domingo, agosto 31
Frase misteriosa, sonho estranho
Por que estas palavras que não vivi eu própria? A única hipótese, por causa da palavra ouro, vem do sonho que uma leitora teve a meu respeito. Ela o escreveu para mim. A leitora assina-se Azalea, que depois se tornou uma grande amiga. E me escreveu: “Não se impressione, nem se assuste. A interpretação é a melhor possível. Sonhei com uma espécie de canteiro imenso, com a terra toda revolvida para os lados. Junto a este canteiro, abaixadas, ajoelhadas, muitas pessoas. Todas desconhecidas para mim, que, de perto, olhavam a cena. Umas, nem eu poderia saber se as conhecia ou não, tão enterrados estavam os rostos no trabalho de revolver e revirar a terra. Procuravam ouro, Clarice. E achavam. Porque, à frente de cada uma delas se avolumava, cada vez mais, um monte brilhante que não podia deixar de ser ouro.
“Ao contrário dos outros, à sua frente, havia um monte imundo de terra. Ouro, não. Os outros cavavam e, felizes, separavam o metal brilhante, aumentando sempre mais os montes. Você, não. Cada vez que, desesperada, enterrava suas mãos na terra remexida, dali retirava punhados de cabelos, escuros, sujos, horríveis. E olhava para trás, com desespero, à minha procura, mostrava o resultado de sua busca.
“E novamente se entregava àquela louca, desesperada escavação. Seus olhares e seus gestos, mostrando-me as mãos sem ouro – nem cabelos dourados você tirava –, tudo isso me chegava como um apelo para que a ajudasse. Então, eu me dirigi até você. Toquei no seu ombro. Pedi-lhe que saísse dali. Aquilo não era para você. Esquisito porque em todos os momentos eu me sentia aflita, desesperada e doente, como se eu fosse a própria Clarice Lispector. Você me atendeu. Levantou-se e se dispôs a me acompanhar. De costas já para o grupo que continuava, sofregamente cavando, saí levando-a pela mão. Senti, então, que você relutava ainda. E olhava para trás. Pesarosa de se afastar dali, como se lá estivesse guardada a sua última esperança. Caminhamos um pouco, mãos dadas, sem falar. Você chorava muito, e de vez em quando se desprendia de mim e fitava longamente suas duas mãos vazias. Uma ao lado da outra. E soluçava: vazias, Azalea! Eu as retomava, com medo que você voltasse para aquele trabalho de loucos. Foi aí, então, que surgiu à nossa frente o homem. Todo em ouro, mas era vivo pois andava e sorria bondoso, amigo. Conhecido seu. Meu, não. Você gritou o nome e correu para ele. Abraçados, muito unidos, eu já não distinguia quem era de ouro, você ou ele. Ambos brilhavam e uma claridade, uma luz intensa tomou conta de tudo. Acordei chorando muito. Contei o sonho aos meus, na mesa do café. Era domingo. Meu cunhado disse: ‘Olhe, Clarice Lispector deve estar hoje no Jornal do Brasil, vou lá fora comprar um para você.’ Daí já comecei com esta vontade de lhe falar. Escrevendo, pelo telefone, de algum modo eu queria lhe falar. Meu cunhado voltou e disse: ‘Ela escreve aos sábados.’ Esperei até o próximo sábado (nos outros dias da semana leio outro matutino). E aquele sábado, o seu jornal fez com que Clarice entrasse, nesta manhã de sol e de friozinho bom de abril, aqui em casa.”
Azalea não ficou apenas na carta. Enviou-me, com a carta, um rapaz novo, puro, límpido: era Domenico, com rosas brancas de trepadeira para mim. Essas rosas são muito misteriosas: quanto mais passa o tempo e elas envelhecem, mais perfumadas ficam. Telefonei para Azalea contando e ela disse que essas rosas são assim mesmo e vai me dar de presente uma muda da planta para eu pôr no meu terraço, perto das grades, para elas poderem subir e perfumar a minha vida. (Agora, por falar em perfume, senti tanta saudade, que fui para o meu quarto e passei Scandal de Lanvin pelos meus cabelos. E, como tenho cabelos claros, imaginei que tinham ficado de ouro, como no sonho de Azalea.)
Fiquei impressionada com o sonho e só sei que ele é simbólico. Perguntarei a um feiticeiro amigo meu – psicanalista – que interpretação dar ao ouro, e também à minha frase sobre ouro e pão. E eis que cheia de alegria lembrei-me de que pão tem a riqueza do trigo.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Encantação da Primavera
Só de suspiros:
O amor é um vírus...
Apenas o general de bronze continua de bronze!
O vento desrespeita todos os sinais do tráfego.
Velhinhos de gravata borboleta
Sobem e descem como autogiros.
O guarda de trânsito virou catavento.
As mulheres são de todas as cores como esses
manequins expostos nas vitrinas,
E onde é que estão, me conta,
as tuas esperanças mortas?!
Lá vão elas – tão lindas – vestidas de verde
Como Ofélias levadas pelos rios em fora
Enquanto eu nem me atrevo a olhar para o alto:
repara se não é
O Espírito Santo que vem descendo em lento voo
E até ele, até Ele, deve estar assim, – todo irisado
Como os olhos das crianças,
como as maravilhosas bolinhas-de-gude!
Com o vácuo do mundo na alma
Ficou, então, neste mundo de almas, a ruína visível, a desgraça patente, sem a treva que a cobrisse do seu carinho falso. As almas viram-se tais quais eram.
Começou, então, nas almas recentes aquela doença a que se chamou romantismo, aquele cristianismo sem ilusões, aquele cristianismo sem mitos, que é a própria secura da sua essência doentia.
O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.
“Não se pode comer um bolo sem o perder.”
Na esfera baixa da política, como no íntimo recinto das almas — o mesmo mal.
O pagão desconhecia, no mundo real, este sentido doente das coisas e de si mesmo. Como era homem, desejava também o impossível; mas não o queria. A sua religião era e só nos penetrais do mistério, aos iniciados apenas, longe do povo e dos eram ensinadas aquelas coisas transcendentes das religiões que enchem a alma do vácuo do mundo.
Fernando Pessoa, "Livro do Desassossego"
Pioneiro da autoficção e da literatura queer, Jean Genet retorna às livrarias com romance e peça escritos na prisão
Ainda menino, Jean Genet (1910-1986), que era coroinha, tinha o costume de pegar dinheiro escondido da bolsa da mãe adotiva (a biológica era prostituta e o pai, desconhecido). Passou por reformatórios na adolescência, mas não perdeu o hábito de roubar. Entre 1938 e 1941, passou quase 700 dias na cadeia. No ano seguinte, foi detido novamente (por roubar livros) e condenado a sete meses de prisão. Encarcerado, escreveu suas primeiras obras: o poema “O condenado à morte”, o romance “Nossa Senhora das Flores” e a peça “Heliogábalo”, que permaneceu décadas perdida e foi publicada pela primeira vez no ano passado, na França.
A peça e uma nova tradução do romance acabam de chegar às livrarias brasileiras, convidando à redescoberta de um autor com fama de maldito, pioneiro do que hoje chamamos de autoficção, da representação do desejo homoerótico na literatura e capaz de descrever com lirismo o que há de mais violento no sexo. A obra de Genet já circulou por aqui no século passado, em edições da Nova Fronteira, e suas peças fizeram sucesso nos palcos brasileiros — ele próprio veio ao país assistir a uma montagem de “O balcão” produzida por Ruth Escobar (que reclamou do mau cheiro dos pés do francês). Mas desde o início dos anos 2000 suas obras não ganhavam nova edição no país.
Além de “Nossa Senhora das Flores”, a Todavia vai publicar “O milagre da rosa”, que recorda a experiência de Genet, ainda adolescente, numa colônia penal; “Querelle”, ficção povoada por marginais de todo tipo e levada ao cinema por Rainer Werner Fassbinder em 1982, e “Diário de um ladrão”, relato da vida de vagabundagem do autor na Europa dos anos 1930.
— Genet é um autor que dialoga com nosso tempo, que ganha se lido em contraste com a produção de hoje. Empreitadas como a autoficção, a literatura como performance, as poéticas do corpo e da sexualidade: tudo isso já aparece em Genet, de uma maneira ou outra — afirma Leandro Sarmatz, diretor editorial da Todavia.
Em 1949, já um autor festejado, Genet foi condenado à prisão perpétua por seus crimes, mas obteve o perdão presidencial graças a mobilização de intelectuais e artistas como Jean-Paul Sartre, André Gide e Pablo Picasso. Depois de Maio de 1968, engajou-se politicamente, foi solidário aos Panteras Negras americanos e à causa palestina, e sempre viveu abertamente a homossexualidade. Sua obra fala de sexo sem nenhum pudor e transforma criminosos em heróis, “revelando aos burgueses entristecidos que pela vida cotidiana deles passam rente assassinos encantadores”, nas palavras do narrador de “Nossa Senhora das Flores”.
O romance acompanha a trajetória de Divina, descrita pelo biógrafo Edmund White como “a primeira drag queen da literatura”, num bairro parisiense povoado de boêmios, delinquentes, prostitutas, cafetões (como Gostoso-de-Pé-Pequeno, amante da protagonista) e o cafajeste de olhos azuis conhecido como Nossa Senhora das Flores. De sua cela decorada com fotografias de bandidos recortadas de jornais e revistas, o narrador conta a história enquanto se masturba. “Prazer do solitário, gesto de solidão, que faz com que você seja suficiente para você mesmo, possuindo intimamente os outros, que servem a seu prazer sem disso suspeitarem”, diz ele. Sartre, que escreveu a hagiografia “Saint Genet: ator e mártir”, chamou o livro de “épico da masturbação”.
— Genet é um caso à parte na literatura erótica. Talvez o único que tenha conseguido transmitir a sordidez do ambiente carcerário com a mesma dose de poesia e sensualidade — afirma o escritor Glauco Mattoso, que encontrou no francês algumas de suas próprias obsessões, como “o sadomasoquismo e o fetichismo podólatra”. — Genet mantém esse equilíbrio entre o sórdido e o sublime o tempo todo, sem deixar cair a peteca, sem esconder, em nenhum momento, seu tesão pelos companheiros, por suas mazelas e taras.
No prefácio a “Heliogábalo”, o pesquisador François Rouget (que descobriu o texto na biblioteca de Harvard), escreve que a peça é “um testemunho comovente e singular dos primórdios literários de Jean Genet”. O protagonista é o jovem imperador romano Heliogábalo, que parece investido em dinamitar o próprio poder, ao ponto de a avó planejar seu assassinato para impedir que a família perca o trono. “Meu neto destrói a si mesmo. Tendo se identificado com o Império, ele destrói o Império”, lamenta a senhora, a reclamar da “facilidade” do “garoto imperador” de “se metamorfosear, se quiser chamar assim, em marginal, em cafetão, em prostituta”.
Heliogábalo zomba dos deuses, dos sacerdotes e dos soldados, e promete distribuir seus bens entre as prostitutas e os ladrões. “Deposito toda a minha glória em não ser respeitado”, insiste o imperador, que se veste de mulher para seu amante, o cocheiro Aeginus. A rejeição dos valores e da moral estabelecidos, assim como o elogio da desobediência e daquilo é que considerado vil, característicos do comportamento de Heliogábalo, são a marca da literatura (e da biografia) de Genet.
