terça-feira, setembro 30
O homem em chamas
O ford caindo aos pedaços vinha por uma estrada que erguia plumas amarelas de poeira que levavam uma hora para assentar e não mais se mover naquela modorra especial que toma conta do mundo em meados de julho. Bem ao longe, o lago esperava, uma joia de frio azul em um lago de grama verde quente, mas ainda estava de fato muito distante, e Neva e Doug passavam apressados naquela lata-velha incandescente, com limonada derramando por todos os lados em uma garrafa térmica no banco de trás e sanduíches de presunto condimentados fermentando no colo de Doug. Ambos, o rapaz e sua tia, respiravam ar quente e, conversando, exalavam ar mais quente ainda.
“Engolidor de fogo”, disse Douglas. “Estou engolindo fogo. Droga, mal posso esperar por aquele lago!”
De repente, lá em frente, havia um homem à beira da estrada.
Camisa aberta revelando o corpo bronzeado até a cintura, os cabelos alourados da cor do trigo maduro de julho, os olhos do homem incandesciam azuis de fogo, em um ninho de rugas de sol. Ele acenava, morrendo de calor.
Neva afundou o pé no freio. Ferozes nuvens de poeira se levantaram, fazendo o homem desaparecer. Quando a poeira dourada assentou, seus olhos quentes amarelados rebrilhavam, ameaçadores, como os de um gato, desafiando o tempo e o vento causticante.
Ele encarou Douglas.
Douglas desviou o olhar, nervosamente.
Dava para ver por onde o homem havia atravessado um campo de grama alta, amarelada, tostada e queimada por oito semanas de nenhuma chuva. Havia uma trilha onde o homem tinha amassado a grama e aberto uma passagem para a estrada. A trilha ia até onde a vista alcançava, descendo em direção a um pântano seco e um leito seco de riacho sem nada além de pedras quentes e tostadas e rochas fritas e areia derretida.
“Mal posso acreditar que você parou!”, gritou o homem raivosamente.
“Mal posso acreditar que parei”, Neva gritou de volta. “Aonde você está indo?”
“Vou pensar em algum lugar.” O homem saltou como um gato e se aboletou no banco de trás. “Vá andando. Está atrás de nós! O sol, quero dizer, é claro!” Ele apontou diretamente para o alto. “Anda! Ou vamos todos enlouquecer!”
Neva enfiou o pé no acelerador. O carro saiu do cascalho e pairou sobre pura poeira ardente, reduzindo apenas de vez em quando ao se desviar de alguma rocha ou ao topar com uma pedra. Eles cortavam a terra ao meio ruidosamente. Acima dela, o homem gritava:
“Acelere para cem, cento e vinte, diabo, por que não cento e cinquenta!”
Neva lançou um rápido olhar crítico ao leão, o homem no banco de trás, para ver se conseguia fechar suas mandíbulas com um olhar. Elas se fecharam.
E é assim, claro, como Doug se sentia com respeito à fera. Não um estranho, não; não um caroneiro, mas um intruso. Apenas dois minutos depois de saltar para dentro do carro muito quente, com seu cabelo de selva e cheiro de selva, ele havia conseguido se indispor com o clima, o automóvel, Doug e sua honorável e perspirante tia. Agora ela se debruçava sobre o volante e guiava o carro por entre tempestades de calor e chicotadas de cascalho.
Enquanto isso, a criatura no assento de trás, com sua grande juba leonina e olhos amarelados de menta fresca, lambia os beiços e olhava direto para Doug no espelho retrovisor. Ele deu uma piscadela. Douglas tentou piscar de volta, mas por algum motivo a pálpebra não quis abaixar.
“Você alguma vez tentou imaginar...”, gritou o homem.
“O quê?”, gritou Neva.
“Você alguma vez tentou imaginar...”, berrou o homem, inclinando-se para a frente entre eles, “...se o tempo está deixando ou não você doido, ou se você já é doido?”
A pergunta foi uma surpresa, que subitamente os refrescou naquele dia de fornalha.
“Não entendi direito...”, disse Neva.
“Nem ninguém!” O homem cheirava como um fosso de leões. Seus braços magros se levantavam e abaixavam entre eles, nervosamente amarrando e desamarrando um cordão invisível. Ele se mexia como se houvesse ninhos de cabelos em chama sob cada axila.
“Num dia como hoje, o inferno todo está solto dentro de sua cabeça. Lúcifer nasceu em um dia assim, em uma desolação como esta”, disse o homem. “Com apenas fogo e chamas e fumaça em toda parte”, disse o homem. “E tudo tão quente que você não conseguia tocar, e as pessoas não querendo ser tocadas”, disse o homem.
Ele deu uma cutucada no cotovelo dela, uma cutucada no rapaz.
Eles saltaram mais de um quilômetro.
“Vê?” O homem sorriu. “Num dia como hoje, você começa a pensar montes de coisas.” Ele sorria. “Não é este o verão em que os dezessete anos de gafanhotos devem voltar como num puro holocausto? Pragas simples, mas multitudinárias?”
“Não sei.” Neva dirigia rápido, olhando sempre para a frente.
“Este é o verão. O holocausto está logo ali na esquina. Estou pensando tão rápido que meus olhos doem, minha cabeça racha. Sou capaz de explodir em uma bola de fogo a um simples pensamento desconectado. Ora... ora... ora.”
Neva engoliu em seco. Doug suspendeu a respiração.
Muito subitamente, eles ficaram aterrorizados. Pois o homem simplesmente continuava tagarelando, olhando para as árvores de fogo verde-ondulantes de calor que passavam queimando de um lado e de outro, aspirando a poeira grossa e quente que se levantava em torno do carro de lata; sua voz não estava nem alta nem baixa, mas firme e calma agora, ao descrever sua vida:
“Sim, senhor, há mais no mundo do que as pessoas dão valor. Se pode haver dezessete anos de gafanhotos, por que não dezessete anos de pessoas? Já pensaram nisso?”
“Nunca pensei”, disse alguém.
Provavelmente eu, pensou Doug, pois sua boca se movera como um camundongo.
“Ou que tal vinte e quatro anos de pessoas, ou cinqüenta e sete anos? Quero dizer, estamos tão acostumados a pessoas crescendo, casando, tendo filhos, que nunca paramos para pensar que talvez haja outras maneiras de elas virem ao mundo, talvez como gafanhotos, de vez em quando, quem sabe, um dia quente, no meio do verão!”
“Quem sabe?” Lá estava o camundongo novamente. Os lábios de Doug tremiam.
“E quem pode dizer que não há maldade genética no mundo?”, perguntou o homem ao Sol, olhando diretamente para o alto, para o Sol, sem piscar.
“Que tipo de maldade?”, perguntou Neva.
“Genética, madame. Ou seja, no sangue. As pessoas que nasceram más, cresceram más, morreram más, sem nenhuma mudança até o fim da linha.”
“Uau!”, disse Douglas. “Você quer dizer pessoas que começaram malvadas e continuaram assim?”
“Captou a mensagem, garoto. Por que não? Se existem pessoas que todo mundo acha que são uns anjos de candura desde o primeiro doce suspiro até o último, por que não vileza pura e simples, de primeiro de janeiro a dezembro, trezentos e sessenta e cinco dias por ano?”
“Nunca pensei nisso”, disse o camundongo.
“Pense”, disse o homem. “Pense.”
Eles pensaram por mais de cinco segundos.
“Agora”, disse o homem, apertando um dos olhos ao olhar para o lago fresco a oito quilômetros de distância, o outro fechado para dentro da escuridão e ruminando ali sobre um monte de fatos. “Ouçam. E se o calor intenso, quero dizer, o calor realmente quente, quente de um mês como este, em uma semana como esta, em um dia como hoje, simplesmente produzisse um Homem Mau, feito de lama do rio assada. Que estava ali, enterrado na lama por quarenta e sete anos, como uma maldita larva, esperando vir à luz. E ele despertasse com uma sacudida e olhasse em volta, totalmente adulto, e saísse da lama quente para o mundo e dissesse: ‘Acho que vou comer um verão’.”
“Como é mesmo?”
“Comer um verão, garoto; verão, madame. Simplesmente devorá-lo inteiro. Olhe para as árvores, não são um jantar inteiro? Olhe para aquele campo de trigo, não é um banquete? Aqueles girassóis à beira da estrada, puxa vida, ali está um café-da-manhã. Papel de alcatrão no telhado daquela casa, ali está o almoço. E o lago, bem lá adiante, minha nossa, é o vinho do jantar, beba-o todo!”
“Estou mesmo com sede”, disse Doug.
“Com sede, diacho, rapaz, ‘com sede’ nem mesmo começa a descrever o estado de um homem, venhamos e convenhamos, que é alguém que esteve esperando na lama quente por trinta anos e nasceu, só para morrer em um dia! Com sede! Pelos deuses! Sua ignorância é total.”
“Bom”, disse Doug.
“Bom”, disse o homem. “Não apenas com sede, mas faminto. Faminto. Olhe em volta. Não apenas comer as árvores e depois as flores abrasadas à beira das estradas, mas depois os cães ofegantes mortos de calor. Lá está um. Lá está outro! E todos os gatos do país. Lá estão dois, acabaram de passar três! E se, então, o feliz glutão começar simplesmente a... ora, por que não... começar a sair por aí... vou lhe dizer, que tal isto... comendo gente? Quero dizer... pessoas! Pessoas fritas, cozidas, fervidas e parboilizadas. Belezas de pessoas bronzeadas. Velhos, jovens. Chapéus de velhinhas e depois as velhinhas debaixo dos chapéus e depois cachecóis de jovens moças e jovens moças e, em seguida, calções de banho de jovens rapazes, meu Deus, e jovens rapazes, cotovelos, tornozelos, orelhas, artelhos e sobrancelhas! Sobrancelhas, puxa vida, homens, mulheres, rapazes, moças, cães, completando o cardápio, afiem seus dentes, lambam os beiços, o jantar está servido!”
“Espere aí!”, alguém gritou.
Eu não, pensou Doug. Eu não disse nada.
“Um momento aí!”, alguém gritou.
Era Neva.
Ele viu o joelho dela se levantar como por intuição e se abaixar como por uma decisão irrevogável.
Pá! Bateu o calcanhar no chão.
O carro freou. Neva abriu a porta do carro, apontando, gritando, apontando, gritando, a boca nervosa, uma das mãos estendida agarrando a camisa do homem e rasgando-a.
“Fora. Saia!”
“Aqui, madame?” O homem estava atônito.
“Aqui, aqui, aqui, fora, fora, fora!”
“Mas, madame...!”
“Fora, ou você está acabado, acabado”, gritou Neva, descontroladamente. “Tenho uma carga de bíblias no porta-malas, uma pistola com uma bala de prata aqui, debaixo do volante. Uma caixa de crucifixos debaixo do banco! Uma estaca de madeira presa ao eixo, junto com um martelo. Tenho água benta no carburador, abençoada antes de ferver, hoje de manhã cedo e três igrejas no caminho: a católica de São Mateus, a batista da Torre Verde e a episcopal Cidade do Sião. Essa energia vai acabar com você. Seguindo a gente, um quilômetro atrás e devendo chegar a qualquer momento, está o reverendo bispo Kelly de Chicago. Lá no lago, está o padre Rooney de Milwaukee, e Doug, ora, Doug aqui tem em seu bolso traseiro, neste minuto, uma espiga de acônito e dois pedaços de raiz de mandrágora. Saia! Saia! Saia!”
“Ora, madame”, gritou o homem. “Já saí.”
E saiu.
Bateu no chão e rolou na estrada.
Neva arrancou o carro a toda a velocidade.
Lá atrás, o homem se compunha e gritava:
“Você deve ser louca. Deve ser maluca. Louca. Maluca.”
“Eu, louca? Eu, maluca?”, disse Neva, e resmungou: “Puxa!”.
“... louca... maluca…”
A voz foi sumindo.
Douglas olhou para trás e viu o homem sacudir o punho e então rasgar a camisa e jogá-la no cascalho e saltando para fugir de grandes nuvens de poeira quente, com os pés descalços.
O carro explodia, corria, acelerava, avançava estourando freneticamente, sua tia ferozmente colada ao volante quente, até que a pequena figura suada do homem tagarela desapareceu nos pântanos batidos de sol e no ar abrasador. Por fim, Doug respirou:
“Neva, eu nunca vi você falar daquele jeito.”
“E nunca mais verá, Doug.”
“O que você disse era verdade?”
“Nem uma só palavra.”
“Você mentiu, quero dizer, você mentiu?”
“Menti”, Neva piscou. “Você acha que ele estava mentindo também?”
“Não sei.”
“Tudo o que sei é que, às vezes, é preciso uma mentira para acabar com outra, Doug. Desta vez, pelo menos. Não deixe que isso se torne um hábito.”
“Não, madame.” Ele começou a rir. “Fale novamente aquela coisa de raiz de mandrágora. Fale daquela coisa de acônito no meu bolso. Fale da pistola com uma bala de prata, diga.”
Ela falou. Os dois começaram a rir.
Gritando e fazendo algazarra, eles se foram em seu carrinho lata-velha sobre trilhas de cascalho e lombadas, ela falando, ele escutando, olhos apertados, gargalhando, caçoando, tagarelando.
Só pararam de rir quando caíram dentro d’água em suas roupas de banho e saíram todo sorridentes.
O sol estava quente no meio do céu e eles brincaram na água alegremente por cinco minutos antes de começarem realmente a nadar nas frescas ondas mentoladas.
Somente ao entardecer, quando o sol de repente se foi e as sombras se projetavam das árvores, é que eles se lembraram que tinham de descer de volta aquela estrada solitária atravessando todos aqueles lugares escuros e passando pelo pântano deserto para chegar à cidade.
Ficaram ao lado do carro e olharam para baixo, para aquela longa estrada. Doug engoliu em seco.
“Nada pode nos acontecer no caminho de casa.”
“Nada.”
“Pule!”
Eles saltaram para os assentos e Neva deu partida no motor com gosto e eles arrancaram.
Dirigiram passando debaixo de árvores cor de ameixa e entre colinas de veludo púrpura.
E nada aconteceu.
Dirigiram por uma estrada larga de cascalho grosso que estava ficando da cor de ameixas e sentiram o cheiro do ar fresco-morno, que parecia com o de lilases, e entreolhavam-se, esperando.
E nada aconteceu.
Neva começou finalmente a cantarolar de lábios fechados.
A estrada estava deserta.
E então não estava mais deserta.
Neva riu. Douglas apertava os olhos e ria com ela.
Havia um garotinho, de uns nove anos talvez, vestido com um terno de verão cor de baunilha, sapatos brancos e gravata branca, o rosto rosado e lavado, esperando à beira da estrada. Ele acenou.
Neva freou o carro.
“Indo para a cidade?”, perguntou o garoto, alegremente. “Me perdi. O pessoal do piquenique foi embora sem mim. Que bom que vocês apareceram. É assustador por aqui.”
