terça-feira, agosto 31
Banhos de mar
A cidade das palavras
segunda-feira, agosto 30
Epitáfio
Mas entre todos os epitáfios que li nos cemitérios de Minas o que mais me comoveu foi o da moça Matilde, nascida em 1846, casada em 1867 e morta de parto aos vinte e sete anos, em 1873. O seu aflito esposo lhe dedicou estes versos:
Pensão todos que morreste
Que viúvo me deixaste
Quando apenas na jornada
Mais depressa um pouco andaste.
Após de ti eu caminho
Na mesma senda prossigo,
Meu passo não é tardio;
Bem cedo serei contigo.
Podem os versos não ser bons; mas são bonitos por dentro. E além de comovida me deixaram com inveja. Pois qual de nós, minhas irmã;s, ousa esperar do viúvo tal promessa gravada no mármore eterno, de nos acompanhar em passo "que não é tardio" e isso depois de nos saberem para sempre caladas e bem enterradas debaixo do chão?
Rachel de Queiroz, O Cruzeiro 11/06/1949
sábado, agosto 28
O bibliotecário
No entanto, e apesar do cuidado com que o bibliotecário se entrega à sua meticulosa tarefa, os livros dedicam-lhe uma profunda inimizade. Conspiram e manobram nas suas costas, desde o primeiro dia.
O bibliotecário ouve-os falar e dá conta de tudo. Mas tanto se lhe dá porque ama verdadeiramente os livros. Porque ama-os apaixonadamente com todas as suas forças. Os livros, porém, não se deixam comover por estas demonstrações de afecto. Escarnecem do seu irritante desejo de agradar, lançam ofensas, urdem as piores armadilhas: os livros de história disfarçam-se de livros de botânica, os de medicina escondem-se sob as capas dos de teologia, e assim por diante.
Ora, os mais acérrimos inimigos do bibliotecário são os livros de poesia. Já vi livros de poesia enterrarem os dentes, sem cerimónias, nas mãos pequenas do bibliotecário. Mais do que isso: já vi clássicos da poesia puxarem-lhe a língua, cuspirem-lhe na cara, chamarem-lhe falso Judas e lambe-cus. Felizmente, são dos menos solicitados pelos leitores. De facto, apesar dos seus esforços para atraírem as atenções, com as suas capas escandalosamente azuis ou desmesuradamente grandes, raras são as vezes em que saem do lugar. Por isso, o ódio cresce a cada dia que passa. E à noite, colados à sua imensa imobilidade, os livros de poesia sonham com a morte do bibliotecário.
sexta-feira, agosto 27
Verbetes
A maldição de Babel não foi os homens desentenderem-se por falarem línguas diferentes, mas sim desentenderem-se falando a mesma língua.
(Dovev Rosenkrantz)
A vida descreve-se pela contradição do sobreiro: o jovem não tem paciência para esperar meio século para que a árvore cresça e seja adulta. Por isso, não a planta. Quando chega a velho e, finalmente, tem paciência para esperar, planta-a, mas já não tem tempo para a ver crescer.
Aos homens que tentavam sedentarizar-se, os Ubitatã cortavam-lhes os pés: «se não caminham, não precisam deles». E davam os pés a comer aos corvos.
O rei da Assíria, Sardanapalo, pelo contrário, cortava os pés dos nómadas para que estes se tornassem sedentários. Depois, dava-os a comer aos corvos.
Em ambos os casos, os corvos é que ficavam a ganhar.
Podem não existir livros a mais, mas existe tempo a menos.
(Wilhelm Möller)
O ócio não é o contrário de trabalho. A felicidade é que é o contrário de trabalho.
(Marian Bibin)
(Relação entre o) telhado e a dúvida
Por mais andares que uma casa tenha termina sempre no telhado. É assim a vida do homem: por mais certezas que tenha, termina sempre na dúvida.