— Genet sempre esteve confortável na posição de marginal — afirma Régis Mikail, editor da Ercolaon e tradutor da peça. — É comovente a intimidade dele com a escrita. Não que ele escrevesse como uma forma de terapia ou para botar para fora. Ele parte da própria experiência, mas está sempre atento à experiência do outro, ao que pode ser universal.
Genet é uma das principais referências da autoficção contemporânea (sobretudo francesa) e inspirou autores como Annie Ernaux e Édouard Louis. A Nobel de Literatura pinçou uma frase dele (“Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando se traiu”) como epígrafe de “O lugar”, livro que dá início a seu projeto “autossociobiográfico”. Louis fez o mesmo em “Mudar: método”: “Eu não sou nada além de um pretexto”.
O pesquisador Walmir Lacerda Gois ressalta as diferenças entre Jean Genet e os dois autores de autoficção que prestam homenagem ao escritor maldito em sua obra. Enquanto Annie Ernaux descreve a própria escrita como “plana” (objetiva e sem adornos) e Édouard Louis “constrói seu projeto autobiográfico contra a literatura”, deixando as figuras de linguagem de lado, Jean Genet aposta no lirismo.
— A partir da própria vida, Genet inventa um universo ficcional rico em imagens e em referências às literaturas clássica e popular. Diferentemente de Ernaux e Louis, que se concentram no relato biográfico. Ele faz uma literatura que convida à imaginação — afirma o pesquisador.
“Embora eu me esforce para ter um estilo descarnado, mostrando o osso, eu gostaria de enviar a vocês, do fundo de minha prisão, um livro carregado de flores, de anáguas brancas como neve, de fitas azuis”, escreve o autor em “Nossa Senhora das Flores”.
A obra de Genet volta às livrarias num momento em que o mercado editorial, atento à demanda do público por diversidade, resgata autores gays do passado, como Caio Fernando Abreu, James Baldwin e Christopher Isherwood. Genet, porém, é maldito também dentro da literatura queer. Ele não se interessava em contribuir para a normalização de sexualidades dissidentes, construindo personagens gays que parecessem aceitáveis ao público e imitassem a lógica das relações heterossexuais burguesas. Os homossexuais que povoam seus livros amam e também cometem toda sorte de crimes. Eles não se prendem a identidades fixas (Divina, a heroína de “Nossa Senhora das Flores”, é tratada tanto no feminino como no masculino) e buscam o gozo a todo custo.
Walmir Lacerda Gois explica que, embora valorize “identidades marginalizadas”, a obra de Genet não está comprometida em ser “resistência”, na contramão de boa parte da produção contemporânea.
— A literatura de Genet não tem nada a ver com esse discurso político da resistência. Genet é ataque. Inclusive, está aí uma lição política para o nosso tempo: quem resiste é porque está apanhando. Genet mostra que é preciso parar
de apanhar e atacar de volta.
Ter ou não ter
E penso com saudade dos bons tempos em que, em vez de não ter mais idade, ainda não a tínhamos. E sonhávamos com tudo o que viria, quando tivéssemos. Entrar em filme proibido até 14 anos. Beber e fumar. (O importante não era a bebida e o cigarro, era a pose que os adultos faziam bebendo e fumando. Eu não via a hora de ficar adulto para poder bater com a ponta do cigarro na minha cigarreira prateada. Ficar adulto era adquirir a pose).
Ainda não ter idade significava não beijar como beijavam nos filmes proibidos até 14, já que nos proibidos até 18 ninguém sabia o que acontecia. Já ter idade significava poder ficar acordado até mais tarde, ganhar a chave da casa, eventualmente até deixar crescer um bigodinho. Ainda não ter idade era como ficar pinoteando no partidor, indócil, como um cavalo esperando a largada.
Não ter mais idade é ficar com esta impressão que até um ato de revolta por tudo o que não fizemos quando tínhamos idade e agora não dá mais, não seria apropriado para a nossa idade. Vida é essa lenta transformação de uma frase, de ainda não ter idade a não ter mais idade. Ou de poder ser, teoricamente, tudo que se sonhasse no futuro, ou só poder ser, teoricamente, Papa. E por pouco tempo.
sábado, agosto 30
O homem que odiava a segunda-feira
Ele não travou o despertador. Ficou olhando para o teto, contemplando os desenhos que a luz do sol produzia, atravessando as venezianas de madeira. Sempre tinha sido apaixonado por Doris Day, pela sua voz límpida, podia entender cada palavra que ela dizia. Onde estará Doris, quantos anos terá? Durante décadas fez o papel de virgem e, mesmo sabendo que era mentira, todos acreditavam. Porque a gente quer acreditar, a maior mentira torna-se verdade.
Remoía pensamentos incompletos e superficiais porque era um cinéfilo inveterado. Tinha começado criança, comprando balas Fruna, que traziam figurinhas de artistas, depois colecionara Cinelândia e Filmelândia, passara aos Cahiers du Cinéma, Sight and Sound, Film Review. Ah, a boa fase dos Cahiers com suas capas amarelas, falando de Godard, Truffaut, Chabrol, Doniol Valcroze, Demy, Malle, Belmondo, Trintignant, Moreau, Albicocco, Resnais, Brocca, Delphine Seyrig, Varda, Anna Karina, Jean Seberg, Marie Laforêt, ah, os olhos de ouro da Laforêt. Pensava intensamente para fugir de sua tragédia: saber que era segunda-feira.
As segundas-feiras existiam a atemorizá-lo, deixando-o tenso, com suores e calafrios, dores nos músculos, visão embaçada e uma nevralgia que paralisava o lado direito do rosto. Ainda na cama sentia tonturas, cãibras, rolava insone. Os sintomas se iniciavam no domingo à noite, ao ouvir a música do Fantástico, subindo das televisões de todos os apartamentos, ou quando Silvio Santos passava a gritar: Quem quer dinheiro? Significava o fim do final da semana. E o início da dolorosa peregrinação noturna ao encontro da segunda-feira.
Quando teve os primeiros sintomas, a família ficou alarmada. Como não conseguiu nenhum médico acordado às sete da manhã, foi ao pronto-socorro, mas a fila era tão grande que, ao ser atendido, três horas mais tarde, sentia-se melhor. O médico (Ou teria sido um enfermeiro?) examinou-o apressado, receitou analgésicos e indicou a farmácia: Compre nessa! Quando o dia terminou, ele passava bem e creditou ao analgésico. Na próxima semana, os mesmos sintomas. Assim sucessivamente, até que a mulher intuiu: "Isso é coisa da segunda-feira! Você precisa é de um psicólogo". O cunhado foi taxativo: "Preguiça, nada mais!".
Injustiça, ele era capaz de trabalhar no sábado, domingo, nos feriados, a noite inteira, se preciso. Todavia, a segunda-feira era fatal. No domingo, quando entravam os letreiros dos últimos programas de televisão, ele se via dominado pela inquietação. O psicólogo, porque afinal, para satisfazer a mulher, consultara um, recomendara: "Pense em outras coisas. Esqueça o dia, faça um grande jantar, vá ao cinema na sessão das dez, apanhe um filme longo na locadora". Tinha aconselhado: Cleópatra, O chefão, My fair lady, Lawrence da Arábia, Dr. Jivago, Era uma vez na América, Berlin Alexander Platz (com catorze horas de duração, poderia ser assistido em três domingos, quatro horas e meia por domingo), A lista de Schindler, Titanic, A noviça rebelde, Napoleão, E o vento levou..., Assim caminha a humanidade.
Não adiantava. Quando ele percebia que o filme tinha passado da metade e o domingo estava terminando, a ansiedade o dominava, a febre recomeçava insinuante, ele acabava desligando o vídeo. Um amigo recomendou:
-- Apanhe sua mulher. Vá para um motel. Passe a noite na farra, vai cair de cansado, esquecer o medo.
-- A minha mulher num motel?
-- Por que não?
-- E se alguém nos vê entrando? O que vai pensar? Que ela é puta? Minha amante?
-- Você, com esses problemas? Está mal, muito mal, mesmo! Você? Que foi o que bem sei? Convide tua mulher. Vai se surpreender. Ela pode te revelar coisas surpreendentes. Motéis viram a cabeça das mulheres sérias. Tua mulher é séria, não é?
-- Claro.
-- Não gostaria que ela, por uns momentos, não fosse?
Não se pode dizer que ele não tentou reagir. Porém, no domingo, mal o lanche da noite começava, ele olhava para o relógio. Oito horas, daqui a quatro será segunda-feira. Seus olhos se enchiam de lágrimas, o coração apertava, a comida perdia o gosto. A mulher tentara embriagá-lo, queria que ele tomasse tranquilizantes. Ele recusava, alegando que precisava se enfrentar de cara limpa. Foi se enchendo de um ódio cada vez maior pela segunda-feira, desenvolveu alergias, acordava com inchaços nas juntas, nariz escorrendo, olhos empapuçados. Os dentes doíam, vinha uma tosse seca e persistente que terminava somente na terça-feira.
Cada vez, um sintoma. Comparado ao que ganhava, gastava uma fortuna em médicos. Os convênios recusavam pagar, alegavam que eram doenças congênitas. No emprego, deram uma alternativa. Ele não trabalharia na segunda-feira, faria plantão no final de semana. No entanto, no dia do plantão, ele tomava consciência de que aquele dia estava substituindo a segunda-feira. Correspondia a uma. Foi levado a centros espíritas, terreiros de macumba, tarólogos, astrólogos, médicos ortomoleculares, cultos carismáticos, invocadores de anjos da guarda, jogadores de búzios. Nenhum efeito.
Um médico não-ortodoxo, depois de pedir I. I I I exames de sangue, comunicou que, segundo revistas científicas tailandesas, ele era portador do MondayMonday, vírus raro, e que não havia ainda medicamentos ou vacinas. As pesquisas eram recentes. O vírus vinha se espalhando no planeta globalizado. O que posso fazer? Ele indagava ansioso, irritado com aquele sofrimento semanal. Imaginou como as mulheres, todos os meses, suportavam as regras, a tensão pré-menstrual, as dores das cólicas. Santas mulheres, reverenciou.
Uma tarde, pensou com limpidez: a causa existe, está diagnosticada. A solução é acabar com a segunda-feira. Eliminá-la do calendário. Somente assim o mundo será salvo dessa epidemia que chega com força mil vezes superior à da gripe espanhola, a peste negra, a aids, a paixão pelo esoterismo, o culto da auto-ajuda. A princípio, foi apenas uma ideia lançada pelo dono da padaria da esquina, sempre dado a palpites: "Se a segunda-feira lhe faz mal, fuja dela, acabe com ela, pois". Havia um tom de blague. No entanto, nosso homem tinha perdido a capacidade de perceber brincadeiras. Acabar com a segunda-feira! É isso! De uma vez por todas. Mas como? Quem pode mudar esse estado de coisas? É uma convenção tão arraigada no mundo. O dia maldito existe por toda a parte, todos os países, até nos conventos, nas prisões, nos pólos norte e sul, no meio do deserto, entre os esquimós. Existirá entre os índios caiapós? Monday, montag, lundi, lunedi, lunes. O dia desgraçado foi celebrado em uma canção dos Beatles.
Em uma segunda-feira de março, nosso homem foi tomado por calafrios intensos e pediu cobertas. Trouxeram edredons e mantas. Ele batia os dentes, um pivô soltou-se, suava, percebia o corpo esfriando, esquentando. Depois, adormeceu, tranquilo. Ao acordar, a mulher velava à cabeceira, inquieta, sem saber se chamava o médico. Ele levantou-se, num só movimento, como um acrobata que acaba de realizar um exercício e vai agradecer ao público. Comunicou:
-- De nada adianta eliminar sintomas, se a origem da moléstia persiste. Portanto, meu caso é fácil. Minha doença é a segunda-feira. Cancelando-a, tudo estará resolvido.