“Suba!”
O menino subiu e eles arrancaram, o garoto no banco de trás, e Doug e Neve na frente, olhando de vez em quando para ele, rindo e depois silenciando.
O garotinho ficou em silêncio por um longo tempo atrás deles, sentado ereto, rígido e limpo e vivaz e fresco e novo em seu terno claro.
E eles dirigiram pela estrada vazia sob um céu que agora estava escuro, com umas poucas estrelas e o vento que esfriava.
E finalmente o menino falou e disse algo que Doug não conseguiu ouvir, mas viu Neva enrijecer e seu rosto ficar pálido como o sorvete de onde foi tirado o terno do garotinho.
“O quê?”, perguntou Doug, lançando um olhar para trás.
O garotinho o olhou diretamente, sem piscar, e sua boca se mexeu sozinha como se estivesse separada do rosto.
O motor do carro rateou e morreu.
Eles foram diminuindo até parar totalmente.
Doug viu Neva pisando e pelejando com o acelerador e a ignição. Mas, sobretudo, ele escutou o garotinho dizer no silêncio novo e permanente:
“Algum de vocês já pensou alguma vez...”
O menino tomou fôlego e concluiu:
“...se existe algo como maldade genética no mundo?”
Ray Bradbury, "A cidade inteira dorme e outros contos breves"
“Engolidor de fogo”, disse Douglas. “Estou engolindo fogo. Droga, mal posso esperar por aquele lago!”
De repente, lá em frente, havia um homem à beira da estrada.
Camisa aberta revelando o corpo bronzeado até a cintura, os cabelos alourados da cor do trigo maduro de julho, os olhos do homem incandesciam azuis de fogo, em um ninho de rugas de sol. Ele acenava, morrendo de calor.
Neva afundou o pé no freio. Ferozes nuvens de poeira se levantaram, fazendo o homem desaparecer. Quando a poeira dourada assentou, seus olhos quentes amarelados rebrilhavam, ameaçadores, como os de um gato, desafiando o tempo e o vento causticante.
Ele encarou Douglas.
Douglas desviou o olhar, nervosamente.
Dava para ver por onde o homem havia atravessado um campo de grama alta, amarelada, tostada e queimada por oito semanas de nenhuma chuva. Havia uma trilha onde o homem tinha amassado a grama e aberto uma passagem para a estrada. A trilha ia até onde a vista alcançava, descendo em direção a um pântano seco e um leito seco de riacho sem nada além de pedras quentes e tostadas e rochas fritas e areia derretida.
“Mal posso acreditar que você parou!”, gritou o homem raivosamente.
“Mal posso acreditar que parei”, Neva gritou de volta. “Aonde você está indo?”
“Vou pensar em algum lugar.” O homem saltou como um gato e se aboletou no banco de trás. “Vá andando. Está atrás de nós! O sol, quero dizer, é claro!” Ele apontou diretamente para o alto. “Anda! Ou vamos todos enlouquecer!”
Neva enfiou o pé no acelerador. O carro saiu do cascalho e pairou sobre pura poeira ardente, reduzindo apenas de vez em quando ao se desviar de alguma rocha ou ao topar com uma pedra. Eles cortavam a terra ao meio ruidosamente. Acima dela, o homem gritava:
“Acelere para cem, cento e vinte, diabo, por que não cento e cinquenta!”
Neva lançou um rápido olhar crítico ao leão, o homem no banco de trás, para ver se conseguia fechar suas mandíbulas com um olhar. Elas se fecharam.
E é assim, claro, como Doug se sentia com respeito à fera. Não um estranho, não; não um caroneiro, mas um intruso. Apenas dois minutos depois de saltar para dentro do carro muito quente, com seu cabelo de selva e cheiro de selva, ele havia conseguido se indispor com o clima, o automóvel, Doug e sua honorável e perspirante tia. Agora ela se debruçava sobre o volante e guiava o carro por entre tempestades de calor e chicotadas de cascalho.
Enquanto isso, a criatura no assento de trás, com sua grande juba leonina e olhos amarelados de menta fresca, lambia os beiços e olhava direto para Doug no espelho retrovisor. Ele deu uma piscadela. Douglas tentou piscar de volta, mas por algum motivo a pálpebra não quis abaixar.
“Você alguma vez tentou imaginar...”, gritou o homem.
“O quê?”, gritou Neva.
“Você alguma vez tentou imaginar...”, berrou o homem, inclinando-se para a frente entre eles, “...se o tempo está deixando ou não você doido, ou se você já é doido?”
A pergunta foi uma surpresa, que subitamente os refrescou naquele dia de fornalha.
“Não entendi direito...”, disse Neva.
“Nem ninguém!” O homem cheirava como um fosso de leões. Seus braços magros se levantavam e abaixavam entre eles, nervosamente amarrando e desamarrando um cordão invisível. Ele se mexia como se houvesse ninhos de cabelos em chama sob cada axila.
“Num dia como hoje, o inferno todo está solto dentro de sua cabeça. Lúcifer nasceu em um dia assim, em uma desolação como esta”, disse o homem. “Com apenas fogo e chamas e fumaça em toda parte”, disse o homem. “E tudo tão quente que você não conseguia tocar, e as pessoas não querendo ser tocadas”, disse o homem.
Ele deu uma cutucada no cotovelo dela, uma cutucada no rapaz.
Eles saltaram mais de um quilômetro.
“Vê?” O homem sorriu. “Num dia como hoje, você começa a pensar montes de coisas.” Ele sorria. “Não é este o verão em que os dezessete anos de gafanhotos devem voltar como num puro holocausto? Pragas simples, mas multitudinárias?”
“Não sei.” Neva dirigia rápido, olhando sempre para a frente.
“Este é o verão. O holocausto está logo ali na esquina. Estou pensando tão rápido que meus olhos doem, minha cabeça racha. Sou capaz de explodir em uma bola de fogo a um simples pensamento desconectado. Ora... ora... ora.”
Neva engoliu em seco. Doug suspendeu a respiração.
Muito subitamente, eles ficaram aterrorizados. Pois o homem simplesmente continuava tagarelando, olhando para as árvores de fogo verde-ondulantes de calor que passavam queimando de um lado e de outro, aspirando a poeira grossa e quente que se levantava em torno do carro de lata; sua voz não estava nem alta nem baixa, mas firme e calma agora, ao descrever sua vida:
“Sim, senhor, há mais no mundo do que as pessoas dão valor. Se pode haver dezessete anos de gafanhotos, por que não dezessete anos de pessoas? Já pensaram nisso?”
“Nunca pensei”, disse alguém.
Provavelmente eu, pensou Doug, pois sua boca se movera como um camundongo.
“Ou que tal vinte e quatro anos de pessoas, ou cinqüenta e sete anos? Quero dizer, estamos tão acostumados a pessoas crescendo, casando, tendo filhos, que nunca paramos para pensar que talvez haja outras maneiras de elas virem ao mundo, talvez como gafanhotos, de vez em quando, quem sabe, um dia quente, no meio do verão!”
“Quem sabe?” Lá estava o camundongo novamente. Os lábios de Doug tremiam.
“E quem pode dizer que não há maldade genética no mundo?”, perguntou o homem ao Sol, olhando diretamente para o alto, para o Sol, sem piscar.
“Que tipo de maldade?”, perguntou Neva.
“Genética, madame. Ou seja, no sangue. As pessoas que nasceram más, cresceram más, morreram más, sem nenhuma mudança até o fim da linha.”
“Uau!”, disse Douglas. “Você quer dizer pessoas que começaram malvadas e continuaram assim?”
“Captou a mensagem, garoto. Por que não? Se existem pessoas que todo mundo acha que são uns anjos de candura desde o primeiro doce suspiro até o último, por que não vileza pura e simples, de primeiro de janeiro a dezembro, trezentos e sessenta e cinco dias por ano?”
“Nunca pensei nisso”, disse o camundongo.
“Pense”, disse o homem. “Pense.”
Eles pensaram por mais de cinco segundos.
“Agora”, disse o homem, apertando um dos olhos ao olhar para o lago fresco a oito quilômetros de distância, o outro fechado para dentro da escuridão e ruminando ali sobre um monte de fatos. “Ouçam. E se o calor intenso, quero dizer, o calor realmente quente, quente de um mês como este, em uma semana como esta, em um dia como hoje, simplesmente produzisse um Homem Mau, feito de lama do rio assada. Que estava ali, enterrado na lama por quarenta e sete anos, como uma maldita larva, esperando vir à luz. E ele despertasse com uma sacudida e olhasse em volta, totalmente adulto, e saísse da lama quente para o mundo e dissesse: ‘Acho que vou comer um verão’.”
“Como é mesmo?”
“Comer um verão, garoto; verão, madame. Simplesmente devorá-lo inteiro. Olhe para as árvores, não são um jantar inteiro? Olhe para aquele campo de trigo, não é um banquete? Aqueles girassóis à beira da estrada, puxa vida, ali está um café-da-manhã. Papel de alcatrão no telhado daquela casa, ali está o almoço. E o lago, bem lá adiante, minha nossa, é o vinho do jantar, beba-o todo!”
“Estou mesmo com sede”, disse Doug.
“Com sede, diacho, rapaz, ‘com sede’ nem mesmo começa a descrever o estado de um homem, venhamos e convenhamos, que é alguém que esteve esperando na lama quente por trinta anos e nasceu, só para morrer em um dia! Com sede! Pelos deuses! Sua ignorância é total.”
“Bom”, disse Doug.
“Bom”, disse o homem. “Não apenas com sede, mas faminto. Faminto. Olhe em volta. Não apenas comer as árvores e depois as flores abrasadas à beira das estradas, mas depois os cães ofegantes mortos de calor. Lá está um. Lá está outro! E todos os gatos do país. Lá estão dois, acabaram de passar três! E se, então, o feliz glutão começar simplesmente a... ora, por que não... começar a sair por aí... vou lhe dizer, que tal isto... comendo gente? Quero dizer... pessoas! Pessoas fritas, cozidas, fervidas e parboilizadas. Belezas de pessoas bronzeadas. Velhos, jovens. Chapéus de velhinhas e depois as velhinhas debaixo dos chapéus e depois cachecóis de jovens moças e jovens moças e, em seguida, calções de banho de jovens rapazes, meu Deus, e jovens rapazes, cotovelos, tornozelos, orelhas, artelhos e sobrancelhas! Sobrancelhas, puxa vida, homens, mulheres, rapazes, moças, cães, completando o cardápio, afiem seus dentes, lambam os beiços, o jantar está servido!”
“Espere aí!”, alguém gritou.
Eu não, pensou Doug. Eu não disse nada.
“Um momento aí!”, alguém gritou.
Era Neva.
Ele viu o joelho dela se levantar como por intuição e se abaixar como por uma decisão irrevogável.
Pá! Bateu o calcanhar no chão.
O carro freou. Neva abriu a porta do carro, apontando, gritando, apontando, gritando, a boca nervosa, uma das mãos estendida agarrando a camisa do homem e rasgando-a.
“Fora. Saia!”
“Aqui, madame?” O homem estava atônito.
“Aqui, aqui, aqui, fora, fora, fora!”
“Mas, madame...!”
“Fora, ou você está acabado, acabado”, gritou Neva, descontroladamente. “Tenho uma carga de bíblias no porta-malas, uma pistola com uma bala de prata aqui, debaixo do volante. Uma caixa de crucifixos debaixo do banco! Uma estaca de madeira presa ao eixo, junto com um martelo. Tenho água benta no carburador, abençoada antes de ferver, hoje de manhã cedo e três igrejas no caminho: a católica de São Mateus, a batista da Torre Verde e a episcopal Cidade do Sião. Essa energia vai acabar com você. Seguindo a gente, um quilômetro atrás e devendo chegar a qualquer momento, está o reverendo bispo Kelly de Chicago. Lá no lago, está o padre Rooney de Milwaukee, e Doug, ora, Doug aqui tem em seu bolso traseiro, neste minuto, uma espiga de acônito e dois pedaços de raiz de mandrágora. Saia! Saia! Saia!”
“Ora, madame”, gritou o homem. “Já saí.”
E saiu.
Bateu no chão e rolou na estrada.
Neva arrancou o carro a toda a velocidade.
Lá atrás, o homem se compunha e gritava:
“Você deve ser louca. Deve ser maluca. Louca. Maluca.”
“Eu, louca? Eu, maluca?”, disse Neva, e resmungou: “Puxa!”.
“... louca... maluca…”
A voz foi sumindo.
Douglas olhou para trás e viu o homem sacudir o punho e então rasgar a camisa e jogá-la no cascalho e saltando para fugir de grandes nuvens de poeira quente, com os pés descalços.
O carro explodia, corria, acelerava, avançava estourando freneticamente, sua tia ferozmente colada ao volante quente, até que a pequena figura suada do homem tagarela desapareceu nos pântanos batidos de sol e no ar abrasador. Por fim, Doug respirou:
“Neva, eu nunca vi você falar daquele jeito.”
“E nunca mais verá, Doug.”
“O que você disse era verdade?”
“Nem uma só palavra.”
“Você mentiu, quero dizer, você mentiu?”
“Menti”, Neva piscou. “Você acha que ele estava mentindo também?”
“Não sei.”
“Tudo o que sei é que, às vezes, é preciso uma mentira para acabar com outra, Doug. Desta vez, pelo menos. Não deixe que isso se torne um hábito.”
“Não, madame.” Ele começou a rir. “Fale novamente aquela coisa de raiz de mandrágora. Fale daquela coisa de acônito no meu bolso. Fale da pistola com uma bala de prata, diga.”
Ela falou. Os dois começaram a rir.
Gritando e fazendo algazarra, eles se foram em seu carrinho lata-velha sobre trilhas de cascalho e lombadas, ela falando, ele escutando, olhos apertados, gargalhando, caçoando, tagarelando.
Só pararam de rir quando caíram dentro d’água em suas roupas de banho e saíram todo sorridentes.
O sol estava quente no meio do céu e eles brincaram na água alegremente por cinco minutos antes de começarem realmente a nadar nas frescas ondas mentoladas.
Somente ao entardecer, quando o sol de repente se foi e as sombras se projetavam das árvores, é que eles se lembraram que tinham de descer de volta aquela estrada solitária atravessando todos aqueles lugares escuros e passando pelo pântano deserto para chegar à cidade.
Ficaram ao lado do carro e olharam para baixo, para aquela longa estrada. Doug engoliu em seco.
“Nada pode nos acontecer no caminho de casa.”
“Nada.”
“Pule!”
Eles saltaram para os assentos e Neva deu partida no motor com gosto e eles arrancaram.
Dirigiram passando debaixo de árvores cor de ameixa e entre colinas de veludo púrpura.
E nada aconteceu.
Dirigiram por uma estrada larga de cascalho grosso que estava ficando da cor de ameixas e sentiram o cheiro do ar fresco-morno, que parecia com o de lilases, e entreolhavam-se, esperando.