(Malgorzata Zajac)
Afonso Cruz, "Enciclopédia da Estória Universal – Recolha de Alexandria"
Balada de Luís Jardim
Se o senhor alimenta algum complexo de inferioridade, beba. Se o senhor é triste de natureza, beba ao morrer do dia, que o crepúsculo sempre foi a hora mais difícil para as índoles oprimidas. Caso o senhor seja feito de irremediável feiura, beba de meia em meia hora um cálice de cachaça. A cachaça vai bem com as pessoas feias e hão de achar que o senhor é terrível. Se o senhor é um artista fracassado, torne-se um ébrio, frequente os botequins abertos a noite inteira, espalhe contando a toda parte os versos que não fez, a melodia divina que ficou na sua cabeça, as cores e as formas maravilhosas que não se resolveram na tela.
Se os domingos o aborrecem, sente se à mesa de um bar, gaste em uísque o dinheiro do aluguel. Se o senhor é rico e o spleen da alta sociedade começa a roubar-lhe o encanto, procure um boteco humilde, beba com os operários e os malandros, aprenda a conversar com eles, a discutir com eles, a trocar navalhadas quando a lua vai alta.
Se o senhor é tímido, faça ponto obrigatório num bar central, e daí parta para cavalgadas heroicas, provoque distúrbios, enfrente a polícia, faça comícios no coração da cidade, exponha-se diariamente numa sarjeta à visitação pública. Se o senhor cometeu homicídio, embriague-se. Se o mar lhe traz a ideia insatisfeita do infinito, embriague-se a valer. Se o senhor espera em Deus, espere bêbado. Se o senhor não crê na imortalidade da alma, e isso o assusta, durma sempre bêbado, espante a morte de seus pensamentos, mergulhe-se num sono espesso sem remorso.
Se a bebida prejudicar-lhe o trabalho, atenda ao senso-comum. Se o senhor perdeu as eleições, beba. Se o senhor é prático de farmácia e se realmente (como dizem) é muito triste ser prático de farmácia, beba vinho, arme-se de vinho para a mágoa do cotidiano.
No capítulo das mulheres beba sistemática e pateticamente. Se as mulheres o iludem, beba. Se as mulheres o desprezam, beba. Se elas o amam, beba também, porque amanhã pode ser que elas venham a enganá-lo. Embriague-se pelas louras e pelas morenas. Não se mate de amor: beba de amor.
quinta-feira, agosto 26
Última curva
Albert Marquet |
Silêncio é tudo que me resta agora,
Aquilo que me fez viver outrora
Hoje está morto, já, e sepultado.
Posso eu ainda pensar em vida, em obra?
O que posso é manter-me respirando
Porque isso é o que fazemos todos quando
Respirar passa a ser o que nos sobra.
Raul Drewnick
Uma história de tanto amor
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:
— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! E é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:
— Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma préciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeulhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.
quarta-feira, agosto 25
Manuscritos
Henry James, "Os manuscritos de Aspern"
Que livros compravam Simone de Beauvoir, Joyce, Hemingway e Lacan em Paris?
James Joyce, Adrienne Monnier e Sylvia Beach na Shakespeare and Co. (1938)
De fato, na Brentano custavam cinco vezes mais que os livros em francês, e o catálogo da Biblioteca Americana não era tão extenso a ponto de ser atractivo. Já o serviço da Shakespeare and Company apresentava-se como algo único. Por oito francos e outros sete de depósito era possível solicitar um livro em empréstimo, ou dois se a cifra subisse para 12 francos. O tempo máximo de leitura permitido era de duas semanas para as publicações mais antigas e uma para as mais recentes. Todos esses detalhes são conhecidos graças ao trabalho do Projetco Shakespeare and Company, comandado pelo professor Joshua Kotin, da Universidade de Princeton (EUA), que vasculhou os arquivos digitalizados da livraria parisiense na Internet. Através desses dados, os pesquisadores revelam os gostos literários de alguns dos grandes escritores que costumavam frequentar a loja, como Gertrude Stein, James Joyce, Ernest Hemingway, Aimé Césaire, Simone de Beauvoir, Jacque Lacan e Walter Benjamin.
