domingo, julho 7

A cheia

Há oito dias que relampejava nas cabeceiras. Meu avô ficava de noite por muito tempo a espreitar o abrir rápido do relâmpago para os lados de cima. E quando se cansava de tanto esperar, botava os moleques para isso. 

Lá um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, quase rente do horizonte, um abrir longínquo e espaçado de relâmpago: era inverno na certa no alto sertão. As experiências confirmavam que com duas semanas de inverno o Paraíba apontaria na várzea com a sua primeira cabeça-d'água. O rio no verão ficava seco de se atravessar a pé enxuto. Apenas, aqui e ali, pelo seu leito, formavam-se grandes poços, que venciam a estiagem. Nestes pequenos açudes se pescava, lavavam-se os cavalos, tomava-se banho. Nas vazantes plantavam batata-doce e cavavam pequenas cacimbas para o abastecimento de gente que vinha das caatingas, andando léguas, de pote na cabeça. O seu leito de areia branca cobria-se de salsas e junco verde-escuro, enquanto pelas margens os marizeiros davam uma sombra camarada nos meios-dias. Nas grandes secas o povo pobre vivia da água salobra e das vazantes do Paraíba. O gado vinha entreter a sua fome no capim ralo que crescia por ali. Com a notícia dos relâmpagos nas cabeceiras, entraram a arrancar as batatas e os jerimuns das vazantes.

O povo gostava de ver o rio cheio, correndo água de barreira a barreira. Porque era uma alegria por toda parte quando se falava da cheia que descia. E anunciavam a chegada como se se tratasse de visita de gente viva: __ a cheia já passou na Guarita, vem em Itabaiana ...

A notícia corria de boca em boca. No engenho era no que se falava. A canoa já estava calafetada e pintada de novo. Nós todos dormíamos pensando na cabeça da cheia que não tardaria. Eu aguardava com uma ansiedade medonha essa cheia de que tanto se falava. No Recife, vira o Capibaribe nos seus dias de enchente, coberto de balsas, mas o Capibaribe vivia todos os dias a encher e a vazar com as marés. Por isto pensava tanto na cheia do Paraíba, como em coisa inédita para mim.

Vieram dizer no engenho:

__ O chefe da estação de Pilar recebeu um aviso de que a cheia já vinha em Itabaiana.

Não custava, portanto, a apontar entre nós. Diziam que o rio vinha de barreira a barreira. E uma tarde um moleque chegou às carreiras, gritando:

__ A cheia vem no engenho de Seu Lula!

Todos correram para a beira do rio __ os mole
ques, os meninos, os trabalhadores do engenho, o meu avô. :E começava-se a ouvir a gritaria da gente que ficava pelas margens:

__ Olha a cheia! Olha a cheia!

__ Ainda vem longe, diziam uns.

__ Qual nada! Olha os urubus voando por ali!

De fato, com pouco mais, um fio d'água apontava, numa ligeireza coleante e espantosa de cobra. Era a cabeça da cheia correndo. E quando passava por perto da gente, arrastando basculhos e garranchos, já a vista alcançava o leito do rio todo tomado d'água.

__ É água muita! O rio vai às margens. Vem com força de açude arrombado.
O povo a gritar por todos os lados. E o barulho das águas que cresciam em ondas nos enchendo os ouvidos. Num instante não se via mais nem um banco de areia descoberto. Tudo estava inundado. E as águas subiam pelas barreiras. Começavam então a descer grandes tábuas de espumas, árvores inteiras arrancadas pela raiz.
José Lins do Rego, "O menino de engenho"

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