E nada aconteceu.
Neva começou finalmente a cantarolar de lábios fechados.
A estrada estava deserta.
E então não estava mais deserta.
Neva riu. Douglas apertava os olhos e ria com ela.
Havia um garotinho, de uns nove anos talvez, vestido com um terno de verão cor de baunilha, sapatos brancos e gravata branca, o rosto rosado e lavado, esperando à beira da estrada. Ele acenou.
Neva freou o carro.
“Indo para a cidade?”, perguntou o garoto, alegremente. “Me perdi. O pessoal do piquenique foi embora sem mim. Que bom que vocês apareceram. É assustador por aqui.”
“Suba!”
O menino subiu e eles arrancaram, o garoto no banco de trás, e Doug e Neve na frente, olhando de vez em quando para ele, rindo e depois silenciando.
O garotinho ficou em silêncio por um longo tempo atrás deles, sentado ereto, rígido e limpo e vivaz e fresco e novo em seu terno claro.
E eles dirigiram pela estrada vazia sob um céu que agora estava escuro, com umas poucas estrelas e o vento que esfriava.
E finalmente o menino falou e disse algo que Doug não conseguiu ouvir, mas viu Neva enrijecer e seu rosto ficar pálido como o sorvete de onde foi tirado o terno do garotinho.
“O quê?”, perguntou Doug, lançando um olhar para trás.
O garotinho o olhou diretamente, sem piscar, e sua boca se mexeu sozinha como se estivesse separada do rosto.
O motor do carro rateou e morreu.
Eles foram diminuindo até parar totalmente.
Doug viu Neva pisando e pelejando com o acelerador e a ignição. Mas, sobretudo, ele escutou o garotinho dizer no silêncio novo e permanente:
“Algum de vocês já pensou alguma vez...”
O menino tomou fôlego e concluiu:
“...se existe algo como maldade genética no mundo?”
Ray Bradbury, "A cidade inteira dorme e outros contos breves"
Ensinamento
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
Adélia Prado
Do inédito
E quando, morto de mesmice, te vier a nostalgia de climas e costumes exóticos, de jornais impressos em misteriosos caracteres, de curiosas beberagens, de roupas de estranho corte e colorido, lembra-te que para alguém nós somos os antípodas: um remoto, inacreditável povo do outro lado do mundo, quase do outro lado da vida — uma gente de se ficar olhando, olhando, pasmado... Nós, os antípodas, somos assim.
Mario Quintana, "Sapato Florido"
Mario Quintana, "Sapato Florido"
Conversa de morango
— Olha aí, os primeiros morangos! Bonita cor, bonita palavra, mas em junho? Em julho é que eles deviam aparecer oficialmente, anda tudo mudado, enfim desta vez mudou para melhor, não houve adiamento para outubro ou novembro por motivos de ordem técnica, esses motivos que a gente não fica sabendo quais sejam, mas os morangos nunca mais foram colhidos diretamente no bosque, ou, se você prefere, na campina verdejante, por dedos jovens que logo os levavam à boca, a propósito: seus lábios eram assim tão vermelhos, ou você os pintava com morango espremido? Hoje eles (os morangos, claro que não me refiro aos lábios) vêm em cestinhas de taquara ou de lâminas finas de madeira, dizem até que já brotam assim da rama acondicionados em cestinhas maiores ou menores, conforme a intenção do vendedor e as posses do consumidor, são apartamentos de morango, né? uns maiores, outros menores, como acontece com a gente, ai morangos! O ácido sabor cortado pela branca moleza do creme Chantilly, e essa agora, quando que morango brasileiro de hábitos silvestres podia imaginar que seria misturado a essa francesice, edulcorado a sucre vanillé e todas as milongolias conotativas que o nome desperta: forêt, chateau, porcelaine, dentelles… deixa pra lá, no fundo ele gosta, é a sofisticação invadindo a natureza, morango de inverno virou primo-rico de morango de todo o ano, sente-se e prove a sobremesa, deixe um pouco de creme, um pouquinho só, nevar a quase imperceptível penugem do seu buço, criança gosta de se lambuzar e de ver os outros lambuzados, faz de conta que você, assim de botas e de short, caminhou para trás no tempo, aliás, pouco, não estamos no Nino’s, que importância tem isso? O morango maior, esse aí, tenha paciência, vou furtá-lo de sua taça, ele me pertence de direito imemorial, não, não vamos dividi-lo, que negócio é esse? Sou capaz de brigar por causa de um supermorango, você ainda não me conhece bem, deixe eu ser glutão, egoísta e bárbaro, mas se você faz mesmo questão de um sacrifício de minha parte, e tendo em vista as altas razões que movem o coração dos dominadores, bem, eu, el-rei, vos envio muito saudar e deposito pessoalmente em sua boca o maior dos morangos do meu reino, ainda ontem ele estava exposto na vitrine de uma casa de frutas da rua da Carioca, foi fotografado e televisionado, creio até que foi entrevistado mas falou monossílabos, não é de muito falar, morango vale por si, independente de suas ideias, uns o acharam cafona, mania dessa gente chamar de cafona tudo que foge à bitola estreita, repare que apesar de toda essa onda ele é dos mais discretos e honrados entre os morangos da presente safra, da qual não se pode ainda afirmar que seja esplendorosa ou medíocre, repare ainda que nem é propriamente um morango gigante, cabe fácil na colher, o que há é que ele me pareceu destinado a mim por um signo invisível gravado em sua epiderme rubra, quem sabe o que os morangos levam de código, há frutas sem mensagem, vazias, podiam não existir que ninguém lhes sentiria a falta, mas o morango tem uma personalidade! Talvez eu exagere, não é tanto assim, mas há momentos na vida do homem em que é imperativo conferir propriedades novas às coisas, propriedades que podem suplantar as que lhes são imanentes, se eu não tiver o poder de exaltar ao máximo os morangos, que me resta de positivo entre estes muros e circunstâncias, me diga por favor, ah, prefere não falar, eu sei, prefere degustar um a um a porção de morangos que o garçom lhe adjudicou, por sinal que ele botou mais na sua taça do que na minha, eu faria o mesmo, gentileza não é privilégio de garçons, gentileza maior eu faria na mata municipal, não a mata virgem de jaguar e suçuarana, mas num matinho particular onde, caminhando juntos, topássemos com um silencioso pé de amora, prefiro dizer framboesa, e só uma framboesa estaria madura, para você eu a destinara desde que nasci, estava ali me, nos esperando, mágica, mística, morada como em espanhol se fala, e eu a colheria e ela se abriria, em concha, e dentro dela estaria ofertada a você a razão primeira das coisas, o inefável sentido das coisas diversas, pode levar, isto é seu, o mundo lhe pertence a partir deste momento… viu o que se pode tirar da notícia de morangos em junho, viu?
Carlos Drummond de Andrade, "De notícias e não notícias faz-se a crônica"
Carlos Drummond de Andrade, "De notícias e não notícias faz-se a crônica"
segunda-feira, setembro 29
Sem experimentar raiva nem piedade
Havia uma guerra contra os turcos. O visconde Medardo di Terralba, meu tio, cavalgava pelas planícies da Boêmia rumo ao acampamento dos cristãos. Acompanhava-o um escudeiro chamado Curzio.
As cegonhas voavam baixo, em bandos brancos, atravessando o ar opaco e parado.
— Por que tantas cegonhas? — perguntou Medardo a Curzio —, para onde estão voando?
Meu tio acabava de chegar, se alistara havia pouco, para agradar a alguns duques, nossos vizinhos, empenhados naquela guerra. Munira-se de um cavalo e de um escudeiro no último castelo em mãos cristãs, e ia apresentar-se ao quartel imperial.
— Estão voando para os campos de batalha — disse o escudeiro, sombrio. — Vão nos acompanhar por todo o caminho.
O visconde Medardo ficara sabendo que naquelas terras o voo das cegonhas é sinal de boa sorte; e queria mostrar-se alegre por vê-las. Mas, a contragosto, sentia-se inquieto.
— O que pode atrair as pernaltas aos campos de batalha, Curzio? — perguntou.
— Agora, também elas comem carne humana — respondeu o escudeiro —, desde que a carestia tornou os campos áridos e a estiagem secou os rios. Onde há cadáveres, as cegonhas, os flamingos e os grous substituíram os corvos e os abutres.
Meu tio se achava então na primeira juventude: a idade em que os sentimentos se misturam todos num ímpeto confuso, ainda não separados em bem e mal; a idade em que cada experiência nova, também macabra e desumana, é toda trepidante e efervescente de amor pela vida.
— E os corvos? E os abutres? — perguntou. — E as aves de rapina? Onde foram parar? — Estava pálido, mas seus olhos cintilavam.
O escudeiro era um soldado de pele escura, bigodudo, que nunca erguia os olhos.
— À força de comer as vítimas da peste, a peste os atacou também. — E apontou com a lança certas moitas escuras que a um olhar mais atento se revelavam não de plantas, mas de penas e pés ressecados de aves de rapina.
— Assim, nem dá para saber quem morreu antes, se a ave ou o homem, e quem se lançou sobre o outro para esganá-lo — disse Curzio.
Para fugir da peste que exterminava as populações, famílias inteiras tinham se encaminhado para os campos, e a agonia havia golpeado a todos ali. Em montes de carcaças, espalhadas pela planície árida, viam-se corpos de homens e mulheres, nus, desfigurados pelas marcas da peste e, coisa a princípio inexplicável, penugentos: como se daqueles braços macilentos e costelas tivessem crescido penas pretas e asas. Eram as carcaças de abutres misturadas com as sobras deles.
O terreno já ia mostrando sinais de batalhas. A marcha se tornara mais lenta porque os dois cavalos topavam nos restos e lombadas.
— O que está acontecendo com nossos cavalos? — perguntou Medardo ao escudeiro.
— Senhor — respondeu ele —, nada desagrada tanto aos cavalos quanto o fedor das próprias tripas.
A faixa de planície que atravessavam achava-se de fato cheia de carcaças equinas, algumas para cima, com os cascos voltados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfiado na terra.
— Por que tantos cavalos caídos neste ponto, Curzio? — perguntou Medardo.
— Quando o cavalo sente que está sendo atingido na barriga — explicou Curzio —, trata de segurar as vísceras. Alguns apoiam a pança no chão, outros se viram de costas para que elas não caiam. Mas a morte não tarda a ceifá-los do mesmo jeito.
— Quer dizer que são sobretudo os cavalos que morrem nesta guerra?
— As cimitarras turcas parecem feitas de propósito para rasgar-lhes o ventre com um só golpe. Mais adiante verá os corpos dos homens. Primeiro caem os cavalos e depois os cavaleiros. Pronto, lá está o campo.
Nos limites do horizonte elevavam-se os pináculos das tendas mais altas, os estandartes do exército imperial e a fumaça.
Continuando a galopar, viram que os caídos da última batalha tinham sido quase todos removidos e enterrados. Só se viam alguns membros dispersos, especialmente dedos, apoiados nos restolhos.
— De vez em quando há um dedo indicando o caminho — disse meu tio Medardo. — Que significa?
— Deus os perdoe: os vivos cortam os dedos dos mortos para arrancar-lhes os anéis.
— Quem vem lá? — disse uma sentinela com capote coberto de mofo e musgo como a casca de uma árvore exposta à tramontana.
— Viva a sagrada coroa imperial! — gritou Curzio.
— E que morra o sultão! — replicou a sentinela. — Mas, por favor, quando chegarem ao comando, digam-lhes para mudar logo o turno, pois começo a deitar raízes!
Agora os cavalos corriam para escapar da nuvem de moscas que circundava o campo, zumbindo pelas montanhas de excrementos.
— De muitos valentes — observou Curzio — o esterco de ontem ainda está no chão, e eles já chegaram ao céu. — E benzeu-se.
Na entrada do acampamento, costearam uma fila de baldaquins, sob os quais mulheres de cabelos encaracolados e corpulentas, com longos vestidos de brocado e os seios nus, acolheram-nos com gritos e risadas.
— São os pavilhões das cortesãs — disse Curzio. — Nenhum exército possui outras tão lindas.
Meu tio já cavalgava com o rosto virado para trás, observando-as.
— Cuidado, senhor — acrescentou o escudeiro —, andam tão sujas e empestadas que nem os turcos as aceitariam como presas de um saque. Além de carregadas de chatos, percevejos e carrapatos, agora até os escorpiões e os lagartos fazem ninhos sobre elas.
Passaram diante das baterias do campo. À noite, os artilheiros cozinhavam o rancho de água e nabos no bronze das espingardas e dos canhões, abrasado dos intensos disparos da jornada.
Chegavam carroças cheias de terra e os artilheiros a peneiravam.
— A pólvora está ficando escassa — explicou Curzio —, mas a terra onde as batalhas aconteceram está tão impregnada que, insistindo-se, dá para recuperar algumas cargas.
Depois vinham as instalações da cavalaria, onde, entre as moscas, os veterinários trabalhavam sem parar remendando a pele dos quadrúpedes com costuras, faixas e emplastos de alcatrão fervente, todos relinchando e escoiceando, inclusive os doutores.
As tendas da infantaria seguiam-se por um grande trecho. O sol se punha e diante de cada tenda os soldados estavam sentados com os pés imersos em tinas de água morna. Sendo comuns os alarmes repentinos de dia e de noite, mesmo na hora do pedilúvio continuavam a segurar o capacete e a lança. Em tendas mais altas e montadas em forma de quiosque, os oficiais punham talco nas axilas e se refrescavam com leques de rendas.
— Não fazem isso por frescura — disse Curzio —, ao contrário: querem mostrar que se acham completamente à vontade em meio à dureza da vida militar.
O visconde de Terralba foi logo conduzido à presença do imperador. Em seu pavilhão cheio de tapeçarias e troféus, o soberano estudava nos mapas os planos de futuras batalhas. As mesas estavam cobertas de mapas abertos, e o imperador espetava neles alfinetes, retirando-os de uma almofada própria que um dos marechais lhe estendia. Os mapas já estavam tão carregados de alfinetes que não se entendia mais nada, e para ler alguma coisa precisavam tirar os alfinetes e voltar a recolocá-los. Nesse tira e põe, para ficar com as mãos livres, tanto o imperador quanto os marechais mantinham os alfinetes entre os lábios e só podiam falar por meio de ganidos.
Ao ver o jovem que se inclinava diante dele, o soberano emitiu um ganido interrogativo e tirou depressa os alfinetes da boca.
— Um cavaleiro recém-chegado da Itália, majestade — apresentaram-no —, o visconde de Terralba, de uma das mais nobres famílias da região de Gênova.
— Que seja logo nomeado tenente.
Meu tio bateu as esporas, ficando em sentido, enquanto o imperador fazia um amplo gesto real e todos os mapas se enrolavam sobre si mesmos e caíam.