-- Parece coisa de louco.
-- Acha?
-- A falta de sono e o cansaço te deixam estressado. E assim, desde que nos casamos. Pensou? Se você elimina a segunda-feira, a terça se transforma em segunda, é o segundo dia da semana. E o domingo será o primeiro.
-- Está certo.
-- O domingo não pode ser o primeiro! Nunca!
-- Quem disse?
-- Está na Bíblia, o Senhor descansou no sétimo dia. O domingo.
-- A segunda não é o primeiro porque se chama segunda-feira. Domingo é o primeiro dia.
-- Quer me confundir?
-- Se o domingo é o sétimo e em seguida vem a segunda-feira, onde está o primeiro dia? O primeiro não existe! Alguém, em algum momento, eliminou o primeiro dia. Tenho de pesquisar. Se o primeiro dia foi eliminado, podemos cancelar também o segundo.
-- Não me saia por aí com bobagens. Te conheço, não é a primeira vez que se fixa em uma besteira!
-- Não começa... Você é inteligente, pense! Se não existe o primeiro dia, falta um dia na semana. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. E este é o último, onde ficou o primeiro?
-- E se quando a semana foi criada, o primeiro não existia e o segundo era primeiro? As palavras podem ter variado de significado em séculos.
-- E quem conhece a história da semana? Quando nasceu, quem teve a ideia, quem montou a ordem dos dias? Quem garante que não tinha oito dias em vez de sete?
A mulher era pessoa razoável, ex-publicitária que tinha abandonado a carreira quando percebeu que odiava os produtos para os quais tinha de criar campanhas. Começara na tarde em que redigia uma frase para despertar o apetite das pessoas com um suculento molho de tomate. Seus dedos incharam quando digitava a frase e quanto mais elogiava o horrendo molho em lata, mais a mão engrossava, a ponto de não distinguir os dedos. Deu um basta, escreveu com tipos enormes: O molho é uma merda. Tirou uma cópia, enviou ao diretor de criação, apanhou a bolsa e se foi. Ao deixar o edifício da agência, a mão tinha voltado ao normal.
-- Vamos admitir! Você está certo! Baseado em que se pode eliminar a segunda-feira?
-- No ódio que todos têm dela. Nas alergias que provoca. Nas neuroses, traumas, paranoias. Metade da violência e da ansiedade do país acabaria com o fim das segundas-feiras.
-- E os transtornos? A segunda-feira é o reinicio, o dia em que tudo se abre, bancos e repartições e supermercados funcionam, a cidade se normaliza. É quando as pessoas se organizam. Dependesse de mim, eu acabaria com o final da noite de domingo.
-- Sabe por quê? É nela que a ansiedade da segunda-feira se instala.
Ela o conhecia há dezessete anos. Sabia que a ideia não seria abandonada. Ele iria até o fim. Perdera dez empregos por causa de coisas assim, metia-se em situações esdrúxulas. Era uma palavra esquisita essa, tinha usado uma vez em uma campanha e o cliente ficara revoltado.
-- Não me venha com essa! Falei por falar. A noite de domingo é um pé no saco!
-- Estou esclerosado? Pior do que pensava? Além do que sofro, tenho de passar por mais essa? A incompreensão em minha casa?
-- Quero apenas evitar dissabores! Chega os problemas que você vem encontrando.
Ela adorava a palavra dissabores. Agora, parecia mais preocupada. Eliminar a segunda-feira é uma ideia que passa somente pela cabeça de um desequilibrado.
-- Hoje não vou trabalhar. Vou procurar em meus livros se existe alguma possibilidade de eliminar a segunda-feira.
-- Livros? Você não tem nenhum livro sobre o assunto!
--Verdade... Vou pesquisar em alguma parte.
Passou o dia ligando para advogados especialistas em códigos, queria saber se existia uma lei instituindo a segunda-feira. Se houvesse a lei, então o caminho seria longo. Não o atendiam, queriam marcar hora, entrevista, as consultas deviam ser pagas. Por acaso, um funcionário afirmou que a lei sobre a segunda-feira existia, era preciso pagar as buscas.
Existia! Então, teria de procurar um deputado, explicar o caso, convencê-lo a aderir à causa. Há coisas que convencem políticos: receber um bom suborno, ganhar votos com suas leis, obter publicidade favorável ou aprovar algo que traga benefícios financeiros para uma categoria, recebendo dos lobbies polpudas quantias ou promessas de financiamento de campanhas. Alegrou-se. Esta seria uma causa extremamente popular. Todos votariam em um homem propondo a extinção da segunda-feira.
Ele passou o dia excitado, procurando localizar um deputado federal na cidade. Nas sedes dos partidos asseguravam: "Vai ser difícil, todos estão em Brasília, trabalham muito, começam cedo, vão até altas horas da noite. Só se o senhor for a Brasília!". Percebeu, todavia, que não o desestimulavam, ao contrário, forneciam até o telefone dos parlamentares na capital. Desilusão! Números ocupados permanentemente. Ou eram atendidos por uma secretária que passava para a Assessora Um, que religava para o Assessor Dois, que transferia para o Assessor Três. Um dia, por engano, ligaram para a Amante principal. Educado, discreto, ele pediu desculpas. E rodou até bater na autoridade máxima, o Chefe de gabinete. Pessoa apressada, ríspida, comandante de um reino.
E ele respondeu a mesma coisa: "Desculpe-me senhor o Assessor Para os Dias do Ano que é quem movimenta o calendário de sua excelência não está na sala foi ao plenário assessorar nosso líder em importantes debates que ocorrem agora. Ligue na próxima segunda-feira uma vez que assuntos sobre a segunda-feira só podem ser tratados às segundas-feiras. De qualquer modo vejo aqui que o Assessor não estará na próxima nem na seguinte nem consequente uma vez que acompanhará sua excelência em viagens de estudos para a comissão em que atua. Mas anotei seu nome seu telefone seu endereço e veja que coincidência o senhor mora na mesma rua em que nasceu a mãe do nobre deputado e ele tem carinho especial por essa rua e pelas pessoas que nela habitam certamente fará tudo o que estiver ao seu alcance daremos retorno muito obrigado e não se esqueça de que as eleições de outubro estão se aproximando e seu candidato só pode ser o nosso líder enviaremos folhetos sobre a sua atuação".
Ele ficava sem fôlego ao ouvir. Chefes de gabinete falavam sem vírgulas, apenas com um e outro ponto para respirar. Percebeu que a caminhada seria exaustiva. No entanto, sentiu-se revigorado. Agora, tinha um projeto na vida. Uma utopia a perseguir. A sua missão impossível. Isso mantém um homem vivo. Chega de alergias, tremores, estresse.
Começou a escrever cartas, desejando saber se havia um lugar onde a segunda-feira não existia. Uma carta levava a outra. Uma pessoa indicava outra. Recorreu à internet. As informações se sucediam, vindas de professores de geografia, história, astrólogos, astrônomos, engenheiros, químicos, semanólogos, viajantes. Um astronauta americano, gentil como tem de ser um homem que esteve na Lua, respondeu amavelmente: "Na Lua não há segunda-feira, aliás não há semana, nem mês ou ano, o tempo ali não é medido, nem dividido, ele se escoa infinito". Se nos outros planetas, satélites, estrelas não há segundas-feiras, o meu destino é mergulhar na galáxia, ele ponderou com a mulher e ela o olhou ressabiada. Um redator de guias turísticos acenou com um principado indiano, perdido entre montanhas de pedra. O problema é que quando os turistas chegam a esse lugar, levam costumes tão arraigados que ao não saber se o dia é sábado, domingo, ou segunda-feira, começam a passar mal, ficar ansiosos. Tiveram de criar um calendário falso, usado apenas para fins turísticos, não reconhecido ou obedecido pelos nativos. A semana está incrustada nos civilizados como uma pedra preciosa em um anel.
Consultaram todos os especialistas, inclusive Saroyan, o armênio que vivia num trapézio volante e tinha na cabeça todo o calendário gregoriano. O diagnóstico: "Nenhuma possibilidade de cura". Contataram um soteropolitano atabalhoado cujo ofício era redigir calendários perpétuos para revistas e jornais. O homem mantinha urna coluna semanal, respondendo a indagações do tipo: que dia da semana foi 31 de julho de 1911. Ou que dia da semana foi 14 de março de 1948. Também não ajudou. Nos dezessete mil livros que ele possuía não havia registros de homens que odiavam as segundas-feiras. Surgiram casos de agressividade contra o domingo, os feriados, os dias santos. Descartados, uma vez que se tratava de padrões mesquinhos, de executivos viciados em trabalho que se desesperavam com a semana tão curta (adoravam fazer dinheiro para as instituições em que trabalhavam) e fiéis de religiões que não acreditavam na sacralidade de certas datas.
Ele estava determinado. Haveria de acabar com a segunda-feira, a qualquer custo. Em todas as pessoas com quem conversou percebeu enorme entusiasmo. Sabia que haveria resistência da indústria, do comércio, dos bancos e dos coletores de impostos. Dentro em breve estariam terminadas as segundas-feiras, a ansiedade dos finais de domingo, a angústia das longas e silenciosas tardes repletas de melancolia.
Seu plano era perfeito. Do domingo se saltaria para terça-feira, ficando a segunda sem nome. Esse dia seria uma câmara de descompressão. Nele seria restabelecido o alívio, as pessoas ganhariam ânimo para trabalhar, começariam a semana bem-preparadas, cheias de força física e estímulo para produzir mais. Uma pessoa alegre, de bem com a vida, rende, os patrões iriam adorar. Em seguida, surgiu outra ideia. Com o tempo, se faria campanha para extinguir a sexta-feira. Outra câmara, preparando as pessoas para o repouso do fim de semana. Não se descansa trazendo ainda a pressão dos compromissos. Uma semana composta apenas de terça, quarta e quinta-feira era a utopia do mundo. Poderia ser um movimento universal.
Saía todas as manhãs com um manifesto redigido em papel almaço pautado, percorria as ruas colhendo assinaturas. Via como a segunda-feira era odiada, as pessoas assinavam com prazer, cumprimentando-o. "Finalmente se faz alguma coisa para abolir esse dia maldito. É disso que precisamos, de iniciativas particulares. Pode-se até fundar uma organização não-governamental." Também era ridicularizado, enxotado, ofendido, chegaram a cuspir nele, empurraram-no contra as paredes, enfiaram a sua cabeça em um bueiro cheio de coisas podres. Ele não desistia, estava apaixonado pela causa. As folhas tomavam duas estantes, a mulher olhava para elas e sacudia a cabeça, porém não tentava impedir que ele fosse até o fim, mostrava-se feliz. A cada dia ele trazia histórias engraçadas ou estranhas, os dois analisavam o comportamento das pessoas. Ela só não acreditou quando ele contou a respeito de um homem que tinha perdido a mão na caixa do correio, estava na fila dos Encontrados e não parecia desesperado, apenas tentava recuperar a mão. O entusiasmo dele era crescente. Depois do Brasil, buscaria assinaturas no mundo inteiro. Era preciso reunir as pessoas, debater o assunto, montar uma organização. Marcou o dia, ela redigiu o folheto, sabia montar frases insinuantes, convencer as pessoas a consumir.