Os papéis escritos à mão mostram os nomes dos clientes e os livros solicitados em empréstimo. Assim, revela que Hemingway levou, entre as 90 publicações anotadas na sua ficha, as memórias de Joshua Slocum, Sailing Alone Around the World (“Navegando sozinho ao redor do mundo”, 1900), ou inclusive um exemplar de um dos seus próprios livros, Adeus às Armas (1929). Stein, por sua vez, leu a novela romântica A Love in Ancient Day (“um amor na antiguidade”, 1908), de Truda H. Crosfield, e a fantasia Equality Island (“ilha da igualdade”, 1919), de Andrew Soutar, enquanto Walter Benjamin escolheu um dicionário alemão-inglês e The Physical and Metaphysical Works of Lord Bacon (“as obras físicas e metafísicas de lorde Bacon”, 1853), este último pouco antes do seu suicídio, em Setembro de 1940, quando a polícia espanhola lhe comunicou que o entregaria à Gestapo. Lacan aproveitou o serviço para pedir um obscuro livro sobre a história da Irlanda durante a leitura de Joyce, e Claude Cahun, sob o nome de Mlle Lucie Schwob, dedicou-se às obras de Henry James. Atrasavam-se na devolução e a política era sempre a mesma: entregar ao infractor um desenho que retratava Shakespeare arrancando os cabelos.
“Muitas coisas me surpreenderam”, diz Kotin. “Surpreendeu-me que Lacan lesse sobre a Irlanda, ou que Stein lesse romances de fantasia. Mas também pela diversidade das pessoas que eram sócias da livraria. E, por último, pela diversidade dos livros. Esperava que Joyce, Woolf e Mansfield fossem os autores mais populares, não achava que fossem Norman Douglas, Charles Morgan e Rosamond Lehmann”, acrescenta.
Hoje, o histórico de empréstimos desses escritores pode ser consultado livremente na página do projecto, com buscas por cliente ou por livro. Para Kotin, a grande quantidade de material consultado demonstra uma semelhança com nossos hábitos actuais. “Comparo as suas leituras com o nosso tipo de consumo: podemos ler romances e poemas sofisticados, mas ainda vemos coisas na Netflix.”
Beach publicou em 1922 a legendária novela de James Joyce, Ulisses, e manteve a Shakespeare and Company aberta até 1941, quando se recusou a vender o último exemplar de Finnegans Wake (1939) a um oficial nazi. George Whitman conseguiu reabrir a loja 10 anos depois e doou os arquivos a Princeton em 1964. A equipe de Kotin trabalha há seis anos no armazenamento desse infinito material e, apesar disso, o professor afirma que ainda estão num ponto inicial. “Agora que temos o site, não vejo a hora de descobrir clássicos esquecidos ou comunidades de escritores unidos por seus gostos. E também informações sobre os americanos expatriados em Paris. Tenho muitíssimas perguntas. O projecto é uma ferramenta para lhes dar resposta”, afirma. Nos próximos meses, o plano é incluir um mapa que mostrará onde os autores residiam e uma lista dos livros mais populares.
Sylvia Beach não quis cumprir a regra da Associação Americana de Bibliotecas que exige que essas instituições destruam os registos dos usuários para proteger a sua privacidade. O resultado foi um arquivo de inestimável valor. “Era uma obsessiva colecionadora de informações. Nos anos vinte, a loja e a biblioteca já eram muito famosas. Ela sabia que as pessoas se interessariam pelos arquivos no futuro. Mesmo quando fechou, continuou emprestando livros”, conta Kotin.”
terça-feira, agosto 24
Autobiografia
Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.
Mario Quintana
Aforismos
Quando morrer vou deixar a luz acesa para as pessoas pensarem que ainda estou por cá.
Receita para o optimismo
Para fazer nascer o optimismo só há duas hipóteses: pensar nos filhos ou beber tequila.