Naquela noite, embora cansado, Medardo tardou a dormir. Andava para a frente e para trás perto da tenda, e ouvia os apelos das sentinelas, os cavalos relinchando e a fala entrecortada de soldados durante o sono. Observava no céu as estrelas da Boêmia, pensava na nova patente, na batalha do dia seguinte e na pátria distante, na música dos caniços dentro d’água. No coração não guardava nem nostalgia, nem dúvidas, nem apreensão. Para ele as coisas ainda eram inteiras e indiscutíveis, e assim era ele próprio. Se tivesse podido prever a terrível sorte que o aguardava, talvez também a tivesse considerado natural e acabada, mesmo em toda a sua dor. Estendia o olhar até o limite do horizonte noturno, onde sabia que se localizava o campo dos inimigos, e com os braços cruzados apertava as costas com as mãos, contente por ter certeza ao mesmo tempo de realidades longínquas e diferentes, e da própria presença no meio delas. Sentia o sangue daquela guerra cruel, disseminado por mil córregos sobre a terra, chegar até ele; e se deixava tocar, sem experimentar raiva nem piedade.
As cegonhas voavam baixo, em bandos brancos, atravessando o ar opaco e parado.
— Por que tantas cegonhas? — perguntou Medardo a Curzio —, para onde estão voando?
Meu tio acabava de chegar, se alistara havia pouco, para agradar a alguns duques, nossos vizinhos, empenhados naquela guerra. Munira-se de um cavalo e de um escudeiro no último castelo em mãos cristãs, e ia apresentar-se ao quartel imperial.
— Estão voando para os campos de batalha — disse o escudeiro, sombrio. — Vão nos acompanhar por todo o caminho.
O visconde Medardo ficara sabendo que naquelas terras o voo das cegonhas é sinal de boa sorte; e queria mostrar-se alegre por vê-las. Mas, a contragosto, sentia-se inquieto.
— O que pode atrair as pernaltas aos campos de batalha, Curzio? — perguntou.
— Agora, também elas comem carne humana — respondeu o escudeiro —, desde que a carestia tornou os campos áridos e a estiagem secou os rios. Onde há cadáveres, as cegonhas, os flamingos e os grous substituíram os corvos e os abutres.
Meu tio se achava então na primeira juventude: a idade em que os sentimentos se misturam todos num ímpeto confuso, ainda não separados em bem e mal; a idade em que cada experiência nova, também macabra e desumana, é toda trepidante e efervescente de amor pela vida.
— E os corvos? E os abutres? — perguntou. — E as aves de rapina? Onde foram parar? — Estava pálido, mas seus olhos cintilavam.
O escudeiro era um soldado de pele escura, bigodudo, que nunca erguia os olhos.
— À força de comer as vítimas da peste, a peste os atacou também. — E apontou com a lança certas moitas escuras que a um olhar mais atento se revelavam não de plantas, mas de penas e pés ressecados de aves de rapina.
— Assim, nem dá para saber quem morreu antes, se a ave ou o homem, e quem se lançou sobre o outro para esganá-lo — disse Curzio.
Para fugir da peste que exterminava as populações, famílias inteiras tinham se encaminhado para os campos, e a agonia havia golpeado a todos ali. Em montes de carcaças, espalhadas pela planície árida, viam-se corpos de homens e mulheres, nus, desfigurados pelas marcas da peste e, coisa a princípio inexplicável, penugentos: como se daqueles braços macilentos e costelas tivessem crescido penas pretas e asas. Eram as carcaças de abutres misturadas com as sobras deles.
O terreno já ia mostrando sinais de batalhas. A marcha se tornara mais lenta porque os dois cavalos topavam nos restos e lombadas.
— O que está acontecendo com nossos cavalos? — perguntou Medardo ao escudeiro.
— Senhor — respondeu ele —, nada desagrada tanto aos cavalos quanto o fedor das próprias tripas.
A faixa de planície que atravessavam achava-se de fato cheia de carcaças equinas, algumas para cima, com os cascos voltados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfiado na terra.
— Por que tantos cavalos caídos neste ponto, Curzio? — perguntou Medardo.
— Quando o cavalo sente que está sendo atingido na barriga — explicou Curzio —, trata de segurar as vísceras. Alguns apoiam a pança no chão, outros se viram de costas para que elas não caiam. Mas a morte não tarda a ceifá-los do mesmo jeito.
— Quer dizer que são sobretudo os cavalos que morrem nesta guerra?
— As cimitarras turcas parecem feitas de propósito para rasgar-lhes o ventre com um só golpe. Mais adiante verá os corpos dos homens. Primeiro caem os cavalos e depois os cavaleiros. Pronto, lá está o campo.
Nos limites do horizonte elevavam-se os pináculos das tendas mais altas, os estandartes do exército imperial e a fumaça.
Continuando a galopar, viram que os caídos da última batalha tinham sido quase todos removidos e enterrados. Só se viam alguns membros dispersos, especialmente dedos, apoiados nos restolhos.
— De vez em quando há um dedo indicando o caminho — disse meu tio Medardo. — Que significa?
— Deus os perdoe: os vivos cortam os dedos dos mortos para arrancar-lhes os anéis.
— Quem vem lá? — disse uma sentinela com capote coberto de mofo e musgo como a casca de uma árvore exposta à tramontana.
— Viva a sagrada coroa imperial! — gritou Curzio.
— E que morra o sultão! — replicou a sentinela. — Mas, por favor, quando chegarem ao comando, digam-lhes para mudar logo o turno, pois começo a deitar raízes!
Agora os cavalos corriam para escapar da nuvem de moscas que circundava o campo, zumbindo pelas montanhas de excrementos.
— De muitos valentes — observou Curzio — o esterco de ontem ainda está no chão, e eles já chegaram ao céu. — E benzeu-se.
Na entrada do acampamento, costearam uma fila de baldaquins, sob os quais mulheres de cabelos encaracolados e corpulentas, com longos vestidos de brocado e os seios nus, acolheram-nos com gritos e risadas.
— São os pavilhões das cortesãs — disse Curzio. — Nenhum exército possui outras tão lindas.
Meu tio já cavalgava com o rosto virado para trás, observando-as.
— Cuidado, senhor — acrescentou o escudeiro —, andam tão sujas e empestadas que nem os turcos as aceitariam como presas de um saque. Além de carregadas de chatos, percevejos e carrapatos, agora até os escorpiões e os lagartos fazem ninhos sobre elas.
Passaram diante das baterias do campo. À noite, os artilheiros cozinhavam o rancho de água e nabos no bronze das espingardas e dos canhões, abrasado dos intensos disparos da jornada.
Chegavam carroças cheias de terra e os artilheiros a peneiravam.
— A pólvora está ficando escassa — explicou Curzio —, mas a terra onde as batalhas aconteceram está tão impregnada que, insistindo-se, dá para recuperar algumas cargas.
Depois vinham as instalações da cavalaria, onde, entre as moscas, os veterinários trabalhavam sem parar remendando a pele dos quadrúpedes com costuras, faixas e emplastos de alcatrão fervente, todos relinchando e escoiceando, inclusive os doutores.
As tendas da infantaria seguiam-se por um grande trecho. O sol se punha e diante de cada tenda os soldados estavam sentados com os pés imersos em tinas de água morna. Sendo comuns os alarmes repentinos de dia e de noite, mesmo na hora do pedilúvio continuavam a segurar o capacete e a lança. Em tendas mais altas e montadas em forma de quiosque, os oficiais punham talco nas axilas e se refrescavam com leques de rendas.
— Não fazem isso por frescura — disse Curzio —, ao contrário: querem mostrar que se acham completamente à vontade em meio à dureza da vida militar.
O visconde de Terralba foi logo conduzido à presença do imperador. Em seu pavilhão cheio de tapeçarias e troféus, o soberano estudava nos mapas os planos de futuras batalhas. As mesas estavam cobertas de mapas abertos, e o imperador espetava neles alfinetes, retirando-os de uma almofada própria que um dos marechais lhe estendia. Os mapas já estavam tão carregados de alfinetes que não se entendia mais nada, e para ler alguma coisa precisavam tirar os alfinetes e voltar a recolocá-los. Nesse tira e põe, para ficar com as mãos livres, tanto o imperador quanto os marechais mantinham os alfinetes entre os lábios e só podiam falar por meio de ganidos.
Ao ver o jovem que se inclinava diante dele, o soberano emitiu um ganido interrogativo e tirou depressa os alfinetes da boca.
— Um cavaleiro recém-chegado da Itália, majestade — apresentaram-no —, o visconde de Terralba, de uma das mais nobres famílias da região de Gênova.
— Que seja logo nomeado tenente.
Meu tio bateu as esporas, ficando em sentido, enquanto o imperador fazia um amplo gesto real e todos os mapas se enrolavam sobre si mesmos e caíam.
Naquela noite, embora cansado, Medardo tardou a dormir. Andava para a frente e para trás perto da tenda, e ouvia os apelos das sentinelas, os cavalos relinchando e a fala entrecortada de soldados durante o sono. Observava no céu as estrelas da Boêmia, pensava na nova patente, na batalha do dia seguinte e na pátria distante, na música dos caniços dentro d’água. No coração não guardava nem nostalgia, nem dúvidas, nem apreensão. Para ele as coisas ainda eram inteiras e indiscutíveis, e assim era ele próprio. Se tivesse podido prever a terrível sorte que o aguardava, talvez também a tivesse considerado natural e acabada, mesmo em toda a sua dor. Estendia o olhar até o limite do horizonte noturno, onde sabia que se localizava o campo dos inimigos, e com os braços cruzados apertava as costas com as mãos, contente por ter certeza ao mesmo tempo de realidades longínquas e diferentes, e da própria presença no meio delas. Sentia o sangue daquela guerra cruel, disseminado por mil córregos sobre a terra, chegar até ele; e se deixava tocar, sem experimentar raiva nem piedade.
Ítalo Calvino, "O visconde partido ao meio"
Poema das árvores
As árvores crescem sós. E a sós florescem.
Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.
Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.
As árvores não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.
Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.
Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.
Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.
Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.
As árvores não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.
Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.
Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.
António Gedeão
História de Verão
Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela, obstinou-se em escolher-me, pousa-me no ombro, descansa dos seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava, era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação perturbava a minha alegria - comigo, como é que faria o seu mel?
Eugénio de Andrade, "Memória doutro Rio"
Eugénio de Andrade, "Memória doutro Rio"
O clássico brasileiro que levou 15 anos para ser traduzido
Com a mesma grafia do português, o termo Sertão é definido pelo Duden, o mais importante dicionário da língua alemã, como uma "região intransitável, formada por mata seca e arbustos". Curiosamente, a alusão do léxico à dificuldade na travessia se conecta com o enredo de Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa. Uma das principais obras da literatura brasileira, o romance tem programado para agosto de 2026, ano em que completa 70 anos, a publicação de uma nova tradução para o idioma de Goethe.
O lançamento está a cargo da editora Fischer Verlag, de Frankfurt, que confirmou a previsão para a chegada da aguardada segunda versão em alemão. Após quase 15 anos de intenso trabalho, o tradutor Berthold Zilly concluiu, em meados de 2025, a empreitada de verter a história do jagunço Riobaldo e a inventiva linguagem de Rosa para a língua germânica.
O texto agora está em processo de revisão pelo coordenador do projeto, Sebastian Guggolz. Além dos últimos ajustes, deverão ser entregues, até o fim deste ano, complementos como glossário, notas e posfácio. "A gente está na reta final, e eu vou sentir um grande alívio. Já estou sentindo agora, porque o grosso já está feito", diz Zilly, que recebeu a reportagem da DW na biblioteca de seu apartamento em Berlim, em agosto deste ano.
O romance do autor mineiro não foi o primeiro confronto de Zilly com o sertão literário. Em 1994, o hoje professor aposentado da Universidade Livre de Berlim e da Universidade de Bremen terminou outra difícil tarefa: traduzir Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, até então inédito na Alemanha. A versão, intitulada Krieg im Sertão (Guerra no Sertão, em tradução livre), recebeu elogios da crítica local e figurou em terceiro na lista dos melhores livros publicados no país naquele ano.
O currículo tradutório de Zilly também inclui os clássicos Lima Barreto e Machado de Assis, além de outro autor brasileiro conhecido por romper com os padrões da linguagem: Raduan Nassar. Apesar da experiência, o desafio de Grande Sertão: Veredas, iniciado ainda em 2011, foi de longe o mais difícil, diz o linguista.
Além da complexa e emaranhada prosa roseana, transfigurada no longo monólogo do narrador Riobaldo, Zilly também teve que se desvencilhar de uma sombra: a de Curt Meyer-Clason (1910-2012), o responsável pela primeira versão do romance na Alemanha. Era essa, na visão do próprio escritor mineiro, a "tradução-mãe" da obra, capaz de orientar outras traduções e de se colocar como ideal para o livro.
Ela saiu ainda em 1964, pela editora Kiepenheuer & Witsch, de Colônia, com o Grande Sertão de Rosa no título original, mas sem o complemento (e os icônicos dois pontos) Veredas. Já para a Fischer, a sugestão de Zilly é que a nova tradução se chame Großer Sertão: Querungen (Grande Sertão: Travessias, em tradução livre).
Sem ter tido a mesma sorte de Meyer-Clason, que se correspondeu com Rosa, Zilly teve que lançar mão de outras estratégias para desvendar a linguagem daquele que foi considerado em 1999, pela Folha de S.Paulo, como o maior romance brasileiro.
Empreendeu viagens pelo sertão mineiro para visitar os cenários do livro e entender melhor o "mineirês", e também fez contatos com Alison Entrekin, tradutora de Grande Sertão para o inglês e que também deve ser publicado no ano que vem pela editora Simon & Schuster. Quando as dúvidas sobre como transferir a estrutura linguística para o alemão apertavam, recorreu principalmente à versão de August Willemsen para o holandês (Diepe Wildernis: de wegen, de 1993), também influenciada por Meyer-Clason, mas que, segundo Zilly, "às vezes recorre nos mesmos erros".
"Meyer-Clason foi um grande mediador das literaturas ibéricas na Alemanha. Conheci ele pessoalmente e sempre me dei bem com ele. Ele produziu um texto num alemão belíssimo, cativante. Popularizou até certo ponto o Sertão e a obra de Guimarães Rosa nos países de língua alemã. Talvez seja a influência dele a integração da palavra sertão nos dicionários alemães", elogia Zilly.
O primeiro tradutor de Rosa para o alemão viveu no Brasil nos anos 1940, mas foi preso em Ilha Grande, acusado de espionagem para o regime nazista. Foi no cárcere que se apaixonou pela literatura brasileira e ibero-americana. De volta à Alemanha, virou uma "máquina de tradução": verteu García Márquez, Clarice Lispector, Jorge Amado, entre outros, para o idioma.
Com Rosa, Meyer-Clason não foi apenas um tradutor. Chegou a intermediar os contatos do escritor mineiro com a editora alemã Kiepenheuer & Witsch, que, além de Grande Sertão, contratou a publicação de quase toda a obra roseana completa. Foi também crítico literário e assinou os principais artigos na imprensa na Alemanha sobre Guimarães Rosa.