Imprimiram vinte mil volantes. Perto da casa havia um cinema recém-fechado, eles conheciam o proprietário, era também dono de uma tecelagem cliente da agência em que ela trabalhara. O homem concordou em alugar por uma noite, desde que eles pagassem as despesas de luz e varressem a sala, devia haver uma boa poeira amontoada. Seriam responsabilizados pelo vandalismo, caso ocorresse, nunca se sabe com multidões. Assim, os dois começaram a distribuir os volantes. E se alternavam, um dia, ela saía com o manifesto, recolhendo assinaturas e ele com folhetos. Depois, invertiam. Esperavam umas mil pessoas na primeira noite, o entusiasmo era grande. "As pessoas andam vazias", ele comentava, "precisam de alguma motivação, um sonho, um sentido para a vida."
Ao apanhar o elevador, certa manhã, cheio de vigor, ouviu a vizinha conversando com o médico. Era médico, estava todo de branco: "Pois é, doutor! Veja só se pode ser. Meu marido não suporta a terça-feira, fica mal, muito mal, perde as forças, nem se levanta da cama. Veja só! O corpo inteiro dói, tem cãibras, as juntas incham. Ele odeia as terças-feiras. O que vamos fazer? Estamos ficando todos loucos, ele até fala em eliminar a terça-feira, está com os planos prontos. Veja só se pode ser!".
Ignácio de Loyola Brandão
A safra dos tatus
O rumor dos bilros esmoreceu e Cesária levantou os óculos para a afilhada:
– Tatus? Que invenção é essa, menina? Quem falou em tatu?
– A senhora, minha madrinha, respondeu a benzedeira de quebranto. Uns tatus que apareceram lá na fazenda no tempo da riqueza, da lordeza. Como foi?
Cesária encostou a almofada de renda à parede, guardou os óculos no caritó, acendeu o cachimbo de barro ao candeeiro, chupou o canudo de taquari:
– Ah! Os tatus. Nem me lembrava. Conte a história dos tatus, Alexandre.
– Eu? exclamou o dono da casa, surpreendido, erguendo-se da rede. Quem deu seu nó que o desate. Você tem cada uma!
Dirigiu-se ao copiar e ficou algum tempo olhando a lua.
– Se os senhores pedirem, ele conta, murmurou Cesária aos visitantes. Aperte com ele, seu Libório.
Ao cabo de cinco minutos Alexandre voltou desanuviado, pediu o cachimbo à mulher, regalou-se com duas tragadas:
– Ora muito bem.
Restituiu o cachimbo a Cesária e foi sentar-se na rede. Mestre Gaudêncio curandeiro, seu Libório cantador, o cego preto Firmino e Das Dores exigiram a história dos tatus, que saiu deste modo.
– Saberão vossemecês que este caso estava completamente esquecido. Cesária tem o mau costume de sapecar umas perguntas em cima da gente, de supetão. Às vezes não sei onde ela quer chegar. Os senhores compreendem. Um sujeito como eu, passado pelos corrimboques do diabo, deve ter muitas coisas no quengo. Mas essas coisas atrapalham-se: não há memória que segure tudo quanto uma pessoa vê e ouve na vida. Estou errado?
– Está certo, respondeu mestre Gaudêncio. Seu Alexandre fala direitinho um missionário.
– Muito agradecido, prosseguiu o narrador. Isso é bondade. Pois a história que Cesária puxou tinha-se esvaído sem deixar mossa no meu juízo. Só depois de tomar um deforete pude recordar-me dela. Vou dizer o que se deu. Faz vinte e cinco anos. Hem, Cesária? Quase vinte e cinco anos. Como o tempo caminha depressa! Parece que foi ontem. Eu ainda não tinha entrado forte na criação de boi, que me rendeu uma fortuna, já sabem. Ganhava bastante e vivia sem cuidado, na graça de Deus, mas as minhas transações voavam baixo, as arcas não estavam cheias de patacões de ouro e rolos de notas. Comparado ao que fiz depois, aquilo era pinto. Um dia Cesária me perguntou: — “Xandu, por que é que você não aproveita a vazante do açude com uma plantação de mandioca?” — “Han? disse eu distraído, sem notar o propósito da mulher. Que plantação?” E ela, interesseira e sabida, a criatura mais arranjada que Nosso Senhor Jesus Cristo botou no mundo: — “Farinha está pela hora da morte, Xandu. Viaja cinquenta léguas para chegar aqui, a cuia por cinco mil-réis. Se você fizesse uma plantação de mandioca na vazante do açude, tínhamos farinha de graça.” — “É exato, gritei. Parece que é bom. Vou pensar nisso.” E pensei. Ou antes, não pensei. O conselho era tão razoável que, por mais que eu saltasse para um lado e para outro, acabava sempre naquilo: não havia nada melhor que uma plantação de mandioca, porque estávamos em tempo de seca braba, a comida vinha de longe e custava os olhos da cara. Íamos ter farinha a dar com o pau. Sem dúvida. E plantei mandioca. Endireitei as cercas, enchi a vazante de mandioca. Cinco mil pés, não, catorze mil pés, ou mais. No fim havia trinta mil pés. Nem um canto desocupado. Todos os pedaços de maniva que peguei foram metidos debaixo do chão. — “Estamos ricos, imaginei. Quantas cuias de farinha darão trinta mil pés de mandioca? Era uma conta que eu não sabia fazer, e acho que ninguém sabe, porque a terra é vária, às vezes rende muito, outras vezes rende pouco, e se o verão apertar, não rende nada. Esses trinta mil pés não renderam, isto é, não renderam mandioca. Renderam coisa diferente, uma esquisitice, pois, se plantamos maniva, não podemos esperar de modo nenhum apanhar cabaças ou abóboras, não é verdade? Só podemos esperar mandioca, que isto é a lei de Deus. A gata dá gato, a vaca dá bezerro e a maniva dá mandioca, sempre foi assim. Mas este mundo, meus amigos, está cheio de trapalhadas e complicações. Atiramos num bicho, matamos outro. E sinha Terta, que mora aqui perto, na ribanceira do rio, escura e casada com homem escuro, teve esta semana um filho de cabelo cor de fogo e olho azul. Há quem diga que sinha Terta não seja séria? Não há. Sinha Terta é um espelho. E por estas redondezas não existe vivente de olho azul e cabelo vermelho. Boto a mão no fogo por sinha Terta e sou capaz de jurar que o menino é do marido dela.
Vossemecês estão-se rindo? Não se riam não, meus amigos. Na vida há muita surpresa, e Deus Nosso Senhor tem desses caprichos. Sinha Terta é mulher direita. E as manivas que plantei não deram mandioca. Seu Firmino está aí fala não fala, com uma pergunta na boca, não é, seu Firmino? Tenha paciência e escute o resto. Ninguém ignora que plantação em vazante não precisa de inverno. Vieram umas chuvinhas e a roça ficou uma beleza, não havia coisa parecida por aquelas beiradas. — “Valha-me Deus, Cesária, desabafei. Onde vamos guardar tanta farinha?” Mas estava escrito que não íamos arrumar nem uma prensa. Quando foi chegando o tempo da arranca, as plantas começaram a murchar. Supus que a lagarta estivesse dando nelas. Engano. Procurei, procurei, e não descobri uma lagarta. — “Santa Maria! cismei. A terra é boa, aparece chuva, a lavoura vai para diante e depois desanda. Não entendo. Aqui há feitiço!” Passei uns dias acuado, remexendo os miolos, e não achei explicação. Tomei aquilo como castigo de Deus, para desconto dos meus pecados. O que é certo é que a praga continuou: no fim de S. João todas as folhas tinham caído, só restava uma garrancheira preta. — “Caiporismo, disse comigo. Estamos sem sorte. Vamos ver se conseguimos levar ao fogo uma fornada.” Encangalhei um animal, pendurei os caçuás nos cabeçotes, marchei para a vazante. Arranquei um pau de mandioca, e o meu espanto não foi deste mundo. Esperava tamboeira choca, mas, acreditem vossemecês, encontrei uma raiz enorme e pesada que se pôs a bulir. A bulir, sim senhor. Meti-lhe o facão. Estava oca, só tinha casca. E, por baixo da casca, um tatu-bola enrolado. Arranquei outra vara seca: peguei o segundo tatu. Para encurtar razões, digo aos amigos que passei quinze dias desenterrando tatus. Os caçuás enchiam-se, o cavalo emagreceu de tanto caminhar e Cesária chamou as vizinhas para salgar aquela carne toda. Apanhei uns quarenta milheiros de tatus, porque nos pés de mandioca fornidos moravam às vezes casais, e nos que tinham muitas raízes acomodavam-se famílias inteiras. Bem. O preço do charque na cidade baixou, mas ainda assim apurei alguns contos de réis, muito mais que se tivesse vendido farinha. A princípio não atinei com a causa daquele despotismo e pensei num milagre. É o que sempre faço: quando ignoro a razão das coisas, fecho os olhos e aceito a vontade de Nosso Senhor, especialmente se há vantagem. Mas a curiosidade nunca desaparece do espírito da gente. Passado um mês, comecei a matutar, a falar sozinho, e perdi o sono. Afinal agarrei um cavador, desci à vazante, esburaquei tudo aquilo. Achei a terra favada, como um formigueiro. E adivinhei por que motivo a bicharia tinha entupido a minha roça. Fora dali o chão era pedra, cascalho duro que só dava coroa-de-frade, quipá, e mandacaru. Comida nenhuma. Certamente um tatu daquelas bandas cavou passagem para a beira do açude, topou uma raiz de mandioca e resolveu estabelecer-se nela. Explorou os arredores, viu outras raízes, voltou, avisou os amigos e parentes, que se mudaram. Julgo que não ficou um tatu na catinga. Com a chegada deles as folhas da plantação murcharam, empreteceram e caíram. Estarei errado, seu Firmino? Pode ser que esteja, mas parece que foi o que se deu.
Graciliano Ramos. "Histórias de Alexandre"
O primeiro olhar pela janela de manhã
O velho livro redescoberto.
Rostos entusiasmados.
Neve, o câmbio das estações.
O jornal.
O cão.
A dialética.
Duchas, nadar.
Música antiga.
Sapatos cômodos.
Compreender.
Música nova.
Escrever, plantar.
Viajar, cantar.
Ser cordial.
Bertolt Brecht
O macaco que quis ser escritor satírico
Estudou muito, mas logo se deu conta de que para ser escritor satírico lhe faltava conhecer as pessoas e se aplicou em visitar todo mundo e ir a todos os coquetéis e observá-las com o rabo do olho enquanto estavam distraídas com o copo na mão.
Como era verdadeiramente muito gracioso e as suas piruetas ágeis divertiam os outros animais, era bem recebido em toda parte e aperfeiçoou a arte de ser ainda mais bem recebido.
Não havia quem não se encantasse com sua conversa, e quando chegava era recebido com alegria tanto pelas Macacas como pelos esposos das Macacas e pelos outros habitantes da Selva, diante dos quais, por mais contrários que fossem a ele em política internacional, nacional ou municipal, se mostrava invariavelmente compreensivo; sempre, claro, com o intuito de investigar a fundo a natureza humana e poder retratá-la em suas sátiras.
E assim chegou o momento em que entre os animais ele era o mais profundo conhecedor da natureza humana, da qual não lhe escapava nada.
Então, um dia disse vou escrever contra os ladrões, e se fixou na Gralha, e começou a escrever com entusiasmo e gozava e ria e se encarapitava de prazer nas árvores pelas coisas que lhe ocorriam a respeito da Gralha; porém de repente refletiu que entre os animais de sociedade que o recebiam havia muitas Gralhas e especialmente uma, e que iam se ver retratadas na sua sátira, por mais delicada que a escrevesse, e desistiu de fazê-lo.