Crescimento: uma definição
Passar dos terrores nocturnos para os terrores diurnos.
O importante é a pose
Ela vai ao Lidl de Xabregas, mas comporta-se como se estivesse a comprar uns sapatos Prada em Nova iorque.
Assim acontece
O seu saldo não lhe permite consultar o seu saldo.
Márcio interrompe o jantar para fazer uma pergunta:
Em que categoria das Finanças está Deus inscrito?
Márcio tem uma reflexão
O mundo divide-se entre sentimentais cínicos e cínicos sentimentais.
Dona Bina folheia a imprensa
Ser pessimista é a profissão mais antiga do mundo.
Dona Bina acha que já não há gente decente
O “maluquinho da aldeia” foi substituído pelo “normalzinho da cidade”.
Definição havaiana de poeta
O poeta é um surfista que tem medo das ondas.
Nunca tinha ouvido esta
Você é muito mais interessante ao vivo do que na internet.
Nuno Costa Santos , "Melancómico – o livro"
segunda-feira, agosto 23
Essas cidades acidentadas
Não é que o viúvo Zoltan Tremlich, com a idade, tivesse passado ao estado de ingratidão, com respeito à casa ampla, soberana de vista sobre a enseada, legado tardio duma parente longínqua. Mas começava a ter pena de que a falecida tia, que não era, aliás, uma bondade de mulher, lhe não houvesse antes deixado em testamento um modesto rés-do-chão na Rua dos Lojistas, perto do cais e da praça, sobretudo do Clube dos Valetes de Paus, onde não era desagradável entreter umas tardes de doce subalternidade.
Mário de Carvalho, "O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel"
O patriota
O bilhete assim dizia: "Hoje é um dia cheio de glórias da independência de minha Pátria. Mas eu estou muito infeliz porque "ela" me abandonou. E também porque não posso gritar, nem pedir, nem solicitar pela minha independência. Me refiro à mulher que eu tive a infelicidade de amar, e não à Pátria, que eu morro amando como bom brasileiro".
Bem me lembro quando eu tinha 20 anos e meu amigo Afonso Arinos de Melo Franco me fez presente de um livrinho seu chamado "Carta aos que têm 20 anos". As ideias e conselhos do livro não me impressionaram. Deles tenho apenas uma lembrança confusa; pode ser que hoje eu os achasse bons e Afonso Arinos de Melo Franco não achasse mais. As pessoas que lidam com estatística têm uma palavra para isso, que aprendi há pouco tempo: chama-se "defasagem". Quer dizer mais ou menos, se não me engano, falta de coincidência, que é um dos males da vida. Amas uma bela mulher, ela te acha um chute, e, enfim, um dia a desamas e ela se dana a te adorar. Bem, isso é antes uma coincidência às avessas, muito vulgar no tempo, no espaço e no sentimento. Quem sabe, se o formicida falhasse, talvez já no próximo 7 de setembro iria o operário José pensar: "ora, sim senhor, e eu que fiquei tão abafado por causa daquela fuleira".
O que não impede que já estivesse, a essa altura, jungido a outras servidões, sem coragem nem fé para soltar o seu grito do Ipiranga, mais inclinado a escolher a morte que a lutar pela independência.
Quem luta consigo mesmo cansa igual ao que luta com outro. E tem ataques de raiva com vontade de se matar e tem ataques de tédio tão desgraçado que não tem vontade de coisa alguma, nem de ser, nem de não ser. Respondemos a Hamlet: "não interessa".
Nós outros, que atingimos a idade chamada provecta, somos quase sempre sobreviventes dos suicídios que não chegamos a fazer. O pior desses suicídios é que eles sempre matam alguma coisa dentro de nós. Era para preservar essa coisa que queríamos a morte; escolhendo a vida, nós a traçamos de um jeito sutil, mas certo.