No entanto, a estratégia de Meyer-Clason acabou, na opinião de Zilly, "simplificando demais" a poética do autor de Grande Sertão: Veredas. "É um estilo fácil de entender, que aplaina as dificuldades, que acaba com as polissemias, com os elementos chocantes, com o estranhamento. Isso tem o grande mérito de aproximar o Guimarães Rosa do leitor alemão. Mas Rosa queria exatamente o contrário: que a poética do estranhamento, do choque, da opacidade, do enigma, fosse reconfigurada pelos tradutores", comenta.
Um exemplo é a icônica palavra "nonada", que abre o monólogo de Riobaldo em Grande Sertão. Na sua tradução, Meyer-Clason abre mão da expressão mais famosa do léxico roseano para substituí-la por uma frase, "Hat nichts auf sich", que, no português, significaria algo como "não significa nada".
Zilly, por outro lado, decidiu-se, por enquanto, por criar outro neologismo: "Na-nix-ja", com os termos em alemão para "sim" (ja) com "nada" (nix, coloquial para nichts), precedidos pela sílaba na, que mantém o mesmo ritmo do original em português roseano. A "transcriação", porém, ainda aguarda o palavra final da editora.
No percurso de Guimarães Rosa, a Alemanha é quase uma vereda (ou travessia). Foi o idioma de Thomas Mann que abriu os caminhos literários do então jovem estudante de medicina. O poliglota e autodidata Rosa estreou no mundo editorial em Belo Horizonte, aos 20 anos, com uma tradução do alemão para o português do artigo A organização científica em Minas Gerais (Die Organisation der Wissenschaft in Minas Gerais, de Otto Quelle) para o periódico oficial do governo mineiro, ainda em 1928.
Mais tarde, nos anos 1940 e já diplomata, o escritor serviu como cônsul do Itamaraty em Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, ele e a futura esposa Aracy de Carvalho auxiliaram ao emitir vistos para o Brasil a judeus perseguidos pelo Terceiro Reich.
O episódio em Hamburgo foi tema do documentário Outro Sertão (2013), de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela – que foi colaboradora da DW –, que recuperaram uma rara entrevista do autor mineiro numa TV da Alemanha, em 1962.
Nela, Guimarães Rosa responde em português às perguntas do apresentador alemão sem esperar o intérprete, exibindo o domínio, pelo menos na escuta, do idioma. E afirma, entre outras coisas, que Riobaldo seria "uma espécie de uma Fausto sertanejo". É uma citação ao personagem da obra homônima de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) que, assim como o protagonista de Grande Sertão, flerta com o diabo.
O pacto (ou não) com o coisa-ruim é tema de outra importante obra da literatura alemã: Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann, cuja relação com Grande Sertão foi tema de doutorado de Marcel Vejmelka, professor de tradução literária na Universidade de Mainz.
O pesquisador concorda com Zilly, de quem foi aluno em Berlim, sobre a simplificação excessiva da tradução de Meyer-Clason do Grande Sertão e também do pioneirismo do alemão na divulgação da obra de Rosa na Alemanha. "Ele não tem essa textura densa da escrita roseana, em que forma e conteúdo entram num jogo fascinante em que é impossível parar o trabalho de significado: uma única frase da obra do Guimarães já fez surgir várias teses de doutorado", diz.
Segundo ele, os elogios do mineiro à versão podem ser explicados pela paixão de Rosa com o idioma. Mas não só isso. "O domínio do alemão do Guimarães Rosa não é confirmado. Não se pode falar que ele era fluente, que entendia todas as nuances da língua. Inclusive há estudos sobre o tempo dele em Hamburgo que mencionam que a Aracy falava muito melhor que o marido", diz o professor.
"Mas acho que ele admirava tanto a língua, que aprendeu autodidata, que não tinha como ver um texto dele em alemão de forma objetiva – para ele, parecia tão denso e fantástico que ele nem enxergava essa simplificação", complementa.
No levantamento do professor de Mainz, o Grande Sertão: Veredas de Meyer-Clason teve oito edições no país – incluindo uma na Alemanha do Leste –, numa tiragem total de cerca de 30 mil livros. "Falando em penetração de mercado, é pouco. Também não houve recepção ou influência do Rosa em escritores alemães, o que é uma pena. A maior parte foram do meio acadêmico e especializado, em que o próprio Meyer-Clason vai escrever artigos e dar entrevistas", explica Vejmelka.
Ele lembra que houve uma esperança de que Rosa fosse incluído no boom da literatura latino-americana dos anos 1970, já que a Alemanha recebia com entusiasmo autores do realismo mágico como García Márquez e Jorge Luis Borges – o que não se confirmou.
No entanto, o contexto atual pode favorecer o ressurgimento de Guimarães Rosa na Alemanha, diz ele. "Esse jogo do bem e do mal, de Deus e diabo, no cenário do sertão mineiro, se revela universal. É fora do tempo e do lugar, porque funciona em qualquer momento", afirma Vejmelka.
"Não sei se vai acontecer, porque depende muito da dinâmica do mercado, mas a mera presença de uma nova tradução, em uma editora renomada e forte com a Fischer, dá uma certa esperança", completa ele.
E remete ao Krieg Im Sertão de Euclides da Cunha também traduzido por Berthold Zilly. "Os Sertões teve uma recepção muito maior do que se imaginava, porque era um documento histórico sobre uma visão eurocentrista de um Brasil do século 19 que ninguém sabia que existia aqui. Dialogou com pessoas do mundo intelectual que não tinham a ver com o Brasil nem com a América Latina. Mas tinha a questão universal, e isso é algo que uma nova tradução de Grande Sertão pode conseguir", conclui o professor da Universidade de Mainz.
O lançamento está a cargo da editora Fischer Verlag, de Frankfurt, que confirmou a previsão para a chegada da aguardada segunda versão em alemão. Após quase 15 anos de intenso trabalho, o tradutor Berthold Zilly concluiu, em meados de 2025, a empreitada de verter a história do jagunço Riobaldo e a inventiva linguagem de Rosa para a língua germânica.
O texto agora está em processo de revisão pelo coordenador do projeto, Sebastian Guggolz. Além dos últimos ajustes, deverão ser entregues, até o fim deste ano, complementos como glossário, notas e posfácio. "A gente está na reta final, e eu vou sentir um grande alívio. Já estou sentindo agora, porque o grosso já está feito", diz Zilly, que recebeu a reportagem da DW na biblioteca de seu apartamento em Berlim, em agosto deste ano.
O romance do autor mineiro não foi o primeiro confronto de Zilly com o sertão literário. Em 1994, o hoje professor aposentado da Universidade Livre de Berlim e da Universidade de Bremen terminou outra difícil tarefa: traduzir Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, até então inédito na Alemanha. A versão, intitulada Krieg im Sertão (Guerra no Sertão, em tradução livre), recebeu elogios da crítica local e figurou em terceiro na lista dos melhores livros publicados no país naquele ano.
O currículo tradutório de Zilly também inclui os clássicos Lima Barreto e Machado de Assis, além de outro autor brasileiro conhecido por romper com os padrões da linguagem: Raduan Nassar. Apesar da experiência, o desafio de Grande Sertão: Veredas, iniciado ainda em 2011, foi de longe o mais difícil, diz o linguista.
Além da complexa e emaranhada prosa roseana, transfigurada no longo monólogo do narrador Riobaldo, Zilly também teve que se desvencilhar de uma sombra: a de Curt Meyer-Clason (1910-2012), o responsável pela primeira versão do romance na Alemanha. Era essa, na visão do próprio escritor mineiro, a "tradução-mãe" da obra, capaz de orientar outras traduções e de se colocar como ideal para o livro.
Ela saiu ainda em 1964, pela editora Kiepenheuer & Witsch, de Colônia, com o Grande Sertão de Rosa no título original, mas sem o complemento (e os icônicos dois pontos) Veredas. Já para a Fischer, a sugestão de Zilly é que a nova tradução se chame Großer Sertão: Querungen (Grande Sertão: Travessias, em tradução livre).
Sem ter tido a mesma sorte de Meyer-Clason, que se correspondeu com Rosa, Zilly teve que lançar mão de outras estratégias para desvendar a linguagem daquele que foi considerado em 1999, pela Folha de S.Paulo, como o maior romance brasileiro.
Empreendeu viagens pelo sertão mineiro para visitar os cenários do livro e entender melhor o "mineirês", e também fez contatos com Alison Entrekin, tradutora de Grande Sertão para o inglês e que também deve ser publicado no ano que vem pela editora Simon & Schuster. Quando as dúvidas sobre como transferir a estrutura linguística para o alemão apertavam, recorreu principalmente à versão de August Willemsen para o holandês (Diepe Wildernis: de wegen, de 1993), também influenciada por Meyer-Clason, mas que, segundo Zilly, "às vezes recorre nos mesmos erros".
"Meyer-Clason foi um grande mediador das literaturas ibéricas na Alemanha. Conheci ele pessoalmente e sempre me dei bem com ele. Ele produziu um texto num alemão belíssimo, cativante. Popularizou até certo ponto o Sertão e a obra de Guimarães Rosa nos países de língua alemã. Talvez seja a influência dele a integração da palavra sertão nos dicionários alemães", elogia Zilly.
O primeiro tradutor de Rosa para o alemão viveu no Brasil nos anos 1940, mas foi preso em Ilha Grande, acusado de espionagem para o regime nazista. Foi no cárcere que se apaixonou pela literatura brasileira e ibero-americana. De volta à Alemanha, virou uma "máquina de tradução": verteu García Márquez, Clarice Lispector, Jorge Amado, entre outros, para o idioma.
Com Rosa, Meyer-Clason não foi apenas um tradutor. Chegou a intermediar os contatos do escritor mineiro com a editora alemã Kiepenheuer & Witsch, que, além de Grande Sertão, contratou a publicação de quase toda a obra roseana completa. Foi também crítico literário e assinou os principais artigos na imprensa na Alemanha sobre Guimarães Rosa.
No entanto, a estratégia de Meyer-Clason acabou, na opinião de Zilly, "simplificando demais" a poética do autor de Grande Sertão: Veredas. "É um estilo fácil de entender, que aplaina as dificuldades, que acaba com as polissemias, com os elementos chocantes, com o estranhamento. Isso tem o grande mérito de aproximar o Guimarães Rosa do leitor alemão. Mas Rosa queria exatamente o contrário: que a poética do estranhamento, do choque, da opacidade, do enigma, fosse reconfigurada pelos tradutores", comenta.
Um exemplo é a icônica palavra "nonada", que abre o monólogo de Riobaldo em Grande Sertão. Na sua tradução, Meyer-Clason abre mão da expressão mais famosa do léxico roseano para substituí-la por uma frase, "Hat nichts auf sich", que, no português, significaria algo como "não significa nada".
Zilly, por outro lado, decidiu-se, por enquanto, por criar outro neologismo: "Na-nix-ja", com os termos em alemão para "sim" (ja) com "nada" (nix, coloquial para nichts), precedidos pela sílaba na, que mantém o mesmo ritmo do original em português roseano. A "transcriação", porém, ainda aguarda o palavra final da editora.
No percurso de Guimarães Rosa, a Alemanha é quase uma vereda (ou travessia). Foi o idioma de Thomas Mann que abriu os caminhos literários do então jovem estudante de medicina. O poliglota e autodidata Rosa estreou no mundo editorial em Belo Horizonte, aos 20 anos, com uma tradução do alemão para o português do artigo A organização científica em Minas Gerais (Die Organisation der Wissenschaft in Minas Gerais, de Otto Quelle) para o periódico oficial do governo mineiro, ainda em 1928.
Mais tarde, nos anos 1940 e já diplomata, o escritor serviu como cônsul do Itamaraty em Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, ele e a futura esposa Aracy de Carvalho auxiliaram ao emitir vistos para o Brasil a judeus perseguidos pelo Terceiro Reich.
O episódio em Hamburgo foi tema do documentário Outro Sertão (2013), de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela – que foi colaboradora da DW –, que recuperaram uma rara entrevista do autor mineiro numa TV da Alemanha, em 1962.
Nela, Guimarães Rosa responde em português às perguntas do apresentador alemão sem esperar o intérprete, exibindo o domínio, pelo menos na escuta, do idioma. E afirma, entre outras coisas, que Riobaldo seria "uma espécie de uma Fausto sertanejo". É uma citação ao personagem da obra homônima de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) que, assim como o protagonista de Grande Sertão, flerta com o diabo.
O pacto (ou não) com o coisa-ruim é tema de outra importante obra da literatura alemã: Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann, cuja relação com Grande Sertão foi tema de doutorado de Marcel Vejmelka, professor de tradução literária na Universidade de Mainz.
O pesquisador concorda com Zilly, de quem foi aluno em Berlim, sobre a simplificação excessiva da tradução de Meyer-Clason do Grande Sertão e também do pioneirismo do alemão na divulgação da obra de Rosa na Alemanha. "Ele não tem essa textura densa da escrita roseana, em que forma e conteúdo entram num jogo fascinante em que é impossível parar o trabalho de significado: uma única frase da obra do Guimarães já fez surgir várias teses de doutorado", diz.
Segundo ele, os elogios do mineiro à versão podem ser explicados pela paixão de Rosa com o idioma. Mas não só isso. "O domínio do alemão do Guimarães Rosa não é confirmado. Não se pode falar que ele era fluente, que entendia todas as nuances da língua. Inclusive há estudos sobre o tempo dele em Hamburgo que mencionam que a Aracy falava muito melhor que o marido", diz o professor.
"Mas acho que ele admirava tanto a língua, que aprendeu autodidata, que não tinha como ver um texto dele em alemão de forma objetiva – para ele, parecia tão denso e fantástico que ele nem enxergava essa simplificação", complementa.
No levantamento do professor de Mainz, o Grande Sertão: Veredas de Meyer-Clason teve oito edições no país – incluindo uma na Alemanha do Leste –, numa tiragem total de cerca de 30 mil livros. "Falando em penetração de mercado, é pouco. Também não houve recepção ou influência do Rosa em escritores alemães, o que é uma pena. A maior parte foram do meio acadêmico e especializado, em que o próprio Meyer-Clason vai escrever artigos e dar entrevistas", explica Vejmelka.
Ele lembra que houve uma esperança de que Rosa fosse incluído no boom da literatura latino-americana dos anos 1970, já que a Alemanha recebia com entusiasmo autores do realismo mágico como García Márquez e Jorge Luis Borges – o que não se confirmou.
No entanto, o contexto atual pode favorecer o ressurgimento de Guimarães Rosa na Alemanha, diz ele. "Esse jogo do bem e do mal, de Deus e diabo, no cenário do sertão mineiro, se revela universal. É fora do tempo e do lugar, porque funciona em qualquer momento", afirma Vejmelka.