Depois quis escrever sobre os oportunistas, e pôs o olho na Serpente, a qual por diferentes meios — auxiliares na verdade de sua arte adulatória — conseguia sempre conservar, ou substituir, por melhores, os cargos que ocupava; mas várias Serpentes amigas suas, e especialmente uma, se sentiriam aludidas, e desistiu de fazê-lo.
Depois resolveu satirizar os trabalhadores compulsivos e se deteve na Abelha, que trabalhava estupidamente sem saber para que nem para quem; porém com medo de que suas amigas dessa espécie, e especialmente uma, se ofendessem, terminou comparando-a favoravelmente com a Cigarra, que egoísta não fazia mais do que cantar bancando a poeta, e desistiu de fazê-lo.
Depois lhe ocorreu escrever sobre a promiscuidade sexual e desenvolveu sua sátira contra as galinhas adúlteras que andavam o dia inteiro inquietas procurando Frangotes; porém tantas dessas o tinham recebidos que teve medo de ofendê-las, e desistiu de fazê-lo.
Finalmente elaborou uma lista completa das debilidades e defeitos humanos e não encontrou contra quem dirigir suas baterias, pois tudo estava nos amigos que sentavam à sua mesa e nele próprio.
Nesse momento renunciou a ser escritor satírico e começou a se inclinar pela Mística e pelo Amor e coisas assim; porém a partir daí, e já se sabe como são as pessoas, todos disseram que ele tinha ficado maluco e já não o recebiam tão bem nem com tanto prazer.
Augusto Monterroso, "A ovelha negra e outras fábulas"
Frase misteriosa, sonho estranho
Por que estas palavras que não vivi eu própria? A única hipótese, por causa da palavra ouro, vem do sonho que uma leitora teve a meu respeito. Ela o escreveu para mim. A leitora assina-se Azalea, que depois se tornou uma grande amiga. E me escreveu: “Não se impressione, nem se assuste. A interpretação é a melhor possível. Sonhei com uma espécie de canteiro imenso, com a terra toda revolvida para os lados. Junto a este canteiro, abaixadas, ajoelhadas, muitas pessoas. Todas desconhecidas para mim, que, de perto, olhavam a cena. Umas, nem eu poderia saber se as conhecia ou não, tão enterrados estavam os rostos no trabalho de revolver e revirar a terra. Procuravam ouro, Clarice. E achavam. Porque, à frente de cada uma delas se avolumava, cada vez mais, um monte brilhante que não podia deixar de ser ouro.
“No meio daquela gente, alucinada, cavando também, uma pessoa de cara muito conhecida minha: Clarice Lispector, a escritora – a que para mim, sempre foi, desde o tempo de classe de literatura do clássico, a melhor escritora de nossa língua. O rosto era tão familiar que era visto por mim como se ali estivesse alguém de minha família. Então, com ansiedade igual à sua, passei a acompanhar o seu trabalho de cavar ouro.
“Ao contrário dos outros, à sua frente, havia um monte imundo de terra. Ouro, não. Os outros cavavam e, felizes, separavam o metal brilhante, aumentando sempre mais os montes. Você, não. Cada vez que, desesperada, enterrava suas mãos na terra remexida, dali retirava punhados de cabelos, escuros, sujos, horríveis. E olhava para trás, com desespero, à minha procura, mostrava o resultado de sua busca.
“E novamente se entregava àquela louca, desesperada escavação. Seus olhares e seus gestos, mostrando-me as mãos sem ouro – nem cabelos dourados você tirava –, tudo isso me chegava como um apelo para que a ajudasse. Então, eu me dirigi até você. Toquei no seu ombro. Pedi-lhe que saísse dali. Aquilo não era para você. Esquisito porque em todos os momentos eu me sentia aflita, desesperada e doente, como se eu fosse a própria Clarice Lispector. Você me atendeu. Levantou-se e se dispôs a me acompanhar. De costas já para o grupo que continuava, sofregamente cavando, saí levando-a pela mão. Senti, então, que você relutava ainda. E olhava para trás. Pesarosa de se afastar dali, como se lá estivesse guardada a sua última esperança. Caminhamos um pouco, mãos dadas, sem falar. Você chorava muito, e de vez em quando se desprendia de mim e fitava longamente suas duas mãos vazias. Uma ao lado da outra. E soluçava: vazias, Azalea! Eu as retomava, com medo que você voltasse para aquele trabalho de loucos. Foi aí, então, que surgiu à nossa frente o homem. Todo em ouro, mas era vivo pois andava e sorria bondoso, amigo. Conhecido seu. Meu, não. Você gritou o nome e correu para ele. Abraçados, muito unidos, eu já não distinguia quem era de ouro, você ou ele. Ambos brilhavam e uma claridade, uma luz intensa tomou conta de tudo. Acordei chorando muito. Contei o sonho aos meus, na mesa do café. Era domingo. Meu cunhado disse: ‘Olhe, Clarice Lispector deve estar hoje no Jornal do Brasil, vou lá fora comprar um para você.’ Daí já comecei com esta vontade de lhe falar. Escrevendo, pelo telefone, de algum modo eu queria lhe falar. Meu cunhado voltou e disse: ‘Ela escreve aos sábados.’ Esperei até o próximo sábado (nos outros dias da semana leio outro matutino). E aquele sábado, o seu jornal fez com que Clarice entrasse, nesta manhã de sol e de friozinho bom de abril, aqui em casa.”
Azalea não ficou apenas na carta. Enviou-me, com a carta, um rapaz novo, puro, límpido: era Domenico, com rosas brancas de trepadeira para mim. Essas rosas são muito misteriosas: quanto mais passa o tempo e elas envelhecem, mais perfumadas ficam. Telefonei para Azalea contando e ela disse que essas rosas são assim mesmo e vai me dar de presente uma muda da planta para eu pôr no meu terraço, perto das grades, para elas poderem subir e perfumar a minha vida. (Agora, por falar em perfume, senti tanta saudade, que fui para o meu quarto e passei Scandal de Lanvin pelos meus cabelos. E, como tenho cabelos claros, imaginei que tinham ficado de ouro, como no sonho de Azalea.)
Fiquei impressionada com o sonho e só sei que ele é simbólico. Perguntarei a um feiticeiro amigo meu – psicanalista – que interpretação dar ao ouro, e também à minha frase sobre ouro e pão. E eis que cheia de alegria lembrei-me de que pão tem a riqueza do trigo.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
sexta-feira, agosto 29
Chove!

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.
Bom dia, ressaca
A primeira providência a tomar, quando você desprega os olhos e vê que ela está realmente a seu lado, é não demonstrar o mais ligeiro sinal de surpresa, mas tratá-la com um carinho um pouco distraído:
Bom dia, ressaquinha.
Então respire fundo três vezes. Não prestar atenção aos vagidos dela, às suas caretas, àquele hálito de abominável melancolia. Não se considere um crápula, que é isso o que ela quer. Mantenha a cabeça imóvel a fim de não denunciar, com um gemido, a sua dor sísmica. Esqueça os seus compromissos, por mais graves que sejam (o remorso é uma das brechas por onde pode penetrar a fera), fingindo-se absolutamente livre, como se dispusesse de seu tempo à vontade. É de todo necessário que ela não desconfie que você tem na cidade um encontro com um gerente de banco.
Se ela lhe oferecer maldosamente um cigarro, aceite-o, para abandoná-lo depois de três ou quatro tragadas lentas. Olhar pela janela é sempre perigoso; isso porque pode estar fazendo um magnífico dia frio e chuvoso; mas também pode uivar lá fora um sinistro e tempestuoso sol. A visão macabra de um dia luminoso costuma esmorecer sem remédio os ressacados de mais hábil talento.
Por mais violenta que seja a sua vontade de tossir, não o faça; tal coisa poderia trazer-lhe consequências imprevisíveis, sendo compensador qualquer sacrifício no sentido de adiar esse desejo para momento mais propício.
Evite o café. Faça como se fosse dormir ainda, sem cair na leviandade de prometer que jamais porá de novo a boca em álcool. Essa capitulação, além de falsa, condiciona uma desmoralização interior que insufla forças novas à inimiga.
As ressacas não morrem de amores pela cama, existindo algumas, no entanto, extremamente espertas, que se acomodam a essa situação, podendo permanecer indeterminadamente no seu leito. Escute o que lhe digo e mande vir o jornal: contorne os cronistas da noite, mergulhe com paciência nas seções de economia, caso você goste de futebol, e nas páginas esportivas, caso você se interesse por economia. Essa atitude é capaz de desorientá-la um pouco. Sem levar a mão ao coração (e se o fizer, pelo menos não revele o seu nervosismo pela taquicardia), peça um jarro de água geladíssima e duas aspirinas. Como o gato, a ressaca teme a água. Aguarde o momento preciso. No que a ressaca bobear, arraste-se até o chuveiro, escancare a torneira de água fria, enquanto escova os dentes com um exagero de pasta e por muito tempo. O jorro da água, prenunciando o impacto frio, amolece um pouco mais a covarde. Em seguida, com o destemor digno de um almirante batavo, enfrente o chuveiro, sem importar que a água o sufoque um pouco, pois a sufocação deverá também atingi-la. Reze então três padre-nossos e três ave-marias, e comece a tossir.
Se existe mar perto de sua casa, ótimo; se não existe, paciência. Almoce, não deixe de almoçar, faça-me o favor. Se gostar de jiló, pode-se ter em conta de um homem privilegiado, pois todas as ressacas de meu conhecimento, como quase todo mundo, detestam jiló. Fígado fresco de galinha é outro alimento que elas não apreciam nada. Bebida, o ideal, por enquanto, é mate gelado. Toque na vitrola discos de Bach ou Débussy, mas somente peças para piano ou cravo, jamais sinfônicas. Uma boa ressaca é tarada por música orquestral. Fuja igualmente das arestas do rock´n´roll, das espirais do bolero e dos círculos concêntricos da valsa vienense.
Vá deitar-se no divã e ler mais um pouco, de preferência uma história boba de revista frívola. Quando a ressaca já estiver bastante aborrecida com esse tratamento, levante-se e caia na rua, cometendo no primeiro botequim a violência final, um copo de chope bem tirado, um só. E vá enfrentar o gerente.
Mas há ressacas versáteis, assim como há sujeitos indefesos. Posto o quê, não aceitaremos reclamações.
Paulo Mendes Campos, "O cego de Ipanema"
A história dos duendes que sequestraram um coveiro
Um pouco antes do entardecer, uma véspera de Natal, Gabriel colocou sua pá ao ombro, acendeu sua lamparina e se pôs a caminho do velho cemitério, pois tinha uma cova para terminar até a manhã seguinte e, sentindo-se muito tristonho, pensou que aquilo talvez pudesse animá-lo se pegasse logo de uma vez no trabalho. À medida que seguia em seu caminho, pegando a rua antiga, ele enxergava a luz alegre e cintilante das lareiras brilhando por trás das velhas vidraças e ouvia as gargalhadas e os gritos entusiasmados daqueles que se reuniam ao redor do fogo; notava o alvoroço dos preparativos para os festejos do dia seguinte e sentia os diferentes e deliciosos aromas, que escapavam fumegantes pelas janelas das cozinhas, em nuvens. Tudo isso chegava ao coração de Gabriel Grub como corrosivo fel; e, quando bandos de crianças, saindo de suas casas, disparavam porta afora, cruzavam a rua e, antes que pudessem bater na porta da casa em frente, já eram recebidas e rodeadas por meia dúzia de pestinhas exultantes, de cabelos cacheadinhos, enquanto subiam todos juntos até o segundo andar para passar a noite em brincadeiras de Natal, Gabriel sorria de modo sinistro e apertava com mais força ainda o cabo de sua pá, enquanto ia pensando em sarampo, escarlatina, sapinho, coqueluche e outras fontes muito boas de consolo além dessas.
Nessa alegre disposição de espírito, Gabriel seguia a passos largos, respondendo com um resmungo breve e emburrado aos cumprimentos bem- humorados daqueles vizinhos que de vez em quando passavam por ele, até que dobrou uma esquina e entrou na ruela escura que levava ao cemitério. Ora, Gabriel estivera na expectativa de chegar à ruela escura porque ela era, de um modo geral, um lugar agradável, sombrio, fúnebre, onde as gentes da cidade não faziam questão de ir, exceto em plena luz do dia, e isso num dia ensolarado; resulta daí que ele ficou tremendamente indignado ao ouvir um rapazola qualquer cantando em altos brados uma festiva canção sobre um Natal feliz, ali naquele santuário que fora batizado de rua dos Esquifes desde os tempos da velha abadia, desde os dias dos monges de cabeça raspada. À medida que Gabriel seguia em frente e a voz chegava cada vez mais perto, ele descobriu que vinha de um menininho que estava só e se apressava para juntar-se a uma das festinhas da rua antiga e que, um pouco para fazer companhia a si mesmo e um pouco para se preparar para a ocasião, berrava a canção com toda a força de seus pulmões. Então, Gabriel esperou até que o menininho aparecesse e levou-o para um canto e bateu na cabeça dele com a lamparina umas cinco ou seis vezes, para ensiná-lo a modular sua voz. Enquanto o menino fugia correndo, com a mão na cabeça, entoando música bem diferente, Gabriel Grub dava gostosas risadas para si mesmo e entrava no cemitério, fechando o portão atrás de si.
Tirou o casaco, largou a lamparina e, entrando na cova inacabada, trabalhou nela por mais ou menos uma hora, com toda a boa vontade. Mas a terra estava endurecida pela geada, e não era tarefa fácil quebrá-la em pedaços e atirá-la para fora do buraco com a pá; e, embora houvesse uma lua no céu, era o começo da lua crescente, e ela pouco iluminava a cova, que estava na sombra da igreja. Em qualquer outro momento, esses obstáculos teriam deixado Gabriel Grub muito irritado e infeliz, mas ele estava tão contente por ter interrompido a cantoria do menininho que não deu muita atenção ao escasso progresso que tinha feito e olhou para dentro da cova, quando deu por terminado o trabalho por aquela noite, com cruel satisfação, murmurando enquanto recolhia suas coisas:
Admirável acomodação para um e nada mais
Terra fria em cima de uma vida acabada
Pedra tumular – na cabeça, inscrição lapidar
Refeição rica e suculenta os vermes vão cear
Grama verde para a caveira, e o resto é lama
Em solo sagrado, acomodação para um é bacana
– Rá, rá! Rá, rá! – riu-se Gabriel Grub, quando se sentou numa pedra tumular que era um dos seus locais preferidos de descanso e pegou sua garrafa forrada de palhinha. – Um esquife no Natal! Uma caixa das grandes de presente de Natal. Rá, rá, rá!
– Rá, rá, rá! – repetiu uma voz que soou próxima, atrás dele.
Gabriel parou, com certo alarme, no ato de erguer a garrafa forrada de palhinha aos lábios, e olhou em volta. O fundo da sepultura mais antiga que havia ali não estava mais silencioso e parado que o cemitério da igreja à luz pálida do luar. A geada reluzia nas lápides e cintilava como fileiras de pedras preciosas no meio dos entalhes de pedra da velha igreja. A neve jazia dura e quebradiça no solo e esparramava-se por cima dos muitos montículos de terra a toda volta; era uma cobertura tão branca e tão lisa que parecia que cadáveres jaziam ali, escondidos apenas por lençóis retorcidos. Nem um mínimo farfalhar quebrava a profunda tranquilidade da cena solene. O próprio som parecia estar congelado, por estar tudo tão gelado e imóvel.
– Foi o eco – disse Gabriel Grub, levando a garrafa aos lábios uma vez mais.
– Não foi não – disse uma voz profunda.
Gabriel deu um pulo e ficou enraizado àquele ponto onde estava, tomado de susto e de terror, pois seu olhar pousou em uma forma que fez seu sangue gelar.
Sentada em uma lápide vertical, próxima a ele, estava uma figura estranha e espectral que, Gabriel logo sentiu, não era um ser deste mundo. Suas pernas fantasticamente compridas, que poderiam estar tocando o solo, estavam encolhidas e cruzadas de um jeito bizarro, fantástico; seus braços fortes estavam nus; e suas mãos estavam apoiadas nos joelhos. Sobre o corpo curto e redondo, ele usava uma roupa pesada e enfeitada com pespontos; uma capa curta pendia, balançando, de suas costas; a gola era cortada em curiosas pontas e, no duende, fazia as vezes de uma gola pregueada ou de um lenço de pescoço; e seus sapatos bicudos tinham as longas, enormes pontas enroladas para cima. Na cabeça, usava um chapéu de aba larga, em forma de cone, enfeitado com uma única pena. O chapéu estava branco de geada, e o duende parecia estar sentado muito confortavelmente naquela mesma lápide fazia uns duzentos ou trezentos anos. Estava sentado perfeitamente imóvel; estava pondo a língua para fora, como que por escárnio; e estava mostrando os dentes para Gabriel Grub num sorriso que só mesmo um duende poderia esboçar.
– Não foi o eco – disse o duende.
Gabriel Grub estava paralisado e não pôde responder àquilo.
– O que você está fazendo aqui na véspera de Natal? – perguntou o duende, em tom áspero.
– Vim cavar uma sepultura, senhor – gaguejou Gabriel Grub.
– Que homem perambula entre sepulturas e cemitérios numa noite como esta? – berrou o duende.
– Gabriel Grub! Gabriel Grub! – gritou um coro selvagem que parecia encher o cemitério.
Gabriel olhou em volta, amedrontado: não havia nada à vista.
– O que você tem nessa garrafa? – perguntou o duende.
– Gim holandês, senhor – respondeu o coveiro, tremendo mais do que nunca; pois ele tinha comprado o gim dos contrabandistas e achou que talvez o seu inquisidor pudesse ser um cobrador de impostos dos duendes.
– Quem bebe gim holandês sozinho, e num cemitério, numa noite como esta? – disse o duende.
– Gabriel Grub! Gabriel Grub! – exclamaram as vozes selvagens, mais uma vez.
O duende fitou com maldade o coveiro aterrorizado e, erguendo a voz, exclamou:
– E quem é, então, nosso prêmio justo e legítimo?
A essa pergunta, o coro invisível respondeu com uma melodia que soou como as vozes de muitos coralistas acompanhando o som poderoso do órgão da velha igreja – uma melodia que parecia chegar aos ouvidos do coveiro trazida por um vento selvagem e ia morrendo conforme passava; mas o peso da resposta era sempre o mesmo: “Gabriel Grub! Gabriel Grub!”.
O duende abriu um sorriso ainda maior que antes quando disse:
– Bem, Gabriel, o que você diz diante disso? O coveiro tentou recuperar o fôlego.
– O que você acha disso, Gabriel? – perguntou o duende, chutando os pés para cima, um de cada lado da lápide, e olhando para as pontas enroladas de seus sapatos com muita satisfação, como se estivesse contemplando o par de sapatos Wellington mais chique de toda a Bond Street.
– É… é… muito curioso, senhor – respondeu o coveiro, quase morto de susto. – Muito curioso e muito bonito, mas eu acho que vou voltar e terminar o meu trabalho, se o senhor me der licença.
– Trabalho! – disse o duende. – Que trabalho?
– A cova, senhor, fazer a cova – gaguejou o coveiro.
– Ah, fazer a cova, hein? – disse o duende. – Quem é que cava sepulturas numa época em que todos os outros homens estão festejando e sente prazer nisso?
Novamente, as vozes misteriosas responderam: “Gabriel Grub!
Gabriel Grub!”.
– Receio que os meus amigos queiram você, Gabriel – falou o duende, empurrando a língua contra a bochecha o mais que podia. E que língua assombrosa! – Receio que os meus amigos queiram você, Gabriel – repetiu.
– Por favor, senhor – respondeu o coveiro, dominado pelo pavor –, eu acho que eles não têm por que me querer. Eles nem me conhecem, senhor. Acho que os cavalheiros nunca me viram, senhor.
– Ah, mas eles viram, sim – respondeu o duende. – Nós conhecemos o homem rabugento e de rosto carrancudo que veio pela rua esta noite, olhando com crueldade as crianças e agarrando mais e mais forte a sua pá de cavar sepulturas. Nós conhecemos o homem que bateu no menino com a maldade invejosa de seu coração, só porque o menino sabia ser feliz, e ele não. Nós o conhecemos! Nós o conhecemos!
Nesse ponto, o duende, rindo muito alto, soltou uma gargalhada esganiçada, e o eco devolveu-a vinte vezes mais alta e esganiçada. Jogando as pernas para o ar, plantou bananeira, ou melhor, apoiou o peso do corpo na ponta do seu chapéu em cone, na beirada estreita da lápide; nisso, ele deu um salto mortal com extraordinária agilidade, indo parar exatamente aos pés do coveiro, onde plantou-se numa pose em que os alfaiates costumam sentar-se para costurar.
– Eu… eu acho que preciso ir agora – disse o coveiro, fazendo um enorme esforço para se mover.
– Precisa ir! – disse o duende. – Gabriel Grub precisa ir! Rá, rá, rá! Enquanto o duende ria, o coveiro notou, por um instante, uma iluminação brilhante dentro das janelas da igreja, como se todo o prédio estivesse iluminado; desapareceu; o órgão ressoou com uma melodia alegre e tropas inteiras de duendes, em exato contraponto ao primeiro duende, derramaram-se pelo cemitério e começaram a brincar de pular carneirinho com as lápides; faziam isso sem parar para tomar fôlego; pulavam sobre a lápide mais alta de todas, um após o outro, com surpreendente destreza. O primeiro duende era um pulador incrível, e nenhum dos outros conseguia chegar nem perto do que ele fazia; mesmo no máximo de seu sentimento de terror, o coveiro não pôde deixar de observar que, enquanto os amigos do primeiro duende satisfaziam-se em saltar sobre as lápides de tamanho comum, o primeiro pulava por cima dos jazigos de famílias, por cima das balaustradas de ferro e por cima de tudo o mais, com tanta facilidade como se todos aqueles obstáculos fossem placas de rua.
Por fim, o jogo atingiu o seu ápice; o órgão tocava cada vez mais rápido, e os duendes pulavam com velocidade cada vez maior; encolhendo- se, rolando em cambalhotas no chão e ricocheteando sobre as lápides como se fossem bolas de futebol. O cérebro do coveiro girava com a mesma rapidez dos movimentos que ele contemplava, e suas pernas cederam quando os espíritos voaram diante de seus olhos; quando o rei dos duendes de repente veio a toda em sua direção, pousou a mão em sua gola e afundou com ele terra adentro.