Vinte anos são uma bela idade, para a vida e a morte. Mas é inútil mandar cartas aos que têm 20 anos, como é inútil fazer desfilar pelas ruas milhares de soldados e cavalos e carros e clarins e tambores e bandeiras para alegrar os jovens corações patriotas. José rendeu homenagem à Pátria, mas talvez a alegria dessa Amada em festa tornasse mais negra a tristeza de seu coração. Assim são os moços; e eu é que não os lastimarei.
domingo, agosto 22
Melhores do que os outros
Há o elitismo social, de classe, relacionado ou não com o elitismo económico; há o elitismo cultural, relacionado ou não com o elitismo académico; há o elitismo moral, relacionado ou não com o elitismo religioso; há uma quantidade inúmera de elitismos, derivações de derivações, ramificações, tipos específicos e especializados, insignificantes para quem está fora, vitais para quem está dentro.
Yuriy Sultanov |
Mesmo quando se dedica a áreas extravagantes, a mundos microscópicos, o elitismo é sempre uma atitude política. A elasticidade do seu metabolismo permite-lhe sobrevivência em todas as áreas do espetro político, sem exceções. Consegue adaptar-se a qualquer habitat argumentativo. Com mais regularidade do que seria de supor, há apologias do elitismo que, camufladas ou explícitas, são feitas no próprio instante em que se afirmam contra ele. São a elite dos que se afirmam contra a elite.
Os defensores das castas dizem que é assim desde sempre, dizem que essa é a ordem natural, moldam a história e a ciência de acordo com os resultados lógicos que pretendem alcançar. Não é difícil fazê-lo, os argumentos são uma massa mais moldável do que o barro.
Depois, para lá disso, muito longe e logo ali, há os seres humanos, que nascem, alimentam expetativas e morrem. Quando seremos capazes de olhar para os outros como olhamos para nós próprios? Quando seremos capazes de olhar para nós próprios como olhamos para os outros?
José Luís Peixoto, Notícias Magazine (Fevereiro 2017)
Páscoa branca
(…)
Vasto e verde, tão verde, o planalto estende-se até à orla da floresta. Nunca antes o azul do céu fora tão transparente, o amarelo dos dentes-de-leão tão radiante, o ar tão macio. Lado a lado, o cão e eu detemo-nos para em seguida recomeçarmos o nosso jogo de agarra, correndo e saltando para a direita, para a esquerda e em ziguezague, até cairmos exaustos sobre a relva, eu a cara em fogo, ele ofegante, a língua de fora. “Pobre, pobre”, digo e enterro a cabeça no seu pêlo, de onde lhe tiro carinhosamente algumas pétalas de macieira. E falo-lhe. Conto-lhe coisas, muitas coisas, e ele ouve, silencioso, pacífico como o cair das pétalas na Primavera e o da neve no Inverno. Não há pressa, não há horas. Tínhamos abandonado o tempo para nos instalarmos na vasta planície verde, onde as flores em lume são eternas. Ali não se conhece nem fim nem princípio, nada foi, nada é, nada será. Uma criança fala, e as suas palavras vão de alma a alma, em linha recta, sem curvas, sem desvios. Palavras sem fechaduras, sem chaves, sem rótulos, mas livres como pássaros, nuas como adolescentes banhando-se em fontes de floresta, imensas como o mar onde navegam barcos que não buscam margens nem destinos. E não há idade encerrada num ciclo iniciado nas trevas e terminando nas trevas. Sonhamos como se tivéssemos chegado da luz, vivêssemos na luz, regressássemos à luz…
– Posso entrar?
É a dona do hotelzinho que me traz o café. Pousando o tabuleiro sobre a toalha cor de morango, diz:
– O café vai-lhe saber bem, num dia como este.
E olhando o nevão por detrás da janela:
– Coisa tão rara, uma Páscoa branca.
– A janela, dantes, era muito estreita – digo eu – mas acho-a bonita assim larga.