"Não sei se vai acontecer, porque depende muito da dinâmica do mercado, mas a mera presença de uma nova tradução, em uma editora renomada e forte com a Fischer, dá uma certa esperança", completa ele.
E remete ao Krieg Im Sertão de Euclides da Cunha também traduzido por Berthold Zilly. "Os Sertões teve uma recepção muito maior do que se imaginava, porque era um documento histórico sobre uma visão eurocentrista de um Brasil do século 19 que ninguém sabia que existia aqui. Dialogou com pessoas do mundo intelectual que não tinham a ver com o Brasil nem com a América Latina. Mas tinha a questão universal, e isso é algo que uma nova tradução de Grande Sertão pode conseguir", conclui o professor da Universidade de Mainz.
domingo, setembro 28
Antes de virar gigante
No tempo d'eu menina
os corredores eram longos
as mesas altas
as camas enormes.
A colher não cabia
na minha boca
e a tigela de sopa
era sempre mais funda
do que a fome.
No tempo d'eu menina
só gigantes moravam
lá em casa.
Menos meu irmão e eu
que éramos gente grande
vinda de Lilliput.
os corredores eram longos
as mesas altas
as camas enormes.
A colher não cabia
na minha boca
e a tigela de sopa
era sempre mais funda
do que a fome.
No tempo d'eu menina
só gigantes moravam
lá em casa.
Menos meu irmão e eu
que éramos gente grande
vinda de Lilliput.
Marina Colasanti
O rádio apaixonado
MINHA QUERIDA DONA, sei que você anda se queixando de mim, publicamente, até. Você não pode imaginar o sofrimento que isto me causa, mesmo porque você provavelmente acha que rádios são objetos inanimados, sem vida própria.
Você está enganada. Ao menos no meu caso, você está enganada. Ao contrário do que você pensa, tenho sentimentos, tenho emoções. É em nome desses sentimentos e dessas emoções que lhe falo agora, tanto em AM como em FM. Na verdade, eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até que fui instalado em seu carro.
Você estava muito feliz; tinham lhe dito que minha marca é ótima, e que você contaria com um som maravilhoso para lhe ajudar no estresse que é esse trânsito. E, eu colocado no meu lugar, você me acariciou, você tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já deveria estar acostumado com eletricidade. Você fez de mim um ser vivo.
Vivo e apaixonado. Daquele momento em diante, passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria transmitir as melodias que recebia por meio de tantas canções. Você ao volante, minha felicidade era completa. Acontece que você não se deu conta disso, ou fingiu que não se dava conta disso. Você me ligava, você sintonizava uma emissora qualquer e pronto, voltava à sua vidinha. Pior: tratava-se de uma vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você conversando com um homem, aquilo me dava ciúmes, ciúmes terríveis.
O Bentinho, do Machado de Assis, aquele que desconfiava da Capitu, não sofreu tanto.
Lá pelas tantas eu tinha ciúmes até do seu MP4.
Agora: o que poderia eu fazer? Humanos têm como demonstrar seus ciúmes, têm como descarregar a frustração. Mas eu sou um rádio, um bom rádio, mas rádio, de qualquer maneira. A mim não estava facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo que estava a meu alcance: o som.
Quando você estava com alguém de quem eu não gostava, eu aumentava meu volume – e volume, você sabe, é coisa que não me falta – até chegar a níveis insuportáveis, uma avalanche de decibéis. E aí, subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala, especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de queimar: era ele ou eu.
Você foi se queixar com um técnico, achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está certa: estou desconfigurado, estou desfigurado, estou perturbado – mas tudo isso por causa do sofrimento que você me causou.
Querida dona, estas são minhas derradeiras palavras, antes de sair definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha última mensagem é esta: nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.
Moacyr Scliar. "Histórias que os jornais não contam"
Você está enganada. Ao menos no meu caso, você está enganada. Ao contrário do que você pensa, tenho sentimentos, tenho emoções. É em nome desses sentimentos e dessas emoções que lhe falo agora, tanto em AM como em FM. Na verdade, eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até que fui instalado em seu carro.
Você estava muito feliz; tinham lhe dito que minha marca é ótima, e que você contaria com um som maravilhoso para lhe ajudar no estresse que é esse trânsito. E, eu colocado no meu lugar, você me acariciou, você tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já deveria estar acostumado com eletricidade. Você fez de mim um ser vivo.
Vivo e apaixonado. Daquele momento em diante, passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria transmitir as melodias que recebia por meio de tantas canções. Você ao volante, minha felicidade era completa. Acontece que você não se deu conta disso, ou fingiu que não se dava conta disso. Você me ligava, você sintonizava uma emissora qualquer e pronto, voltava à sua vidinha. Pior: tratava-se de uma vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você conversando com um homem, aquilo me dava ciúmes, ciúmes terríveis.
O Bentinho, do Machado de Assis, aquele que desconfiava da Capitu, não sofreu tanto.
Lá pelas tantas eu tinha ciúmes até do seu MP4.
Agora: o que poderia eu fazer? Humanos têm como demonstrar seus ciúmes, têm como descarregar a frustração. Mas eu sou um rádio, um bom rádio, mas rádio, de qualquer maneira. A mim não estava facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo que estava a meu alcance: o som.
Quando você estava com alguém de quem eu não gostava, eu aumentava meu volume – e volume, você sabe, é coisa que não me falta – até chegar a níveis insuportáveis, uma avalanche de decibéis. E aí, subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala, especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de queimar: era ele ou eu.
Você foi se queixar com um técnico, achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está certa: estou desconfigurado, estou desfigurado, estou perturbado – mas tudo isso por causa do sofrimento que você me causou.
Querida dona, estas são minhas derradeiras palavras, antes de sair definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha última mensagem é esta: nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.
Moacyr Scliar. "Histórias que os jornais não contam"
A roça
Sem casa onde morar, um cunhado lhe emprestou uma fazenda abandonada. Pau-a-pique e adobe, caiação branca já suja pelo tempo, janelas de madeira azuis que o abandono desbotara, rudes largas tábuas no assoalho com buracos apodrecidos, teto de telha vã, os picumãs pendentes sobre o fogão, sem banheiro, as necessidades se faziam na “casinha” durante o dia e nos urinóis durante a noite, a bica d’água cristalina, os banhos de bacia, os “lava-pés” ao fim do dia, o cheiro de querosene das lamparinas à noite, os ratos correndo pelos caibros do telhado, o fogão de lenha, o cheiro de fumaça, o canto dos galos, a gritaria dos porcos na matança, os ninhos das galinhas, os entardeceres tristes, as galinhas esticando o pescoço e piando, avaliando o tamanho do voo até o poleiro mais alto, o pio das aves noturnas, os barulhos estranhos na mata escura, ninguém se atrevia a sair, era noite, podia ser onça, a família espantava o medo passando trancas nas portas e janelas, e ficava junta ao redor do fogão de lenha aceso.
Para sobreviver era preciso lutar com a natureza. A natureza é bonita quando a gente a contempla de longe. De longe é um cenário bom de se fotografar. Ou quando ela foi domesticada e transformada em parque ou jardim. Mas a natureza em si, do jeito como nasceu, bruta, a gente dentro dela, é fera que mata sem piedade. Um amigo que morou menino na roça me disse: “Hoje todo mundo fala mal dos pioneiros que cortaram as florestas a machado. Acusam-nos de assassinos da natureza. Mas não havia outro jeito. A mata estava ali, cobra verde de boca aberta, à espreita, sorrateira, se arrastando, se aproximando, pronta a dar o bote. A mata era inimiga. Era preciso matá-la como se mata cobra. Ou nós ou ela... Para se construir uma casa e viver em paz era preciso acabar com a mata. Bom não era o verde. Bom era o ‘terreiro’ bem limpo, apisoado, varridinho, sem nem um capim crescendo nele, garantia de que as aranhas, os escorpiões e as cobras ficariam longe”.
Era no terreiro que as crianças brincavam sem perigo. Quando o Jeca Tatuzinho se curou dos vermes e do amarelão e ganhou saúde, pegou no machado e pôs-se a cortar árvores. Assim escreveu Monteiro Lobato, o desenho do Jeca Tatuzinho cortando árvore, o que indica que até mesmo ele aprovava o que o Jeca fazia.
Lembro-me do meu pai trabalhando com a foice, corpo coberto de suor. Era preciso roçar os pastos para o gado ter o que comer. Batia a exaustão. Exaustão maior para quem não estava acostumado. Depois ele me contou que, quando a sede apertava, ele, de propósito, não bebia água. Esperava que a sede crescesse até ficar insuportável. Aí então ele ia até a mina. A mina estava escondida numa loca coberta de vegetação. Dentro era a sombra. A água borbulhava de mansinho, cristalina. A cuia cortada ao meio estava pendurada num gancho, à sombra. Ele pegava a cuia, enchia-a de água, olhava para a água agradecido, e bebia. Aí ele sentia que valia a pena viver. Não é preciso acreditar em Deus para sentir gratidão. Basta uma cuia d’água...
Tudo o que eu disse sobre a “roça” como lugar que a esperança abandonou só valia para os grandes. Eu era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E eu não tinha com que comparar. Bachelard observou que “a infância conhece a infelicidade através dos homens” (A poética do devaneio). Ainda não havia aprendido com os adultos a arte maldita da comparação.
“Roça” é um lugar que a esperança abandonou. Havia os que “iam” à roça. Eram os fazendeiros proprietários que moravam na cidade e lá apareciam para ver o seu gado. Para esses havia esperança. Havia também os raros amigos que visitavam aos domingos. Para eles “roça” era piquenique. Mas havia os que “pertenciam” à roça, que estavam plantados nela, companheiros do gado, das matas, dos pastos. Para esses não havia esperança. Quem era da roça morria nela. “Roça” era limbo de onde não se podia sair. Meu pai não era da roça. A roça foi o seu degredo.
Para sobreviver era preciso lutar com a natureza. A natureza é bonita quando a gente a contempla de longe. De longe é um cenário bom de se fotografar. Ou quando ela foi domesticada e transformada em parque ou jardim. Mas a natureza em si, do jeito como nasceu, bruta, a gente dentro dela, é fera que mata sem piedade. Um amigo que morou menino na roça me disse: “Hoje todo mundo fala mal dos pioneiros que cortaram as florestas a machado. Acusam-nos de assassinos da natureza. Mas não havia outro jeito. A mata estava ali, cobra verde de boca aberta, à espreita, sorrateira, se arrastando, se aproximando, pronta a dar o bote. A mata era inimiga. Era preciso matá-la como se mata cobra. Ou nós ou ela... Para se construir uma casa e viver em paz era preciso acabar com a mata. Bom não era o verde. Bom era o ‘terreiro’ bem limpo, apisoado, varridinho, sem nem um capim crescendo nele, garantia de que as aranhas, os escorpiões e as cobras ficariam longe”.
Era no terreiro que as crianças brincavam sem perigo. Quando o Jeca Tatuzinho se curou dos vermes e do amarelão e ganhou saúde, pegou no machado e pôs-se a cortar árvores. Assim escreveu Monteiro Lobato, o desenho do Jeca Tatuzinho cortando árvore, o que indica que até mesmo ele aprovava o que o Jeca fazia.
Lembro-me do meu pai trabalhando com a foice, corpo coberto de suor. Era preciso roçar os pastos para o gado ter o que comer. Batia a exaustão. Exaustão maior para quem não estava acostumado. Depois ele me contou que, quando a sede apertava, ele, de propósito, não bebia água. Esperava que a sede crescesse até ficar insuportável. Aí então ele ia até a mina. A mina estava escondida numa loca coberta de vegetação. Dentro era a sombra. A água borbulhava de mansinho, cristalina. A cuia cortada ao meio estava pendurada num gancho, à sombra. Ele pegava a cuia, enchia-a de água, olhava para a água agradecido, e bebia. Aí ele sentia que valia a pena viver. Não é preciso acreditar em Deus para sentir gratidão. Basta uma cuia d’água...
Tudo o que eu disse sobre a “roça” como lugar que a esperança abandonou só valia para os grandes. Eu era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E eu não tinha com que comparar. Bachelard observou que “a infância conhece a infelicidade através dos homens” (A poética do devaneio). Ainda não havia aprendido com os adultos a arte maldita da comparação.
Esperança é coisa de gente grande, que vive no tempo, o passado, o presente, o futuro. Esperança é uma fantasia do futuro que alegra o presente. Criança não tem esperança. Não precisa. Se alegra no presente. Criança está fora do tempo. Mora na eternidade. Na eternidade não há tempo, não há passado, não há futuro, só o presente. Criança vive o momento. Eu só vivia o presente. Não tinha ansiedades. Meu irmão Ismael me contou que um dia a mãe lhe disse: “O que nos resta para viver são 800 mil-réis de um carro de bois que o seu pai vendeu...” . Minha mãe e meu irmão estavam ansiosos pelo futuro. Eu não. Sem o saber vivia a sabedoria evangélica que dizia que é inútil se preocupar com o amanhã. Jesus sabia que a cura para nossas doideiras é ficar criança de novo.
Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"
Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"
Sabedoria roseana
O que a gente tem que aprender é, a cada instante, afinar-se como uma linhazinha, para saber passar no furo de agulha, que cada momento exige.
João Guimarães Rosa, "24 cartas de João Guimarães Rosa a Antônio Azeredo da Silveira"
Os olhos dos pobres
Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.
Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.
De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.
Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.
Os olhos do pai diziam: “Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes.” Os olhos do menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós.” Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”
Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!
Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.
De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.
Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.
Os olhos do pai diziam: “Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes.” Os olhos do menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós.” Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”
Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!
Charles Baudelaire
sexta-feira, setembro 26
Queima do manuscrito
Disseram-me isto: que o meu avô abriu uma cova no jardim das traseiras e de seguida a regou com gasolina; depois, atirou-lhe o manuscrito e, com um sorriso, acrescentou ao cozinhado a chama pequena de um fósforo. Com empenho e combustível, até uma pequena chama faz grandes coisas.
Antes, durante anos, escondeu um caderno escrito à mão que teve o efeito de o calar, como se só houvesse histórias naquelas páginas. Assemelhava-se a certos reformados cujo derradeiro interesse, por norma uma genealogia vaga ou uma filatelia desinteressante, os faz sumir da actualidade.
Agora falava pouco do passado, ao contrário do que acontecia na minha adolescência, que ilustrara com as coisas da guerra: havia casacos de ouro, crânios em praias portuguesas, gorilas de dorso de prata atravessando as estradas de Cabinda, um cabo de metal tenso entre duas árvores para decapitar quem por elas passasse, corpos esquecidos em pás de retroescavadoras; e até um tiro de G3 que subiu direitinho pelo olho do cu de um macaco.
Encantava-me de tal maneira ouvi-lo, prendia-me cego numa mentira de amor, como se quem conta e quem ouve dessem as mãos, que eu achava que o avô e o contador de histórias eram a mesma pessoa. A África do avô tinha sempre uma fuga, o contraponto da violência. Uma criança nunca morria sem que o sangue desenhasse uma rosa, nunca uma cidade saqueada surgia sem que alguém tentasse repor um frasco de compota às prateleiras das mercearias. Tudo era violento e delicado na guerra, como tudo parecia violento e delicado no avô.
