirrone, atardado em suas orações adicionais, impediu por um bom tempo a visão do prateado Perseu que, sobrevoando as vagas, se apressava ao socorro e ao beijo.

No afresco do teto, as divindades despertaram. As fileiras de Tritões e de Dríades que dos montes e dos mares, entre nuvens púrpuras e lilases, precipitavam-se sobre uma Conca d’Oro * transfigurada a fim de exaltar a glória da casa Salina, surgiram de repente tão cheias de júbilo que negligenciaram as mais simples regras da perspectiva; e os Deuses maiores, os Príncipes entre os * Conca d’Oro (Concha de Ouro) é o nome da planície sobre a qual se encontra Palermo e arredores. Deuses, Júpiter fulgurante, Marte carrancudo, Vênus lânguida, os quais haviam precedido a turba dos menores, carregavam de bom grado o brasão azul com o Leopardo. Eles sabiam que agora, por vinte e três horas e meia, tornariam a ser os senhores da vila. Nas paredes, os macacos voltaram a fazer caretas para as cacatuas.

Debaixo daquele Olimpo palermitano, também os mortais da casa Salina desciam depressa das esferas místicas. As jovens ajeitavam as dobras dos vestidos, trocavam olhares azulados e palavras do jargão do internato; havia mais de um mês, desde o dia dos “motins” de Quatro de Abril, por prudência elas haviam sido trazidas do convento e estavam saudosas dos dormitórios baldaquinados e da intimidade coletiva com o Salvador. Os meninos se estapeavam pela posse de uma imagem de São Francisco de Paula; o duque Paolo, o primogênito, o herdeiro, já estava com vontade de fumar e, temeroso de fazê-lo na presença dos pais, apalpava no bolso a palha trançada do porta-charutos; em seu rosto emaciado aflorava uma melancolia metafísica; o dia tinha sido ruim: Guiscardo, o baio irlandês, pareceu-lhe desanimado, e Fanny não encontrara maneira (ou vontade?) de passar-lhe o habitual bilhetinho cor de violeta. Para quê, pois, o Redentor encarnara? Com ansiosa prepotência, a Princesa deixou cair secamente o rosário na bolsa bordada de azeviche, enquanto seus belos olhos obcecados espreitavam os filhos servos e o marido tirano, para o qual seu minúsculo corpo pendia numa vã aflição de domínio amoroso.

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