E ela, surpreendida:
– Conhecia a casa? – Conhecia. E as macieiras também.
sábado, agosto 21
Os 'parasitas' que chegam
sexta-feira, agosto 20
Ansiedade da escrita
Theo Molkenboer |
O que causa ansiedade em escritores: não escrever/escrever. Quem lê o que escrevem. Rever o que escrevem/não rever o que escreveram. Não ter boas ideias/ter muitas ideias, mas não ser capaz de decidir escrevê-las. Ter uma grande ideia e preocupar-se que ela não é boa o suficiente para escrevê-la. Não ter tempo para escrever/ter tempo para escrever. Não ser resenhado/receber 999 resenhas e uma daquele f.d.p que disse que o título do que foi escrito era muito grandeMac Margolis
O Mendel dos livros
Stefan Zweig, “O Mendel dos livros”
quinta-feira, agosto 19
O Sudoeste e a casuarina
“Estou vindo do mar alto, trago histórias”, diz ele com a sua voz agourenta. Ao que responde, enfastiada, a Casuarina:
“Detesto as tuas histórias”.
Também eu, porque sei o que significa pra mim o pranto desatado e frio. Logo esta varanda, que o Nordeste amornara para o meu sono, estará tomada por tudo o que o vento ruim traz consigo: a baba do oceano doente, a escuma amarela e pútrida, o calhau sangrento, o grito derradeiro dos náufragos, os olhos esbugalhados das crianças afogadas que não entenderam o último instante, o hálito pesado do marinheiro que morreu bêbado e blasfemo, o lamento do grumete que o mastaréu partido matou e atirou ao mar.
Assim são as histórias do Sudoeste. Ouvindo-as (e tenho de ouvi-las, como se elas viessem de dentro de mim, como se por dentro eu tivesse mil frinchas por entre as quais o Sudoeste passa e geme) ressuscito os meus mortos e minhas tristezas e a eles incorporo a amargura dos incertos e a angústia sobressaltada dos que têm medo – tão minhas agora. E vejo, destacada na escuridão como uma medusa no mar, a mão lívida do meu pai morto, imobilizada no gesto, talvez amigo, que não chegou a ser feito; e os pequenos dentes do meu irmão Francisco, que morreu sorrindo; e escuto, nos soluços do vento, aquele terrível convulso regougar de Maria que a morte levou num mar de sangue e vômito; e tremo e me apavoro, não por receio de não ter enterrado para sempre meus mortos, mas por medo de tê-los enterrado antes de ter pago tudo o que lhes devia.
Joel Silveira
Por que livros da extinta editora Cosac Naify custam até R$ 2,8 mil na internet?
Belos livros editados pela Cosac Naify (1996-20015) são, agora, vendidos por centenas de reais pelos poucos, mas espertos donos de edições ainda embaladas. Os preços variam:
Um box de "Contos Completos" de Liev Tolstói, com três volumes, chega a ser vendido por R$ 2,5 mil. E o combo de "Guerra e Paz", um dos mais famosos e queridinhos entre o público da editora, por R$ 1,4 mil.
"O Outono da Idade Média", de Johan Huizinga, é anunciado por R$ 1,5 mil.
"David Copperfield", de Charles Dickens, tem ofertas de R$ 550 a R$ 2,8 mil.
"Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos", dos irmãos Grimm, chega a custar R$ 950.
"Antologia da Literatura Fantástica", com 75 histórias reunidas pelos autores Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, é vendido por cerca de R$ 800.
Mesmo livros usados não saem por menos de R$ 100 em sites dedicados a produtos de segunda mão. A maioria gira em torno de R$ 300 a R$ 500, a depender da popularidade e da raridade da obra.
Os livros são bonitos, mas existe complexidade por trás da beleza. A escolha de gráficas de ótima qualidade, inclusive premiadas, por exemplo, explica Luciano Guimarães, professor de Design Editorial da Universidade de São Paulo (USP).
"Uma das características que fez Cosac Naify ter qualidade reconhecida de forma quase unânime é ter aliado a escolha por gráficas de excelência - como a Ipsis, que tem vários projetos vencedores no Prêmio Fernando Pini de Excelência Gráfica —, o investimento em equipe editorial, com editores, produtores e designer editoriais muito qualificados. O resultado é percebido tanto na qualidade do material, quanto em uma dimensão conceitual: a materialidade corresponde a um conceito", explica.
