sexta-feira, julho 24

Assim começa o livro...

Aos quinze anos, minha avó tornou-se concubina de um general-caudilho, o chefe de polícia de um precário governo nacional da China. O ano era 1924, e a China estava tomada pelo caos. Grande parte dela, inclusive a Manchúria, onde vivia minha avó, era governada por caudilhos. A ligação foi acertada pelo pai dela, um funcionário da polícia na cidade provincial de Yixian, no sudoeste da Manchúria, a uns cento e cinqüenta quilômetros da Grande Muralha e trezentos e oitenta a nordeste de Pequim.

Como a maioria das cidadezinhas da China, Yixian fora construída como uma fortaleza. Era cercada por muros erguidos durante a dinastia Tang (618-907 d.C.), de nove metros e setenta e cinco de altura e três metros e sessenta de espessura, encimados por ameias e pontilhados por dezesseis fortes a intervalos regulares, e largos o suficiente para se cavalgar com facilidade em seu topo. Quatro portas davam para o interior da cidade, uma em cada ponto cardeal, com portões externos de proteção, e as fortificações eram cercadas por um profundo fosso.

O traço mais conspícuo da cidade era uma torre de campanário alta, ricamente decorada, de pedra parda escura, construída no século VI, quando o budismo fora introduzido na área. Toda noite o sino tocava, para marcar a hora, e a torre também funcionava como alarme de incêndio e inundação. Yixian era a sede de um próspero mercado. As planícies em volta produziam algodão, milho, sorgo, soja, gergelim, peras, maçãs e uvas. Nas áreas de capim e nas colinas a oeste, os agricultores punham a pastar carneiros e bois.

Meu bisavô, Yang Ru-shan, nasceu em 1894, quando toda a China era governada por um imperador que vivia em Pequim. A família imperial era manchu, dos manchus que, em 1644, haviam conquistado a China a partir da Manchúria, a base deles. Os Yang eram han, chineses étnicos, e tinham se aventurado ao norte da Grande Muralha em busca de oportunidades.

Meu bisavô era filho único, o que o fazia de suprema importância para a família. Só um filho podia perpetuar o nome da família - sem ele, ela chegaria ao fim, o que, para os chineses, equivalia à maior traição possível aos ancestrais. 

Mandaram-no para uma boa escola. O objetivo era que passasse nos exames para tornar-se mandarim, um funcionário, aspiração da maioria dos homens chineses da época. Ser funcionário dava poder, e o poder dava dinheiro. Sem poder ou dinheiro, nenhum chinês podia sentir-se a salvo das depredações do oficialismo ou da violência cega. Jamais houvera um sistema legal eficiente. A justiça era arbitrária, e a crueldade, institucionalizada e caprichosa. Um funcionário com poder era a lei. Tornar-se mandarim era a única forma de o filho de uma família não nobre escapar desse círculo de injustiça e medo. O pai de Yang decidira que o filho não o seguiria na empresa da família, de fabricação de feltro, e sacrificou-se a si e à família para pagar a educação do filho. As mulheres aceitavam costura para os marinheiros e fabricantes de roupas locais, mourejando até tarde da noite. Para economizar dinheiro, deixavam a chama dos candeeiros de óleo no mínimo absoluto, causando danos permanentes aos olhos. As juntas dos dedos inchavam com as longas horas de trabalho.

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