Quando Gabriel Grub teve tempo de retomar o fôlego que a velocidade da descida havia roubado dele por um momento, viu que estava dentro do que parecia ser uma enorme caverna, rodeado de todos os lados por multidões de duendes, feios e sinistros; no centro do salão, em um trono mais elevado, ali estava o seu amigo do cemitério da igreja; e bem pertinho, ao lado dele, ali estava Gabriel Grub, o próprio, incapaz de se mexer.
– Noite fria – disse o rei dos duendes –, muito fria. Um copo de bebida quente, aqui!
Ao comando dele, meia dúzia de zelosos duendes com um eterno sorriso na cara, que Gabriel Grub imaginou fossem cortesãos, justo por aquela razão, desapareceram muito apressadamente e logo retornaram com uma taça de fogo líquido, que entregaram ao rei.
– Ah! – gritou o duende, cujas faces e garganta eram transparentes, enquanto engolia de um trago a chama. – Isto esquenta qualquer um, de verdade! Tragam um cálice cheio até a borda desta mesma bebida para o sr. Grub.
Em vão o infeliz coveiro protestou, argumentando que não tinha o hábito de tomar bebidas quentes à noite; um dos duendes segurou-o, enquanto outro derramava o líquido em chamas em sua goela; toda a assembleia de duendes guinchava de tanto rir enquanto ele tossia e se afogava e enxugava as lágrimas que jorravam de seus olhos após ter engolido a bebida que lhe desceu queimando a garganta.
– E agora – disse o rei, cutucando de forma fantástica, com a ponta aguda de seu chapéu em forma de cone, o olho do coveiro, ocasionando-lhe a mais perfeita de todas as dores –, e agora mostrem ao homem do sofrimento e da tristeza alguns dos quadros do nosso enorme depósito.
Assim que o duende disse isso, uma nuvem espessa, que obscurecia até o mais remoto canto da caverna, foi gradualmente se abrindo, dissipando-se, para revelar, aparentemente a uma grande distância, um apartamento pequeno e com pouquíssimos móveis, mas limpo e arrumado. Uma porção de crianças pequenas agrupava-se perto do fogo brilhante da lareira e agarrava-se ao vestido da mãe e brincava ao redor da cadeira onde estava sentada. A mãe vez que outra levantava-se e afastava a cortina da janela, como se tentasse enxergar algum objeto esperado; uma refeição frugal estava pronta e servida à mesa; e uma cadeira de braço estava posicionada perto do fogo. Alguém bateu à porta; a mãe abriu, e as crianças agruparam-se ao redor dela e bateram palminhas de alegria quando o pai entrou. Ele estava molhado e exausto e sacudiu a neve de seus trajes enquanto as crianças agrupavam-se ao redor dele e, recebendo o seu capote, o chapéu, a bengala e as luvas, correram, com cuidado e alvoroço, para fora da sala, carregando aquilo tudo. Então, quando ele se sentou para sua refeição diante da lareira, as crianças subiram no seu colo, e a mãe sentou-se ao seu lado, e tudo parecia ser felicidade e conforto.
Mas uma transformação ocorreu naquele quadro, de modo quase imperceptível. A cena foi alterada para um pequeno quarto de dormir, onde a criança mais novinha e mais bonitinha estava na cama, morrendo; o rosado de suas bochechas havia sumido, e também havia sumido a luz de seus olhos. E, bem quando o coveiro olhou para o menininho com um interesse que jamais sentira ou conhecera antes, ele morreu. Os irmãozinhos e irmãzinhas agruparam-se ao redor da caminha e pegaram sua mão, tão pequeninha, tão gelada e tão pesada; e, àquele toque, eles recuaram e olharam com temor o rosto do bebê; mesmo que ele estivesse calmo e tranquilo, e dormindo em paz no seu repouso – como parecia estar aquela linda criança –, eles entenderam que ele estava morto e sabiam que ele agora era um anjo olhando de lá de cima para eles aqui embaixo e abençoando-os de onde ele estava: num céu brilhante e feliz.
Uma vez mais a nuvem etérea atravessou o quadro, e uma vez mais o cenário mudou. O pai e a mãe estavam envelhecidos e sem o vigor de antes, e o número dos que lhes rodeavam havia diminuído em mais da metade; mas a satisfação e a animação transpareciam em cada rosto e iluminavam cada olhar quando agrupavam-se à volta da lareira e contavam e escutavam velhas histórias de outros tempos, de tempos que já não voltam mais. Vagarosa e pacificamente, o pai afundou para dentro de sua sepultura e, logo em seguida, aquela que partilhou de todos os seus desvelos e problemas seguiu-o até seu local de descanso. Os poucos que ainda sobreviviam àqueles dois ajoelharam-se ao lado de onde estavam enterrados e com lágrimas aguaram a grama que cobria o local; depois, ergueram-se e foram embora com tristeza, enlutados, mas sem gritos amargos, sem lamentações desesperadas, pois sabiam que um dia iriam ao encontro deles; e, uma vez mais, misturaram-se ao mundo de pessoas atarefadas e sua satisfação e sua animação foram restauradas. A nuvem estabilizou-se sobre o quadro e escondeu-o da visão do coveiro.
– O que você pensa disso? – perguntou o duende, virando o seu enorme rosto para Gabriel Grub.
Gabriel murmurou algo sobre aquilo ser muito bonito e pareceu ficar um pouco envergonhado, enquanto o duende jogava seu olhar causticante sobre ele.
– Você, um homem sofrido! – disse o duende, num tom de voz que traduzia excessivo desprezo. – Você!
Ele parecia disposto a acrescentar mais alguma coisa, mas a indignação sufocava a sua fala, de modo que ele ergueu uma de suas pernas muito flexíveis e, com ela fazendo um pequeno floreio acima da cabeça, para assegurar-se de seu alvo, deu um tremendo chute em Gabriel Grub; imediatamente depois disso, todos os duendes à espera agruparam-se ao redor daquele coveiro desgraçado e chutaram-no sem misericórdia, de acordo com o costume estabelecido e invariável dos cortesãos desse mundo: chuta-se aqueles a quem a realeza chutou e abraça-se aqueles a quem a realeza abraçou.
– Deem-lhe mais do mesmo tratamento! – disse o rei dos duendes.
A essas palavras, a nuvem desencantou, e uma paisagem muito rica e muito linda descortinou-se à visão; existe uma paisagem exatamente igual ainda hoje, a meia milha da cidade da velha abadia. O sol brilhava num céu claro e muito azul, a água brilhava sob seus raios, e as árvores pareciam mais verdes e as flores mais viçosas sob sua influência vibrante. A água corria ondulante, com um som agradabilíssimo; as árvores farfalhavam ao vento suave que murmurava entre suas folhas; os passarinhos cantavam nos galhos; e a cotovia entoava canções em alto e bom som, dando as boas-vindas à manhã de um novo dia. Sim, havia amanhecido; era verão, e a manhã estava radiante e era um bálsamo; a menor folha, a folhinha da grama, por mínima que fosse, tudo estava impregnado de vida. A formiga caminhava para sua labuta diária, a borboleta adejava as asas e repousava no ar aquecido pelos raios do sol; miríades de insetos estendiam suas asas transparentes e regozijavam-se em sua existência breve, mas feliz. O homem andava sempre em frente, empolgado com a cena; e tudo era brilho e esplendor.
– Você, um homem sofrido! – disse o rei dos duendes num tom de voz que traduzia ainda mais desprezo que antes.
E, de novo, o rei dos duendes fez um floreio com a perna; de novo, ela desceu sobre os ombros do coveiro; e, de novo, os duendes serviçais imitaram o exemplo de seu chefe.
Muitas vezes a nuvem sumiu e voltou, e muitas lições ela ensinou a Gabriel Grub, que, embora tivesse os ombros ardendo de dor dos frequentes chutes dos duendes, continuava olhando com um interesse que nada conseguia diminuir. Ele viu que os homens que trabalhavam duro e ganhavam o escasso pão de cada dia com vidas inteiras de muita labuta eram pessoas animadas e felizes; e que, para os mais ignorantes, a doce face da natureza era uma fonte incessante de animação e alegria. Ele viu aqueles que haviam sido criados com delicadeza e educados com carinho: eram otimistas diante das privações e superiores ao sofrimento que teria arrasado muitos homens de formação mais dura – isso porque traziam dentro do peito a matéria bruta de que são feitas a felicidade, a satisfação e a paz de espírito. Ele viu que as mulheres, as mais suaves e mais frágeis dentre as criaturas de Deus, eram na maioria das vezes superiores ao sofrimento, à adversidade e às preocupações; e viu que isso se dava porque elas traziam em seus corações um manancial inexaurível de afeição e devoção. Acima de tudo, ele viu que homens como ele, que rosnavam para as celebrações e a animação dos outros, eram as piores ervas daninhas da bela superfície da terra; e, separando tudo o que há de bom no mundo de tudo o que há de mau no mundo, ele chegou à conclusão de que, afinal, era um tipo de mundo bem decente e respeitável. Nem bem chegara a essa conclusão e a nuvem que se fechara sobre o último quadro pareceu estacionar em seus sentidos e niná-lo para que ele repousasse. Um por um, os duendes sumiram de vista; e, quando o último deles desapareceu, Gabriel Grub afundou no sono.
O dia já havia clareado quando Gabriel Grub acordou e viu que estava deitado ao comprido numa pedra tumular no cemitério da igreja, com a garrafa forrada de palhinha ao seu lado e vazia; seu casaco, a pá e a lamparina, todos bem branquinhos da geada da noite anterior, estavam atirados pelo chão. A lápide onde ele vira pela primeira vez o duende sentado estava ali, ereta, reta, aprumada e empertigada diante dele, e a cova na qual estivera trabalhando na noite anterior, esta não estava longe dali. Primeiro, ele chegou a duvidar da realidade de suas aventuras, mas a dor aguda nos ombros quando tentou levantar-se assegurou-lhe de que os chutes dos duendes com certeza não foram imaginários. Ficou perplexo uma vez mais ao observar que não havia vestígios de pegadas na neve onde os duendes haviam brincado de pular carneirinho com as lápides, mas logo encontrou a explicação dessa circunstância quando lembrou que, por serem espíritos, eles não iriam deixar impressões visíveis para trás. Assim, Gabriel Grub levantou-se da melhor maneira que pôde, dada a dor nas costas, e, sacudindo a geada de seu casaco, vestiu-o; e voltou seu olhar para a cidade.
Mas ele era um outro homem e não podia suportar a ideia de voltar para um lugar onde o seu arrependimento seria motivo de piada e onde a sua transformação seria desacreditada. Hesitou por alguns momentos e então deu as costas à cidade para pensar em que outro lugar ele poderia tentar ganhar o seu pão de cada dia.
A lanterna, a pá e a garrafa forrada de palhinha foram encontradas, naquele mesmo dia, no cemitério da igreja. A princípio, houve grandes especulações sobre o destino do coveiro, mas logo ficou definido que ele havia sido levado embora pelos duendes; e não faltaram testemunhas respeitáveis que tivessem visto com nitidez ele ser carregado rapidamente pelo ar, montado num cavalo de pelo castanho e cego de um olho, com a traseira de um leão e o rabo de um urso. No fim, tudo isso virou uma história em que todos acreditavam piamente; e o novo coveiro costumava exibir aos curiosos, por um dinheirinho de nada, um pedaço de bom tamanho do galo da rosa dos ventos da igreja que fora acidentalmente chutado pelo cavalo acima mencionado em seu voo de fuga; pedaço esse que fora recolhido por ele mesmo no cemitério da igreja coisa de um ou dois anos atrás.
