quinta-feira, janeiro 29

Gratidão aos livros


"Ali estão eles esperando silenciosos. Comprimem-se, chamam e nada exigem. Estão calados, encostados na parede. Parecem dormir, no entanto os seus nomes parecem olhares que nos fixam. O olhar e as mãos passam por eles, mas não chamam suplicando, não se adiantam. Nada exigem. Esperando até serem abertos: só então eles se oferecem. Primeiro, silêncio em volta de nós, silêncio dentro de nós; estamos, então, preparados para eles: uma noite ao voltarmos cansados de um passeio, uma tarde quando fatigados dos homens, uma manhã, despertando atordoados por um pesadelo. Podemos ter um diálogo e querer contudo estar sós. Aproximamo-nos da estante com o agradável pressentimento de uma doce sensação: cem olhos, cem nomes olham-nos paciente e mudamente à procura do olhar indagador, como escravas de um harém, para o senhor, aguardando humildes o chamado, e felizes ainda, se escolhidos, de serem úteis. Depois, o dedo como que tateia sobre o teclado para encontrar o som da melodia que vibra intimamente: curva-se na mão o ser alvo e surdo, como violino guardado, no qual dormem as vozes de Deus. Abrimos um deles, lemos uma linha, um verso: no momento, porém, não soa claro. Desiludidos, quase brutais, repomos o livro na estante. Nova busca até que encontramos o preciso, o propício para o momento; de repente somos abraçados, sentimos uma respiração estranha como se ao lado, prostrado pelo calor, estivesse o corpo de uma mulher. E, como o levamos para debaixo de uma lâmpada, o livro, o feliz escolhido, brilha por igual com luz interior. A magia produziu-se, da nuvem delicada dos sonhos ascende a fantasmagoria. As estradas se alargam e a distância acolhe os seus sentimentos apagados.
Em qualquer parte bate um relógio. Este, porém, não surge nesse tempo que foge. As horas aqui passam de outro modo. Ali há livros que andaram muitos séculos antes que suas palavras chegassem aos nossos lábios; outros, jovens, ali estão, nascidos ontem, gerados na confusão e necessidade de moços imberbes; fala, porém, uma língua mágica, e uns e outros agitam e aceleram a nossa respiração. Se irritam, também consolam; se enganam, acalmam ao mesmo tempo os sentidos abertos. E, à medida que mergulhamos neles, encontramos, em sua melodia, calma e contemplação, abandonado enlevo, um mundo do outro lado do mundo.
Como vos agradecer, a vós, livros, os mais fiéis e silenciosos dos companheiros, os momentos puros passados longe do tumulto dos dias? Como agradecer a vossa constante solicitude, eterna elevação e a infinita calma da vossa presença? Que vos acontece nos dias sombrios de solidão, nos hospitais e campos de batalha, nas prisões e nos leitos de dor! Sentinelas constantes em toda parte, oferecestes sonhos aos homens e mãos cheias de calma na inquietação e no martírio! Podeis, sempre doces ímãs divinos, atrair as almas diariamente aterradas; tendes em vós mesmos um céu íntimo que estendeis sobre nós, novamente, nos momentos sombrios.
Pequenos pedaços do incomensurável, ficais ocultos em nossas casas, enfileirados na singela parede. Todavia a mão vos liberta se o coração vos toca, e então, saltais invisivelmente do lugar de todos os dias, e voas palavras nos elevam, como num carro de fogo, da estreiteza para a eternidade".
(Stefan Zweig (1881/1942), em “Encontros com homens, livros e países”, Delta , 1956)

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