Um exemplo disso é o livro "A fera na Selva". Uma publicação dos pesquisadores Gabriela Araújo Oliveira e Hans da Nóbrega Waechter, da Universidade Federal de Pernambuco, mostra que a gramatura do papel aumenta a cada 8 páginas, enquanto o tom escurece a cada duas, conforme a história se torna tensa.
"Ao final, há uma inversão das cores: o fundo prateado torna-se preto e o texto preto converte-se em prateado, quando o protagonista passa por um momento revelador sobre sua 'fera'", diz a publicação.
Segundo Guimarães, a maioria dos livros "regulares" no Brasil utiliza o papel offset, com gramatura entre 75 e 90 g/m2 e formato de 14 x 21 cm. A Cosac não tinha papel, gramatura ou formato específicos. Cada obra era feita com um tipo de papel correspondente ao seu conteúdo e proposta.
Outro ponto é a abrangência do catálogo. A editora foi uma das poucas que reuniu tantos livros sobre cultura, arte, moda e design, como "História do design gráfico", de Philip B. Meggs (vendido por R$ 700). Também foi apostava em autores brasileiros e internacionais com menor alcance na época, mas grandes obras, como Samuel Beckett, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Alejandro Zambra.
Também entram na conta as traduções zelosas, muitas feitas diretamente do idioma original - como as versões de "Anna Kariênina", "Ressurreição" e "Guerra e Paz" feitas por Rubens Figueiredo. Por fim, uma das maiores explicações: algumas obras ainda não foram relançadas por outras editoras no país.
"As traduções refeitas e atualizada de livros antigos, como a coleção de Tolstói. Comprei meu primeiro livro deles em 2011, a edição de 'Anna Kariênina'. Foi meu primeiro contato com o autor, que se tornou um dos meus favoritos, e também com a literatura russa", conta o analista de segurança de conteúdo Thiago D’Carlo, de 27 anos.
Para que ter só pela metade o que se pode ter por inteiro? D'Carlo quer completar a coleção que começou há 10 anos, mas esbarra nos preços altos. "Hoje, você não encontra 'Guerra e Paz' da Cosac por menos de R$ 300 reais (ou R$ 400) e por isso ainda não comprei, mas sigo nessa expectativa."
Entre os vendedores, estão pessoas jurídicas com catálogos em marketplaces como Mercado Livre, Amazon e Shopee, geralmente que possuem outros artigos de entretenimento à venda. Há pequenas livrarias e sebos, além de pessoas físicas que querem aproveitar o ótimo preço de mercado para levantar uma grana.
Quem compra livros da finada editora costuma celebrar a conquista nas redes sociais. A maior parte das pessoas compartilha, além do gosto pela arte, uma outra característica: não tinham muito dinheiro quando a editora ainda funcionava, por isso matam, só agora, a vontade de possuir seus exemplares.
O engenheiro civil Pedro Cavalcanti, de 25 anos, tem 38 livros da editora e se enquadra nessa descrição. Alguns foram comprados enquanto ela existia. Outro, exaustivamente garimpados em sebos e links.
"Comecei a ler bastante literatura russa uma época, e a Cosac sempre foi referência, principalmente porque as traduções eram feitas direto do idioma original. Eu não trabalhava naquele tempo, então comprar livros era meio difícil, mas a vontade de ter essas edições nunca passou', conta.
Cavalcanti está sempre pesquisando livros da editora e consegue garantir bons preços em grupos de compra e venda. Mas, por duas vezes, não fugiu a inflação. "De vez em quando aparece algo por um preço aceitável. Mas paguei caro em dois. 'Ficção Completa', de Bruno Schulz, que até hoje não foi relançada. E 'Contos completos' do Tolstói". A companhia das letras relançou essa edição por R$ 200, mas achei o design meio feio", diz.