Infelizmente, essas histórias ficaram um pouco atrapalhadas pelo inesperado ressurgimento do próprio Gabriel Grub uns dez anos mais tarde, desta vez um velhinho reumático, maltrapilho e contente da vida. Ele contou sua história ao pároco e também ao prefeito; e, no decorrer do tempo, essa história começou a ser aceita como fato histórico e é dessa forma que ela continua a ser contada até os dias de hoje. Quanto aos que tinham acreditado na lorota do galo da rosa dos ventos, uma vez tendo depositado sua confiança na história errada, não foram facilmente persuadidos a trocar de história e, portanto, de modo que parecessem tão sábios quanto possível, davam de ombros, levavam a mão à testa e murmuravam alguma coisa sobre Gabriel Grub ter bebido todo o gim holandês e então ter pegado no sono deitado na pedra da sepultura; e eles faziam questão de explicar aquilo que Gabriel Grub supunha ter testemunhado na caverna dos duendes, dizendo que ele simplesmente tinha visto o mundo e ficara mais sábio. Mas essa opinião, que definitivamente não se popularizou em nenhum momento, foi gradualmente esquecida. Seja lá como for, uma vez que Gabriel Grub sofreu de reumatismo até o fim de seus dias, esta história pelo menos tem uma moral, se não servir para ensinar coisa melhor; e a moral da história diz que, se um homem se torna rabugento e bebe desacompanhado na temporada de festas natalinas, ele pode ter certeza de que não será um homem melhor por causa disso; que os espíritos sejam sempre os melhores possíveis, ou então que sua presença esteja a muitos graus de distância do teor de uma prova concreta, como os espíritos que Gabriel Grub viu na caverna dos duendes.
O maior roubo de livros na Europa desde a 2ª Guerra
Os homens falavam russo e explicaram a um funcionário da biblioteca que o mais jovem está fazendo uma pesquisa com o objetivo de estudar nos Estados Unidos.
Três meses depois, a equipe percebeu que dois dos livros foram trocados por falsificações. Os registros da biblioteca mostram que os volumes em questão haviam sido consultados pela última vez pelos mesmos dois homens, em abril daquele ano.
Os bibliotecários correram para verificar as outras seis edições dos clássicos russos. Depois de uma apuração minuciosa, descobriram que todas as seis edições são cópias habilmente realizadas, que parecem idênticas porque têm carimbos e números de inventário da biblioteca.
A biblioteca de Tartu não foi a única a ser alvo. Semanas depois, dez livros raros da biblioteca da Universidade de Tallinn, na capital da Estônia, também desapareceram.
Em 18 meses, diversas edições de clássicos russos e outras publicações antigas em russo foram roubadas de uma dúzia de bibliotecas europeias, dos países bálticos e da Finlândia até a Suíça e a França.
Em alguns casos, os originais são substituídos por cópias. Em outros, os livros são simplesmente retirados da biblioteca e nunca devolvidos. Em resposta, a Europol — a agência de cooperação policial da União Europeia — abriu uma investigação chamada Operação Pushkin. Mais de 100 policiais fizeram buscas em vários imóveis em diferentes países.
No total, nove suspeitos já foram identificados e presos. Todos são cidadãos da Geórgia.
O primeiro a ser preso foi Beqa Tsirekidze, 48. Ele foi julgado e condenado por três crimes em dois países ao mesmo tempo — Letônia e Estônia —, incluindo os furtos nas bibliotecas de Tartu e Tallinn.
Atualmente, Tsirekidze cumpre pena de três anos e três meses na Estônia, onde presos podem falar com jornalistas.
De lá, disse à BBC que decidiu se envolver com livros antigos — comprando, restaurando e revendendo — em 2008 para sustentar a família. Questionado sobre sua formação como restaurador, afirmou que aprendeu tudo na prática.
"Sou como um feiticeiro dos livros. Posso segurar um exemplar nas mãos e imediatamente dizer quanto vale e quanto pode render em leilão", afirmou.
O primeiro encontro de Tsirekidze com a Justiça foi em 2016, quando foi condenado na Geórgia por roubar livros antigos do Museu de História de Tbilisi. Na época, admitiu o crime e acabou com a pena suspensa.
Em outubro de 2023, um jovem casal se sentou na sala de leitura da biblioteca da Universidade de Varsóvia, na Polônia: um homem de boné preto e uma mulher ruiva.
Eles folheavam livros antigos e, em certo momento, o homem beijou a companheira na bochecha.
Tudo é registrado por uma câmera de vigilância da biblioteca.
O jovem é Mate, filho de Tsirekidze, e a mulher é sua esposa, Ana Gogoladze. Os dois seriam presos depois, acusados — e posteriormente condenados — de roubar livros avaliados em quase US$ 100 mil (cerca de R$ 541 mil) da biblioteca.
A universidade tem uma coleção valiosa de livros publicados antes e depois do período soviético. Parte das obras sobreviveu milagrosamente ao Levante de Varsóvia, em 1944, quando o prédio foi incendiado.
"Somos a geração que entendeu perfeitamente que alguém, no passado, salvou esses livros para nós", disse à BBC o professor Hieronim Grala, da Universidade de Varsóvia.
No total, em menos de um ano, 73 exemplares raros, avaliados em quase US$ 600 mil (cerca de R$ 3,25 milhões), foram levados da biblioteca. Parte dos responsáveis ainda não foi capturada.
"O maior roubo desde a Segunda Guerra", disse o professor Grala à imprensa, ao descrever a dimensão dos crimes. "É como arrancar as joias de uma coroa."
Os funcionários da biblioteca não perceberam de imediato as substituições dos originais por cópias. "Há um código, há um livro do mesmo tamanho, não há lacuna na estante", disse Grala.
"Não há dúvida de que o grupo de ladrões que chegou no início [tinha como alvo livros específicos] e estava bem preparado. Ao que tudo indica, tinham produzido réplicas de alta qualidade", afirmou Grala à BBC.
Segundo ele, reformas recentes na biblioteca também podem ter contribuído para o aumento dos furtos, em especial a flexibilização das regras que permitiam um uso menos vigiado de livros raros e antigos.
A medida, originalmente, buscava ampliar o acesso dos leitores.
Tradicionalmente, todas as bibliotecas do mundo marcam os livros com carimbos. O tamanho varia conforme o país e a instituição.
"A Rússia é caracterizada pelo 'carimbo forte'", disse o especialista e colecionador de livros raros Pyotr Druzhnin.
Em teoria, é possível identificar um livro roubado pelo carimbo, afirmam especialistas. Mas nem sempre é o caso.
Em algumas situações, bibliotecas vendem exemplares como duplicatas — como ocorreu no período soviético, por exemplo, por falta de espaço.
Ou a biblioteca pode ter sido desativada e fechada — como aconteceu com muitas bibliotecas durante o período da Perestroika, entre 1985 e 1991.
Também pode ser difícil determinar a origem de livros com carimbos do século 19 ou mesmo antes disso, segundo Druzhinin.
"Se o carimbo é do século 18 ou 19, não sabemos o que aconteceu com o livro. Sim, o exemplar vem dali [da biblioteca]. Como saiu, ninguém sabe."
Os carimbos também podem ser removidos quimicamente, ou páginas antigas de um livro podem ser substituídas por novas impressas em papel antigo.
Vestígios dessas manipulações muitas vezes só são percebidos por colecionadores ou especialistas.
Em casos raros, um livro antigo em uma biblioteca não tem carimbo porque entrou na coleção antes do início da prática de marcar todos os exemplares.
"Meio quilo de ouro, no valor de US$ 60 mil (quase R$ 324,6 mil), é guardado por 22 homens armados. Dois livros, também avaliados em US$ 60 mil (quase R$ 324,6 mil), ficam em alguma biblioteca da Europa e são vigiados por uma senhora idosa. Muitas vezes nem há câmeras de segurança", disse Tsirekidze à BBC, de uma prisão na Estônia.
O que explica a alta nos preços, que no caso dos clássicos russos do século 19 vêm subindo de forma constante nos últimos anos?
Segundo Druzhinin, o mercado de livros raros russos teve um salto entre 2022 e 2024, período em que a onda de crimes na Europa estava no auge.
"Os especialistas deveriam saber que não se tratava de uma coleção privada sendo vendida", disse.
Druzhinin sugeriu que o círculo restrito de compradores de livros caros possivelmente via as aquisições como um ato patriótico.
"É um momento de retorno histórico de livros significativos à pátria", afirmou.
Um exemplo é o do georgiano Mikhail Zamtaradze, condenado em junho por roubar e vender livros valiosos da biblioteca da Universidade de Vilnius, na Lituânia.
Zamtaradze se registrou na biblioteca com documentos falsos e encomendou 17 edições raras, a maioria com carimbos. Ele trocou 12 livros por cópias e levou outros cinco, que simplesmente não devolveu.
O valor dos livros roubados foi estimado em quase US$ 700 mil (cerca de R$ 3,79 milhões).
No tribunal, Zamtaradze afirmou que roubou os exemplares sob encomenda de alguém em Moscou, embalou e enviou por ônibus para Belarus, e recebeu US$ 30 mil (R$ 162,3 mil) em criptomoedas.
Ele disse que as cópias e os documentos falsos foram enviados de Moscou. Segundo Zamtaradze, seu cliente era um alto funcionário de uma casa de leilões na cidade.
Não é a primeira vez que casas de leilão entram na mira. Pelo menos quatro publicações da biblioteca da Universidade de Varsóvia foram vendidas pela casa de leilões LitFund, em Moscou, no fim de 2022 e em 2023, segundo o professor Grala.
A BBC obteve com Grala capturas de tela do site do leilão com os livros em questão, supostamente pertencentes à coleção da Universidade de Varsóvia.
Um dos títulos era Os Contos de Ivan Belkin, de Pushkin, com um carimbo do século 19 visível nas fotos da edição.
Outro lote do mesmo leilão reunia quatro volumes de Poemas, de Pushkin. Nas imagens publicadas no site da casa — já retiradas do ar —, também aparecia o carimbo da Universidade de Varsóvia.
O diretor da LitFund, Sergei Burmistrov, afirmou que a casa atua dentro da legislação da Federação Russa e não aceita vender livros com carimbos de bibliotecas públicas em atividade.
Segundo ele, os proprietários assinam contrato para confirmar a origem legal de qualquer obra aceita para leilão. Cada exemplar é analisado por um especialista da LitFund para garantir que não tenha carimbos ou marcas de bibliotecas em funcionamento.
Carimbos antigos, no entanto, nem sempre levantam suspeitas. "Nos anos pós-revolucionários, um grande número de livros das bibliotecas imperiais russas foi distribuído pelo mundo e acabou em coleções públicas e privadas. Por isso, exemplares desse tipo que hoje estão em acervos particulares circulam livremente no mercado internacional", disse Burmistrov à BBC.
O professor Grala disse à BBC que a questão dos carimbos antigos é complicada.
"Se há um carimbo histórico da biblioteca da Universidade de Varsóvia e o código original é preservado, isso já é considerado um artefato em si. [Ninguém vai] colocar um novo carimbo ou código. Esses livros viveram com esses carimbos por 200 anos e não são recarimbados por respeito", afirmou.
Enquanto isso, a Operação Pushkin está longe de terminar. Pelo menos um suspeito aguarda julgamento na França por roubo de livros em bibliotecas locais.
E as autoridades acreditam que muitos criminosos ainda estão foragidos — assim como alguns dos livros mais valiosos da Europa.















