quarta-feira, maio 20

Novo livro retrata Capão Redondo

Tudo começou quando o advogado Humberto Braga viu o livro "Capão Pecado", do escritor Ferréz. Naquele momento, saiu da zona de conforto e viu escancaradas suas referências sufocadas pela passagem dos anos. O personagem, que deixou a periferia para trás há mais de 30 anos, foi envolvido pela memória involuntária e voltou às suas origens esquecidas. A história foi se impondo e durante quatro anos os diálogos e a narrativa ganharam força e impuseram o ritmo da ação, vasculhando todos os cantos das lembranças. "Ai de ti, Capão Redondo", editado pela Ofício das Palavras, finalmente ganhou vida e está sendo lançado hoje, a partir das 19 horas, na Livraria Nobel do Mais Shopping Largo 13, em Santo Amaro.

A apresentação é do músico Marcelo Nova, que classificou a obra como estreia inspirada: “Os personagens criados por Humberto Braga nos colocam diante do sonho e da realidade e nos deixam com a incômoda constatação de que cultivar sonhos é romântico, mas pensar que a realidade vai se submeter aos caprichos desses desejos é uma grande tolice”.

Nascido num isolado povoado do semiárido nordestino, próximo a Juazeiro, na Bahia, Humberto Braga veio para São Paulo aos três anos de idade com a mãe e a irmã para reencontrar (ou conhecer) o pai que viera antes em busca de uma vida melhor. Desde que chegou, a periferia virou seu mundo, alicerçando o tempo da criança e do adolescente.

O advogado e escritor recorda que morava no Jardim São Luiz, mas no Capão ficavam os melhores amigos e os grandes pecados representados pelas drogas (para ele, felizmente, apenas eventuais) bebidas, mulheres e rock and roll. Hoje, quando lembra desse tempo, ele analisa: “Todos os meus amigos lá acabaram sucumbindo à violência ou às drogas. Por que eu não? Porque a minha família me salvou do Capão, tenho certeza absoluta, mas o Capão me salvou dos limites e do moralismo da minha família.”

Humberto fez o primário no bairro e, por influência da professora que percebeu algo diferente naquele garoto, foi enviado para o colégio Meninópolis, no Brooklin, onde ganhou uma bolsa de estudos graças ao passado do pai , ex-combatente na Itália. Nessa época, sentiu pela primeira vez o quanto era diferente daqueles outros meninos da escola.

“Na periferia eu não notava, porque todo mundo era igual. Na escola comecei a perceber as diferenças sociais que até então não percebia. Foi difícil, mas acho que a partir daí eu passei a negar minhas origens e a interpretar um papel, também para me defender da molecada, que é cruel. Nesta vida vida dupla e ao me dar conta da desvantagem inicial, sabia que eu precisava ser melhor do que os outros garotos, estudar mais e me esforçar para ser superior intelectualmente.

Além do Joca, o alterego de Humberto, aparecem com mais destaque os amigos Barba (escritor, músico e ilustrador, já falecido), Dito McCartney (o filósofo, o pai) e o Garrafa, ator que virou missionário e continua vivo morando em uma cidade do Interior de São Paulo. A banda formada pelos amigos, o sonho de alcançar a fama dos Beatles ou dos Rolling Stones, os festivais e os grandes aprontos também existiram de verdade. Da mesma forma, reais são as músicas citadas na obra, o grupo de hippies reunido no Largo 13 e os acontecimentos, além da ligação visceral com Euclides da Cunha e sua obra. “Toda vez que eu tentava inventar, a realidade saltava muito mais forte”, ele conta.

O romance se desenvolve em São Paulo (inclusive na Cracolândia), tem passagens no Rio de Janeiro e é entremeado por fatos verdadeiros durante a jornada de um dia de dor, desalento, desespero e loucura. Uma curiosidade é a participação dos quero-queros na história, revelada por ele: “Um dia, conversando com meu pai, enveredamos por outros caminhos e ele pela enésima vez me contou sobre os quero-queros que apareciam nas madrugadas e aliviavam suas noite de insônia quando garoto, porque ele não se sentia mais sozinho. Eles representam os medos infantis que mais cedo ou mais tarde voltam. O livro tem um clima de niilismo, não importa o que você faça sabemos que todos estamos condenados e no corredor da morte. Só a arte pode fazer com que essa espera pela morte valha a pena”.

É, o pessoal por aqui me chama de Love ou Só Love. Desvia o olhar, é preciso estar atento. Love, Só Love é coisa recente, depois das ruas. Antes era conhecido por Joca. Não, não é abreviação de Joaquim. Recebi o apelido ainda criança de um colega de escola que não gostou de uma brincadeira. Dali em diante passou a me chamar de Joca. E o apelido pegou. Por quê? Fui jocoso com ele. Acho que Joca tem mais – ou ao menos tinha – a ver comigo. Love, Só Love? Nada a ver. Se há uma coisa que a vida está em débito comigo é amor. Não gosto do nome, mas deixo pra lá porque me convém. Um cara chamado Love atrai simpatia. E atrair simpatia é fundamental para um morador de rua. O motivo de estar nas ruas? Pergunta difícil para quem não me conhece. Pensei que se tivesse o tempo todo ocupado com a luta pela sobrevivência nas ruas pouparia a cabeça do interminável e doloroso exercício de encontrar propósito para tudo. Infelizmente, não aconteceu. Ao contrário, as minhas dúvidas e conflitos aumentaram. Cada vez mais me convenço da inutilidade da vida. Por que tenho de me justificar o tempo todo? Porque há uma voz que cobra, desafia e acusa. Minha família? Na verdade foram os Orangotangos, depois deles não tive mais ninguém.

Nenhum comentário:

Postar um comentário