terça-feira, maio 31

O vapor das panelas e o tinir das moedas

Existem em Alexandria umas ruas chamadas “dos sarracenos”, que gozam de especial renome porque os árabes que mantêm ali suas tendas são os melhores cozinheiros, e os pratos que eles preparam deliciam os gastrônomos mais exigentes. Os sibaritas, gente verdadeiramente refinada em assuntos de mesa, frequentam aquelas ruas da mesma forma que, nas cidades elegantes, as pessoas frequentam as ruas onde há comércio de quadros.

Encontrava-se na sua cozinha um daqueles famosos cozinheiros, chamado Fabrac, quando se apresentou ali, com uma empada na mão, um mendigo sarraceno, que nem de longe tinha dinheiro para pagar o preço de um daqueles pratos famosos. O mendigo segurou a empada sobre a panela em que estava sendo preparado um guisado, e ela foi sendo impregnada pelo cheiroso vapor que dela se desprendia. Depois que a sentiu bem no ponto, retirou-a e se deliciou com o resultado do seu expediente culinário.

Fabrac não gostou daquilo. Não achava correto o procedimento do mendigo, e o intimou:

— Agora você tem de me pagar o que pegou da minha cozinha.

— Da sua cozinha eu não peguei nada. Só usei um pouco do seu vapor.

— Que seja! Você tem de me pagar então o vapor que pegou.

Tanto discutiram, tanto se encresparam, e tal escândalo moveram por causa da estranha reclamação, que a coisa chegou aos ouvidos do sultão. Como o assunto era muito original, o sultão não quis resolvê-lo antes de conhecer a opinião dos dois contendores. Chamou-os à sua presença, e a questão foi planteada pelo cozinheiro nos termos mais enérgicos.

Os sábios da corte do sultão começaram a discutir, argumentar, distinguir e sutilizar, como só os orientais o sabem fazer. Um dizia que o vapor não era do cozinheiro, pois se tratava de coisa que o demandante não podia reter, e se dissipava na atmosfera, além de carecer de substância corpórea e não deter propriedades úteis. Portanto, o mendigo não estava obrigado a pagar.

Outros, pelo contrário, sustentavam que o vapor era uma propriedade inerente ao que estava sendo cozinhado, algo consubstancial com ele, produzido por ele e só atribuível a ele; e como o prato saboroso era um resultado da perícia do cozinheiro e do seu trabalho, sendo do seu trabalho que cada homem deve viver, era lógico que o demandante recebesse um pagamento pelo uso daquele resultado do seu trabalho.

Muitos foram os argumentos, as razões, as argúcias e até os sofismas que se esgrimiram na contenda. Mas nada superou a engenhosa solução dada pelo sultão.

— Senhores, quando o cozinheiro vende a alguém o prato que preparou, é justo que esse resultado material e tangível do seu trabalho seja pago com algo também material e tangível, que são as moedas. Tendo em vista que o vapor é a parte sutil e não tangível do prato que o cozinheiro preparou, deve também ser paga com algo imaterial e intangível.

Dirigindo-se então ao mendigo, perguntou:

— Tens aí algumas moedas?

— Sim, senhor, pois as pessoas me ajudam geralmente com moedas, ainda que de pouco valor.

— Então tome-as dentro de um saquinho, e agite-as bem.

Feito isso, o sultão despediu o demandante, dizendo-lhe:

— Considere-se pago, e muito adequadamente, pois o tinir das moedas é a parte imaterial e intangível delas.
Novellino

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