Afonso Reis Cabral, "O Último Avô"
Antes, durante anos, escondeu um caderno escrito à mão que teve o efeito de o calar, como se só houvesse histórias naquelas páginas. Assemelhava-se a certos reformados cujo derradeiro interesse, por norma uma genealogia vaga ou uma filatelia desinteressante, os faz sumir da actualidade.
Agora falava pouco do passado, ao contrário do que acontecia na minha adolescência, que ilustrara com as coisas da guerra: havia casacos de ouro, crânios em praias portuguesas, gorilas de dorso de prata atravessando as estradas de Cabinda, um cabo de metal tenso entre duas árvores para decapitar quem por elas passasse, corpos esquecidos em pás de retroescavadoras; e até um tiro de G3 que subiu direitinho pelo olho do cu de um macaco.
Encantava-me de tal maneira ouvi-lo, prendia-me cego numa mentira de amor, como se quem conta e quem ouve dessem as mãos, que eu achava que o avô e o contador de histórias eram a mesma pessoa. A África do avô tinha sempre uma fuga, o contraponto da violência. Uma criança nunca morria sem que o sangue desenhasse uma rosa, nunca uma cidade saqueada surgia sem que alguém tentasse repor um frasco de compota às prateleiras das mercearias. Tudo era violento e delicado na guerra, como tudo parecia violento e delicado no avô.
Afonso Reis Cabral, "O Último Avô"
A casa da esquina do beco do Marisco
Em velho prédio, também com a fama de mal-assombrado, da rua Augusta, na esquina do beco do Marisco, à noite, depois que todos dormiam, ouvia-se uma barulheira dos diabos: queda de móveis, correntes arrastadas pelo soalho, portas se abrindo. Pior do que o sobrado chamado da Estrela. Era como se nele se cumprisse o fadário de casa de esquina: “casa de esquina, triste sina!”
O bairro de São José é o refúgio daquelas assombrações do tempo dos reis velhos que outrora tornaram famoso o Recife propriamente dito: a quase ilha do Recife. O Recife dos frades do Oratório, dos flamengos de Nassau, dos sefardins chamados Jacó e Abraão, Fonseca, Silva, Mendes, Pereira, Leão: judeus fidalgos e desdenhosos da ralé tanto gentia como israelita.
Nos sobrados mais antigos dessa parte, também mais antiga, da cidade, a verdade é que se achou nos primeiros anos deste século, com as demolições de casas, de arcos e até da igreja de Corpo Santo — que era monumento e não apenas igreja velha — muita moeda enterrada. Muito ouro do tempo colonial. Lembro-me de ter visto, menino, moedas de ouro do tempo d’el-rei-dom José de Portugal, encontradas numa das casas demolidas do bairro do Recife. Justamente numa demolição de que fora encarregado, como engenheiro, o historiador Alfredo de Carvalho, de quem manda a justiça que se diga que foi na época quase a única voz de pernambucano a protestar com vigor contra a destruição dos arcos e da igreja do Corpo Santo. Quis, porém, o destino que o engenheiro praticasse aquilo que mais repugnava ao historiador: a destruição de casas do Recife velho.
O bairro de São José é o refúgio daquelas assombrações do tempo dos reis velhos que outrora tornaram famoso o Recife propriamente dito: a quase ilha do Recife. O Recife dos frades do Oratório, dos flamengos de Nassau, dos sefardins chamados Jacó e Abraão, Fonseca, Silva, Mendes, Pereira, Leão: judeus fidalgos e desdenhosos da ralé tanto gentia como israelita.
Nos sobrados mais antigos dessa parte, também mais antiga, da cidade, a verdade é que se achou nos primeiros anos deste século, com as demolições de casas, de arcos e até da igreja de Corpo Santo — que era monumento e não apenas igreja velha — muita moeda enterrada. Muito ouro do tempo colonial. Lembro-me de ter visto, menino, moedas de ouro do tempo d’el-rei-dom José de Portugal, encontradas numa das casas demolidas do bairro do Recife. Justamente numa demolição de que fora encarregado, como engenheiro, o historiador Alfredo de Carvalho, de quem manda a justiça que se diga que foi na época quase a única voz de pernambucano a protestar com vigor contra a destruição dos arcos e da igreja do Corpo Santo. Quis, porém, o destino que o engenheiro praticasse aquilo que mais repugnava ao historiador: a destruição de casas do Recife velho.
Mas não nos distanciemos do assunto; e voltemos ao sobrado misterioso da rua Augusta. Ficava ele à esquina do beco do Marisco. Era sobrado de dois andares, além do térreo. Na verdade, de três: três pavimentos. Sua construção datava apenas de 1865. Quase uma criança entre os sobrados velhos da cidade.
Tinha de frente cinco janelas; e no oitão, oito. Um sobrado como qualquer outro. Sem brasão, sem busto de Camões, sem estátua da fortuna ou estrela de pedra para o distinguir dos outros.
Passou anos desocupado. O povo dizia que ali vagavam espíritos: o bastante para o papel de “aluga-se” amarelecer nas vidraças. Depois de anos fechado, apareceu pretendente às chaves. Foi o português Belarmino, conhecido por Belarmino Mouco.
Era surdo: não lhe importavam ruídos de almas penadas. Raciocínio de português de anedota ou de caricatura.
Homem quietarrão e pé-de-boi, estabeleceu-se muito lusitanamente no andar térreo; e fez sua residência — sua e dos seus — no segundo andar.
O primeiro andar procurou sublocá-lo. Mas nada de aparecer inquilino.
Na mesma noite do dia em que Belarmino Mouco foi ocupar o segundo andar do prédio sinistro, sua gente começou a ver visagens e a ouvir barulhos na escada. Vultos entrando e saindo dos quartos. Ruídos de acordarem surdos. Um desadouro. Era como se a casa não fosse dos vivos mas dos mortos. Ou dos vivos só por favor: na realidade e pelo direito, dos mortos ou dos seus espíritos.
Esses barulhos e essas assombrações continuaram. Depois que todos dormiam, ouviam-se quedas tremendas de móveis na sala de visitas, correntes arrastadas pelo soalho, portas abrindo-se ou fechando-se com escândalo.
O barulho era de tal maneira que o próprio Belarmino Mouco, com toda sua surdez, levantou-se mais de uma noite para ver o que se quebrara dentro de casa. Mas encontrava tudo em ordem. Os móveis nos seus lugares. As portas fechadas a ferrolho. E corrente só havia no sobrado a do seu relógio: correntona de burguês que apenas começava a ser sólido.
Voltava para o quarto. Mas quando queria adormecer, o barulho recomeçava. O mouco acordava. Seus ouvidos pareciam de tísico: ouviam todos os barulhos grandes como se fossem diabruras de Seiscentos mil demônios soltos, numa só casa. E a família, que não era surda, esta não parava de ouvir ruídos terríveis. Os grandes, os médios, os pequenos. Toda uma orquestra de ruídos esquisitos.
Um dia apareceu morto no segundo andar do sobrado um dos empregados de Belarmino Mouco. Foi encontrado enforcado. Suicídio, apurou a polícia. Mas o motivo?
O suicida era um rapaz de seus vinte e quatro anos de idade, de nome João Teixeira. Não deixou declarações. Um suicídio misterioso. Em torno do caso fez-se grande celeuma. O empregado de Belarmino Mouco passou a ser considerado vítima dos espíritos maus que vagavam no sobrado. Mártir das assombrações. Pois as assombrações também têm seus mártires. Gente que morre ou se suicida de pavor: assombrada.
Alguns dias depois do suicídio do rapaz, Belarmino Mouco desocupou o prédio. Aquilo não era casa em que morasse cristão.
A vizinhança começou então a ver vultos nas janelas do segundo andar. Era anoitecer e juntava povo à frente do prédio. A cada instante gritava um: “Olha um vulto naquela janela!”. “É de homem!”, diziam uns; “É de mulher!”, gritavam outros. E no meio desse alvoroço, mãos misteriosas jogavam areia sobre os olhos dos curiosos. Areia que se dizia vir do alto do sobrado mal- assombrado e ser pior para dar azar do que areia de cemitério. Correrias, gritos, mulheres com histéricos, não davam mais sossego à rua.
A polícia do 1º distrito de São José acabou tendo de intervir no caso. Era subdelegado local o Heliodoro Rebelo. Fora despachante federal e não era homem de lorotas.
Uma noite, estando muito povo diante do prédio e sendo grande a celeuma, a polícia resolveu violar a porta da escada do sobrado encantado. Mas no terceiro lance da escada jogaram tanta areia nos olhos dos soldados que os sacudidos cabras de facão rabo-de-galo desceram do sobrado às carreiras, uns ainda se limpando da areia, outros pálidos como se tivessem visto o próprio demônio.
O povo convenceu-se então de que não havia dúvida: o sobrado estava ocupado por espíritos furiosamente maus. Por endemoninhados que faziam correr até soldados de polícia que eram naqueles dias cabras valentes, capazes de lutarem com os capangas de São José. Os célebres capangas que José Mariano tinha em São José.
Não podendo ter o seu prédio fechado eternamente, o proprietário vendeu-o. Foi ele então reconstruído e adaptado a cinema. Um dos primeiros cinemas do Recife. Como cinema, desencantou-se. As visagens do outro mundo não fizeram competição com as da tela em que apareciam então endemoninhados de outra espécie: o Max Linder, o Tontolini, o Prince, Lídia Borelli, Teda Bara, Mary Pickford ainda com ar de menina ou mais do que isso: de boneca de menina.
Depois de cinema por alguns anos, o antigo sobrado mal-assombrado passou a igreja protestante. Igreja presbiteriana com muita luz, muito sermão, muita cantoria de hino falando em Jesus. Com o que desapareceram de vez os espíritos zombeteiros que outrora fizeram correr pelas escadas até soldados valentes.
Gilberto Freyre, "Assombrações do Recife Velho"
O Bispo Negro
Houve tempo em que a velha catedral conimbricence, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que crêem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba.
Então aquelas ameias e torres não haviam sido tocadas das mãos de homens, desde que os seus edificadores as tinham colocado sobre as alturas; e, todavia, já então ninguém sabia se esses edificadores eram da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores árabes.
Mas, quer filha dos valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos sarracenos, ela era formosa, na sua singela grandeza, entre as outras sés das Espanhas. Aí sucedeu o que ora ouvireis contar.
Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o fato; a tradição verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.
Em uma das torres do velho alcácer de Coimbra, assentado entre duas ameias, a horas em que o sol fugia do horizonte, o príncipe conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma.
E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nédia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.
– Vedes vós — disse ele ao Espadeiro — o nosso leal Dom Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o faz sair a tais desoras da crasta da sua sé. Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer. — E desceram.
Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcácer de Coimbra, pendurados de cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lâmpadas e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado.
Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra, abriu-se, e dela saíram o príncipe e Lourenço Viegas, que desciam da torre. Quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e solene do bispo D. Bernardo.
– Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio vos traz aqui esta noite? — disse o príncipe a D. Bernardo.
– Más novas,. senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi.
– E que quer de vós o papa?
– Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe…
– Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.
– E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes cumprir seu mandado.
– E vós que intentais fazer?
– Obedecer ao sucessor de São Pedro.
– Quê? Dom Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical; aquele que o levantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe, porque ele não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavaleiros portugueses?
– Tudo vos devo, senhor — atalhou o bispo — salvo a minha alma, que pertence a Deus, a minha fé, que devo a Cristo, e a minha obediência, que guardarei ao papa.
– Dom Bernardo! Dom Bernardo! — disse o príncipe, sufocado de cólera —, lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou sem paga!
– Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?
– Não! Mil vezes não!
– Guardai-vos!
E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silêncio.
Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Lourenço Viegas passeava com o príncipe na sala de armas do paço mourisco.
– Se eu próprio o vi, montado na sua nédia mula, ir lá muito ao longe, caminho da terra de Santa Maria. Na porta da Sé estava pregado um pergaminho com larga escritura, que, segundo me afirmou um clérigo velho que aí chegara quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito… — Isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o ouvisse.
– Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excomunga, porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo à Sé. Bispo Dom Bernardo, quando te arrependeres da tua ousadia já será tarde.
Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas, porque o sol era nado, e o príncipe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens, atravessava a igreja e dirigia-se à crasta, onde, ao som de campa tangida, tinha mandado ajuntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse.
Solene era o espectáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cônegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bago suave do vento matutino. No topo da crasta estava o príncipe em pé, encostado ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cônegos iam chegando e formavam um semicírculo a pouco distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.
Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.
Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:
– Cônegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal? Ninguém respondeu palavra.
– Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu — prosseguiu o príncipe —: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.
– Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição — disse o mais e velho e autorizado dos cônegos que estavam presentes e que era o adaião.
– Amen — responderam os outros.
Esse que vós dizeis — bradou o infante cheio de cólera —, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
– Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição — repetiu o adaião.
– Amen — responderam os mais.
O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.
– Pois bem! — disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. — Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo…
Os cônegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.
Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cônegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.
– Como hás nome? — perguntou-lhe o príncipe.
– Senhor, hei nome Çoleima.
– És bom clérigo?
– Na companhia não há dois que sejam melhores.
– Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.
O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contração de susto.
– Missa não vos cantarei eu, senhor – respondeu o negro com voz tremula — que para tal auto não tenho as ordens requeridas.
– Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.
O clérigo curvou a fronte.
– Kirie-eleyson… Kirie-eleyson… Kirie-eleysom! — garganteava daí a pouco Dom Çoleima, revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.
Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzelas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em tom monótono suas magoadas endechas, ou folgavam e riam com os arremedilhos satíricos dos truões e farsistas. Os cavaleiros, em pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labirinto de colunas, que dava saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negócio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permitiam. Eram estas personagens Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa, o Bom. Os gestos dos quatro cavaleiros davam mostras de que eles estavam vivamente agitados.
– É o que afirma, senhor, o mensageiro — dizia Gonçalo de Sousa — que me enviou o abade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos supõe herege. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e em Espanha, vinham a lhe beijar a mão reis, príncipes e senhores: a eleição de Dom Çoleima não pode, por certo, ir avante…
– Irá, irá — respondeu o príncipe em voz tão alta que as palavras reboaram pelas abóbadas do vasto aposento. — Que o legado tenha tento em si! Não sei eu se haveria aí cardeal ou apostólico que me estendesse a mão para eu lha beijar, que pelo cotovelo lha não cortasse fora a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!
Isto foi o que se ouviu daquela conversação: os três cavaleiros falaram com o príncipe ainda por muito tempo; mas em voz tão baixa, que ninguém percebeu mais nada.
Dois dias depois, o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nédia mula, como se maleitas o houvessem tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as havia repetido ao legado.
Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de ânimo, encaminhou-se direto ao alcácer real.
O príncipe saiu a recebê-lo acompanhado de senhores e cavaleiros. Com modos corteses, guiou-o à sala do seu conselho, e aí se passou o que ora ouvireis contar.
O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante dele o legado, em um assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o filho do conde Henrique.
– Dom cardeal — começou o príncipe —, que viestes vós fazer a minha terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor papa para estas hostes que faço e com que guerreio, noite e dia, os infiéis da fronteira. Se isto trazeis, aceitar- vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem.
No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do príncipe, que eram de amargo escárnio.
– Não a trazer-vos riquezas — atalhou ele —, mas a ensinar-vos a fé vim eu; que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo Dom Bernardo e pondo em seu lugar um bispo sagrado com vossas manoplas, vitoriado só por vós com palavras blasfemas e malditas…
– Calai-vos, dom cardeal — gritou Afonso Henriques — que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé? Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem; tão certo, como vós outros romãos, cremos na Santa Trindade. Se a outra cousa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje ir-vos podeis a vossa pousada.
E ergueu-se: os olhos chamejavam-lhe de furor. Toda a ousadia do legado desapareceu como fumo; e, sem atinar com resposta, saiu do alcácer.
O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã, o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.
O príncipe foi um dos que despertaram mais cedo. Os sinos harmoniosos da Sé costumavam acordá-lo tocando as ave-marias: mas naquele dia ficaram mudos; e, quando ele se ergueu, havia mais de uma hora que o Sol subia para o alto dos céus da banda do Oriente.
– Misericórdia!, misericórdia! — gritavam devotamente homens e mulheres à porta do alcácer, com alarido infernal. O príncipe ouviu aquele ruído.
– Que vozes são estas que soam? — perguntou ele a um pajem. O pajem respondeu-lhe chorando:
– Senhor, o cardeal excomungou esta noite a cidade e partiu: as igrejas estão fechadas; os sinos já não há quem os toque; os clérigos fecham-se em suas pousadas. A maldição do santo padre de Roma caiu sobre nossas cabeças.
Outras voz soou à porta do alcácer:
– Misericórdia!, misericórdia!
– Que enfreiem e selem o meu cavalo de batalha. Pajem, que enfreiem e selem o meu melhor corredor.
Isto dizia o príncipe encaminhando-se para a sala de armas. Aí envergou à pressa um saio de malha e pegou em um montante que dois portugueses dos de hoje apenas valeriam a levantar do chão. O pajem tinha saído, e dali a pouco o melhor cavalo de batalha que havia em Coimbra tropeava e rinchava à porta do alcácer.
Um clérigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o caminho da Vimieira e, de instante a instante, espicaçava os ilhais da cavalgadura com seus acicates de prata. Em outras duas mulas iam ao lado dele dois mancebos com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam as gramaticais. Eram o cardeal, que se ia a Roma, e dois sobrinhos seus, que o haviam acompanhado.
Entretanto o príncipe partida de Coimbra sozinho. Quando pela manhã Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o caráter violento de Afonso Henriques, os dois cavaleiros seguiram-lhe a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele levantava, correndo ao longo da estrada, e o cintilar do sol, batendo-lhe de chapa na cervilheira, semelhante ao dorso de um crocodilo.
Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante.
– Senhor, senhor; aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente?
– Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim…
A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados.
– Oh! … — disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.
– Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tua! – rezou o cardeal em voz baixa e tremula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.
Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás i crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares.
– Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus — gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.
– Príncipe — disse o velho, chorando —, não me faças mal; que estou à tua mercê! — Os dois mancebos também choravam.
Afonso Henriques deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos.
– Estás à minha mercê? disse ele por fim. — Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja levantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?
– Sim, sim! — respondeu o legado com voz sumida.
– Juras?
– Juro.
– Mancebos, acompanhai-me.
Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sozinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria.
Daí a quatro meses, D. Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o salmo que começa:
In exitu Israel de AEgypto.
Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:
– Se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a cova para ter enterrar, não sòmente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.
NOTA
A lenda precedente é tirada das crônicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixá-las no pó das bibliotecas, onde haviam jazido em paz por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente na crônica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a substância de quatro capítulos, que foram suprimidos na edição deste autor, e que mereceram da parte do acadêmico D. Francisco de S. Luís uma grave refutação. Toda a narrativa das circunstâncias que se deram no fato, aliás verdadeiro, da prisão de D. Teresa, das tentativas oposicionistas do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes; mas também é certo que ela se originou de alguma acto de violência praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o inglês Rogério de Hoveden, narra um fato, acontecido em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fábula. A narrativa do cronista está indicando que o acontecimento fizera certo ruído na Europa, e a própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava já alterado na tradição. O que é certo é que o achar-se esta conservada fora de Portugal desde o século duodécimo por um escritor que Ruy de Pina e Acenheiro não leram (porque foi publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como já a vemos no cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página 640 da edição de Hoveden, por Savile:
“No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a Espanha, depôs muitos prelados (abbates), ou por culpas deles ou por ímpeto próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) não consentiu que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quando não cortar- lhe-ia um pé.
Então aquelas ameias e torres não haviam sido tocadas das mãos de homens, desde que os seus edificadores as tinham colocado sobre as alturas; e, todavia, já então ninguém sabia se esses edificadores eram da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores árabes.
Mas, quer filha dos valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos sarracenos, ela era formosa, na sua singela grandeza, entre as outras sés das Espanhas. Aí sucedeu o que ora ouvireis contar.
Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o fato; a tradição verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.
Em uma das torres do velho alcácer de Coimbra, assentado entre duas ameias, a horas em que o sol fugia do horizonte, o príncipe conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma.
E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nédia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.
– Vedes vós — disse ele ao Espadeiro — o nosso leal Dom Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o faz sair a tais desoras da crasta da sua sé. Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer. — E desceram.
Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcácer de Coimbra, pendurados de cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lâmpadas e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado.
Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra, abriu-se, e dela saíram o príncipe e Lourenço Viegas, que desciam da torre. Quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e solene do bispo D. Bernardo.
– Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio vos traz aqui esta noite? — disse o príncipe a D. Bernardo.
– Más novas,. senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi.
– E que quer de vós o papa?
– Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe…
– Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.
– E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes cumprir seu mandado.
– E vós que intentais fazer?
– Obedecer ao sucessor de São Pedro.
– Quê? Dom Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical; aquele que o levantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe, porque ele não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavaleiros portugueses?
– Tudo vos devo, senhor — atalhou o bispo — salvo a minha alma, que pertence a Deus, a minha fé, que devo a Cristo, e a minha obediência, que guardarei ao papa.
– Dom Bernardo! Dom Bernardo! — disse o príncipe, sufocado de cólera —, lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou sem paga!
– Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?
– Não! Mil vezes não!
– Guardai-vos!
E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silêncio.
Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Lourenço Viegas passeava com o príncipe na sala de armas do paço mourisco.
– Se eu próprio o vi, montado na sua nédia mula, ir lá muito ao longe, caminho da terra de Santa Maria. Na porta da Sé estava pregado um pergaminho com larga escritura, que, segundo me afirmou um clérigo velho que aí chegara quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito… — Isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o ouvisse.
– Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excomunga, porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo à Sé. Bispo Dom Bernardo, quando te arrependeres da tua ousadia já será tarde.
Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas, porque o sol era nado, e o príncipe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens, atravessava a igreja e dirigia-se à crasta, onde, ao som de campa tangida, tinha mandado ajuntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse.
Solene era o espectáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cônegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bago suave do vento matutino. No topo da crasta estava o príncipe em pé, encostado ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cônegos iam chegando e formavam um semicírculo a pouco distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.
Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.
Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:
– Cônegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal? Ninguém respondeu palavra.
– Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu — prosseguiu o príncipe —: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.
– Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição — disse o mais e velho e autorizado dos cônegos que estavam presentes e que era o adaião.
– Amen — responderam os outros.
Esse que vós dizeis — bradou o infante cheio de cólera —, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
– Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição — repetiu o adaião.
– Amen — responderam os mais.
O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.
– Pois bem! — disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. — Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo…
Os cônegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.
Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cônegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.
– Como hás nome? — perguntou-lhe o príncipe.
– Senhor, hei nome Çoleima.
– És bom clérigo?
– Na companhia não há dois que sejam melhores.
– Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.
O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contração de susto.
– Missa não vos cantarei eu, senhor – respondeu o negro com voz tremula — que para tal auto não tenho as ordens requeridas.
– Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.
O clérigo curvou a fronte.
– Kirie-eleyson… Kirie-eleyson… Kirie-eleysom! — garganteava daí a pouco Dom Çoleima, revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.
Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzelas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em tom monótono suas magoadas endechas, ou folgavam e riam com os arremedilhos satíricos dos truões e farsistas. Os cavaleiros, em pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labirinto de colunas, que dava saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negócio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permitiam. Eram estas personagens Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa, o Bom. Os gestos dos quatro cavaleiros davam mostras de que eles estavam vivamente agitados.
– É o que afirma, senhor, o mensageiro — dizia Gonçalo de Sousa — que me enviou o abade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos supõe herege. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e em Espanha, vinham a lhe beijar a mão reis, príncipes e senhores: a eleição de Dom Çoleima não pode, por certo, ir avante…
– Irá, irá — respondeu o príncipe em voz tão alta que as palavras reboaram pelas abóbadas do vasto aposento. — Que o legado tenha tento em si! Não sei eu se haveria aí cardeal ou apostólico que me estendesse a mão para eu lha beijar, que pelo cotovelo lha não cortasse fora a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!
Isto foi o que se ouviu daquela conversação: os três cavaleiros falaram com o príncipe ainda por muito tempo; mas em voz tão baixa, que ninguém percebeu mais nada.
Dois dias depois, o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nédia mula, como se maleitas o houvessem tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as havia repetido ao legado.
Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de ânimo, encaminhou-se direto ao alcácer real.
O príncipe saiu a recebê-lo acompanhado de senhores e cavaleiros. Com modos corteses, guiou-o à sala do seu conselho, e aí se passou o que ora ouvireis contar.
O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante dele o legado, em um assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o filho do conde Henrique.
– Dom cardeal — começou o príncipe —, que viestes vós fazer a minha terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor papa para estas hostes que faço e com que guerreio, noite e dia, os infiéis da fronteira. Se isto trazeis, aceitar- vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem.
No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do príncipe, que eram de amargo escárnio.
– Não a trazer-vos riquezas — atalhou ele —, mas a ensinar-vos a fé vim eu; que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo Dom Bernardo e pondo em seu lugar um bispo sagrado com vossas manoplas, vitoriado só por vós com palavras blasfemas e malditas…
– Calai-vos, dom cardeal — gritou Afonso Henriques — que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé? Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem; tão certo, como vós outros romãos, cremos na Santa Trindade. Se a outra cousa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje ir-vos podeis a vossa pousada.
E ergueu-se: os olhos chamejavam-lhe de furor. Toda a ousadia do legado desapareceu como fumo; e, sem atinar com resposta, saiu do alcácer.
O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã, o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.
O príncipe foi um dos que despertaram mais cedo. Os sinos harmoniosos da Sé costumavam acordá-lo tocando as ave-marias: mas naquele dia ficaram mudos; e, quando ele se ergueu, havia mais de uma hora que o Sol subia para o alto dos céus da banda do Oriente.
– Misericórdia!, misericórdia! — gritavam devotamente homens e mulheres à porta do alcácer, com alarido infernal. O príncipe ouviu aquele ruído.
– Que vozes são estas que soam? — perguntou ele a um pajem. O pajem respondeu-lhe chorando:
– Senhor, o cardeal excomungou esta noite a cidade e partiu: as igrejas estão fechadas; os sinos já não há quem os toque; os clérigos fecham-se em suas pousadas. A maldição do santo padre de Roma caiu sobre nossas cabeças.
Outras voz soou à porta do alcácer:
– Misericórdia!, misericórdia!
– Que enfreiem e selem o meu cavalo de batalha. Pajem, que enfreiem e selem o meu melhor corredor.
Isto dizia o príncipe encaminhando-se para a sala de armas. Aí envergou à pressa um saio de malha e pegou em um montante que dois portugueses dos de hoje apenas valeriam a levantar do chão. O pajem tinha saído, e dali a pouco o melhor cavalo de batalha que havia em Coimbra tropeava e rinchava à porta do alcácer.
Um clérigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o caminho da Vimieira e, de instante a instante, espicaçava os ilhais da cavalgadura com seus acicates de prata. Em outras duas mulas iam ao lado dele dois mancebos com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam as gramaticais. Eram o cardeal, que se ia a Roma, e dois sobrinhos seus, que o haviam acompanhado.
Entretanto o príncipe partida de Coimbra sozinho. Quando pela manhã Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o caráter violento de Afonso Henriques, os dois cavaleiros seguiram-lhe a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele levantava, correndo ao longo da estrada, e o cintilar do sol, batendo-lhe de chapa na cervilheira, semelhante ao dorso de um crocodilo.
Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante.
– Senhor, senhor; aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente?
– Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim…
A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados.
– Oh! … — disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.
– Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tua! – rezou o cardeal em voz baixa e tremula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.
Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás i crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares.
– Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus — gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.
– Príncipe — disse o velho, chorando —, não me faças mal; que estou à tua mercê! — Os dois mancebos também choravam.
Afonso Henriques deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos.
– Estás à minha mercê? disse ele por fim. — Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja levantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?
– Sim, sim! — respondeu o legado com voz sumida.
– Juras?
– Juro.
– Mancebos, acompanhai-me.
Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sozinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria.
Daí a quatro meses, D. Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o salmo que começa:
In exitu Israel de AEgypto.
Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:
– Se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a cova para ter enterrar, não sòmente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.
NOTA
A lenda precedente é tirada das crônicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixá-las no pó das bibliotecas, onde haviam jazido em paz por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente na crônica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a substância de quatro capítulos, que foram suprimidos na edição deste autor, e que mereceram da parte do acadêmico D. Francisco de S. Luís uma grave refutação. Toda a narrativa das circunstâncias que se deram no fato, aliás verdadeiro, da prisão de D. Teresa, das tentativas oposicionistas do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes; mas também é certo que ela se originou de alguma acto de violência praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o inglês Rogério de Hoveden, narra um fato, acontecido em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fábula. A narrativa do cronista está indicando que o acontecimento fizera certo ruído na Europa, e a própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava já alterado na tradição. O que é certo é que o achar-se esta conservada fora de Portugal desde o século duodécimo por um escritor que Ruy de Pina e Acenheiro não leram (porque foi publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como já a vemos no cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página 640 da edição de Hoveden, por Savile:
“No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a Espanha, depôs muitos prelados (abbates), ou por culpas deles ou por ímpeto próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) não consentiu que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quando não cortar- lhe-ia um pé.
Alexandre Herculano
Assinar:
Comentários (Atom)

















