segunda-feira, agosto 1

Assim começa o livro...

Não há como saber precisamente a identidade da monja Myôkaku ou quando ela escreveu “Sonho de uma noite”, mas fica evidente por meio de seus escritos anteriores e posteriores à referida obra que, num certo período, essa senhora serviu como empregada na casa do senhor de Musashi. Depois da queda do clã, raspou a cabeça e foi viver em retiro “numa cabana de sapé no meio de remotas montanhas, onde não havia nada a fazer a não ser orar dia e noite por Buda”, conforme suas próprias palavras. Dessa maneira, conclui-se que foi na ociosidade da idade avançada que ela registrou suas memórias. Mas, afinal, com que objetivo uma monja “sem nenhum empreendimento a não ser orar por Buda” teria resolvido escrever suas memórias? De acordo com sua própria explicação:
Depois de ponderar a conduta do senhor de Musashi, compreendi que neste mundo os homens não se dividem entre bons e maus, heróis e vulgares. O inteligente pode ser por vezes banal, o corajoso pode ser fraco, e aquele que no passado esmagou milhares de inimigos em batalhas será agora assaltado em sua própria casa pelos demônios do inferno. Da mesma forma como a mais formosa das mulheres pode mostrar um temperamento feroz, o mais valoroso guerreiro pode subitamente virar uma besta hedionda. Quem sabe o senhor de Musashi não tenha sido o espírito reencarnado do piedoso Buda, que renasce neste mundo de tempos em tempos, graças ao ciclo do samsara, para libertar-nos das ilusões, e que usou o próprio corpo para demonstrar a inexorável lei de causa e efeito?

A monja conclui ainda que:
... incorporando os tormentos do inferno em seu próprio corpo sagrado, o senhor de Musashi mostrou-nos, a nós, mortais comuns, o caminho da iluminação. Sua existência foi uma bênção para todos nós. Escrevo este relato de suas ações com sentimento de gratidão pelo seu espírito gentil e como uma oferenda em favor da tranquilidade de sua alma. Esse é meu único objetivo. Se houver quem ridicularize ou desdenhe o comportamento de meu amo, amaldiçoado seja. Pessoas de discernimento sentirão apenas gratidão.

Seus argumentos parecem um pouco artificiosos, porém, e certos indícios nos fazem suspeitar que talvez não acreditasse nas próprias explicações. Ela nunca se casou e, portanto, é claro que suas
necessidades físicas nunca foram satisfeitas. Uma das suposições é que tenha escrito tudo aquilo para tentar aliviar a própria solidão. Mas isso é mera especulação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário