terça-feira, fevereiro 13

Meu primeiro poema

Agora vou contar-lhes uma história de pássaros. No lago Budi, os cisnes eram perseguidos com ferocidade. Aproximavam-se deles sorrateiramente nos botes e, em seguida, rápido, rápido, remavam... Os cisnes, como o albatroz, devem correr patinando sobre a água, empreendendo dificilmente o voo e levantando com dificuldade as grandes asas. Alcançados, eram exterminados a pauladas.

Trouxeram-me um cisne meio morto. Era uma dessas aves maravilhosas que não voltei a ver no mundo: o cisne de pescoço negro, uma nave de neve com o pescoço esbelto como que metido em uma estreita meia de seda negra, o bico alaranjado e os olhos vermelhos.

Isto foi perto do mar, em Porto Saavedra, Imperial do Sul.

Entregaram-no a mim quase morto. Lavei suas feridas e lhe empurrei pedacinhos de pão e peixe pela garganta. Devolvia tudo. No entanto, foi se refazendo de seus ferimentos, começou a perceber que eu era seu amigo. E comecei a compreender que a nostalgia o matava. Então, carregando o pesado pássaro em meus braços pelas ruas, levei-o ao rio. Ele nadava um pouco, perto de mim. Eu queria que ele pescasse e lhe indicava as pedrinhas do fundo, as areias por onde deslizavam os peixes prateados do sul. Mas ele olhava a distância com olhos tristes.

Assim diariamente, por mais de vinte dias, levei-o ao rio e o trouxe à minha casa. O cisne era quase tão grande quanto eu. Uma tarde ficou mais alheio, nadou perto de mim, mas não se distraiu com os insetinhos com que eu queria ensinar-lhe novamente a pescar. Ficou muito quieto e o tomei de novo nos braços para levá-lo à casa. Então, quando o tinha à altura do peito, senti que se desenrolava uma tira, algo como um braço negro que me roçasse o rosto. Era seu comprido e ondulante pescoço que caía. Assim aprendi que os cisnes não cantam quando morrem.


O verão é abrasador em Cautín. Queima o céu e o trigo. A terra quer recuperar-se de sua letargia. As casas não estão preparadas para o verão, como não estiveram para o inverno. Vou pelo campo e ando, ando. Perco-me no monte Nielol. Estou só, tenho o bolso cheio de escaravelhos. Numa caixa levo uma aranha peluda recém-caçada. Não se vê o céu no alto. A selva está sempre úmida. Resvalo. De repente grita um pássaro: é o grito fantasmagórico do chucao.(1) Sou trespassado por um arrepio. Apenas se distinguem os copihues como gotas de sangue. Sou somente um ser minúsculo debaixo dos fetos gigantes. Junto à minha boca voa uma torcaza(2) com um ruído seco de asas. Mais acima outros pássaros riem de mim com riso áspero. Encontro com dificuldade o caminho. Já é tarde.

Meu pai não chegou ainda. Chegará às três ou às quatro horas da manhã. Subo ao meu quarto. Leio Salgari. A chuva desaba como uma catarata. Em um minuto a noite e a chuva cobrem o mundo. Ali estou só e em meu caderno de aritmética escrevo versos. Na manhã seguinte me levanto muito cedo. As ameixas estão verdes. Subo os montes. Levo um pacotinho com sal. Subo numa árvore, me instalo comodamente, mordo com cuidado uma ameixa e tiro dela um pedacinho, empapando-a com sal. Como até cem ameixas. Já sei que é demais.

Incendiou-se nossa casa, notícia misteriosa. Subo a cerca e olho os vizinhos. Não há ninguém. Levanto alguns pedaços de pau. Nada mais que umas miseráveis aranhazinhas. No fundo do terreno está o reservado. As árvores junto dele têm lagartas. As amendoeiras mostram sua fruta forrada de felpa branca. Sei como caçar os moscardos sem fazer-lhes dano, com um lenço. Mantenho-os presos por um momento e os aproximo dos meus ouvidos. Que zumbido magnífico!

Que solidão a de um pequeno menino poeta, vestido de negro, na fronteira espaçosa e terrível. A vida e os livros pouco a pouco vão me deixando entrever mistérios esmagadores.

Não posso esquecer do que li essa noite: a fruta-pão salvou Sandokan e seus companheiros numa Malásia distante.

Não gosto de Buffalo Bill porque mata os índios. Mas que bom cavaleiro! Que lindas as pradarias e as tendas cônicas dos peles-vermelhas!

Muitas vezes me perguntaram quando escrevi meu primeiro poema, quando nasceu em mim a poesia.

Tratarei de lembrar. Muito longe na minha infância e tendo apenas aprendido a escrever, senti uma vez uma intensa emoção e tracei algumas palavras semi-rimadas mas estranhas a mim, diferentes da linguagem diária. Passei a limpo num papel, preso de uma ansiedade profunda, de um sentimento até então desconhecido, espécie de angústia e tristeza. Era um poema dedicado à minha mãe, isto é, a que conheci como tal, a madrasta angelical, cuja sombra suave protegeu toda minha infância. Completamente incapaz de julgar minha primeira produção, levei-a a meus pais. Eles estavam na sala de jantar, mergulhados em uma dessas conversas em voz baixa que dividem mais que um rio o mundo dos meninos e dos adultos. Desdobrei o papel com as linhas, trêmulo ainda com a primeira visita da inspiração. Meu pai, distraidamente, tomou-o em suas mãos, leu distraidamente e distraidamente mo devolveu, dizendo:

– De onde o copiaste?

E continuou conversando em voz baixa com minha mãe seus assuntos importantes e remotos.

Parece-me recordar que assim nasceu meu primeiro poema e que assim recebi a primeira mostra distraída da crítica literária.

Entretanto avançava no mundo do conhecimento, no desordenado rio dos livros como um navegante solitário. Minha avidez de leitura não descansava de dia nem de noite. Na costa, no pequeno Porto Saavedra, encontrei uma biblioteca municipal e um velho poeta, Dom Augusto Winter, que se admirava de minha voracidade literária.

– Já os leu?, dizia, passando-me um novo Vargas Vila, um Ibsen, um Rocambole. Como um avestruz, eu tragava sem discriminar.

Por esse tempo chegou a Temuco uma senhora alta, com vestidos muito compridos e sapatos de saltos baixos. Era a nova diretora do liceu de meninas. Vinha de nossa cidade austral, das neves de Magallanes. Chamava-se Gabriela Mistral.

Eu a olhava passar pelas ruas do povoado com seus vestidões até os tornozelos e tinha medo dela. Mas quando me levaram para visitá-la, achei-a simpática. No rosto queimado em que o sangue índio predominava como um belo cântaro araucano, seus dentes branquíssimos mostravam-se num sorriso pleno e generoso que iluminava a casa.

Eu era jovem demais para ser seu amigo – e tímido e ensimesmado demais. Poucas vezes a vi – mas o bastante para cada vez sair com alguns livros que me presenteava. Eram sempre novelas russas, que ela considerava como o máximo da literatura mundial. Posso dizer que Gabriela me 
me iniciou nessa séria e terrível visão dos novelistas russos e que Tolstói, Dostoiévski e Tchecov entraram na minha predileção mais profunda. Continuam me acompanhando.
Pablo Neruda, "Confesso que Vivi"
Notas:
(1) Chucao: (Zool., Chile) pássaro de plumagem parda, que habita a espessura dos bosques. (N. da T.)
(2) Torcaza: espécie de pomba, chamada “paloma torcaz”, que vive no campo e se aninha nas árvores mais elevadas. (N. da T.)

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