quarta-feira, maio 3

Assim começa o livro... na introdução

Fiz umas coisinhas para você, Leitor Fiel; estão todas expostas ao luar. Mas, antes de poder olhar para os pequenos tesouros feitos à mão que tenho aqui à venda, que tal conversarmos um pouco sobre eles? Não vai demorar. Venha, sente-se ao meu lado. Chegue mais perto. Eu não mordo. Bem… nós nos conhecemos há bastante tempo, e desconfio de que você saiba que isso não é totalmente verdade. É? Você ficaria surpreso (ao menos, acho que ficaria) com a quantidade de pessoas que me perguntam por que eu ainda escrevo contos. O motivo é bem simples: escrevê-los me deixa feliz, porque nasci para entreter. Não sei tocar guitarra muito bem, muito menos sapatear, mas sei fazer isso. Então faço.

Sou romancista por natureza, isso eu admito, e tenho um gosto particular por histórias longas que criam uma experiência de imersão tanto para o autor quanto para o leitor, onde a ficção tem a chance de se tornar um mundo quase real. Quando um livro desses é bem-sucedido, o autor e o leitor não estão só tendo um caso; eles se casam. Quando recebo uma carta de um leitor ou uma leitora dizendo que ficou triste quando A dança da morte ou Novembro de 63 chegou ao fim, sinto que o livro foi um sucesso. Mas há algo especial nas experiências mais curtas e mais intensas. Podem ser revigorantes, às vezes até chocantes, como uma valsa com um estranho que você nunca mais vai encontrar, ou um beijo no escuro, ou uma bela raridade à venda sobre um lençol barato em um bazar. E, quando minhas histórias estão reunidas, sempre me sinto como um vendedor ambulante, um que só vende à meia-noite. Exibo minha mercadoria e convido o leitor (você) a escolher o que quiser. Mas sempre acrescento uma advertência: cuidado, meu caro, porque alguns desses objetos são perigosos. São aqueles que têm sonhos ruins escondidos dentro, os que não saem da sua mente enquanto o sono não chega, e você se pergunta por que a porta do armário está aberta se você sabe perfeitamente bem que a fechou.

Se eu dissesse que sempre gostei da disciplina rigorosa que as obras mais curtas de ficção impõem, estaria mentindo. Os contos exigem uma espécie de habilidade acrobática que precisa de muito treino exaustivo. A leitura fácil é produto de uma escrita dedicada, alguns professores dizem, e é verdade. Lapsos que podem passar despercebidos em um romance ficam gritantes em um conto. Uma disciplina rigorosa é necessária. O escritor precisa dominar seu impulso de seguir por caminhos alternativos fascinantes e permanecer na rota principal.

Nunca sinto tanto as limitações do meu talento como quando estou escrevendo obras curtas de ficção. Luto contra sentimentos de inadequação, contra um medo que vem do fundo da alma de que não vou conseguir cobrir o vão entre uma ideia excelente e a realização do potencial dessa ideia. No fim das contas, em linguagem simples, o produto final nunca parece tão bom quanto a ideia esplêndida que surgiu no meu subconsciente, junto com o pensamento empolgante: Caramba! Tenho que escrever isso agora! 

 Mas, às vezes, o resultado é bom. E, de vez em quando, o resultado é ainda melhor que o conceito original. Adoro quando isso acontece. O verdadeiro desafio é mergulhar na ideia, e imagino que seja por isso que tantos escritores amadores com grandes ideias nunca pegam a caneta ou começam a digitar no teclado. Com frequência, é como tentar ligar um carro em um dia frio. Primeiro, o motor não pega, só geme. Mas, se você insistir (e se a bateria não descarregar), o motor pega… funciona perfeitamente…e segue macio.

Algumas destas histórias vieram em uma faísca de inspiração (“Trovão de verão” foi uma dessas) e tiveram que ser escritas de uma vez só, mesmo que isso significasse interromper o trabalho em um livro. Outras, como “Milha 81”, esperaram pacientemente sua vez durante décadas. Mas o foco rigoroso necessário para criar um bom conto é sempre o mesmo. Escrever romances é um pouco como jogar beisebol, ou seja: uma partida demora o tempo que precisar, mesmo que chegue a vinte entradas. Escrever contos é mais como jogar basquete ou futebol americano: você está competindo contra o relógio tanto quanto contra o outro time. Quando se trata de escrever ficção — romance ou conto —, a curva de aprendizagem não acaba nunca. Posso me declarar escritor profissional para a Receita Federal quando mando meu formulário de imposto de renda, mas, em termos criativos, ainda sou um amador, ainda estou aprendendo minha arte. Nós todos estamos. Cada dia que passo escrevendo é uma experiência de aprendizado e uma batalha para criar algo novo. Fingir não é permitido. Não se pode aumentar seu talento, isso vem com o pacote, mas é possível impedir que o talento encolha. Pelo menos, eu gosto de pensar que é. E, ei! Eu ainda amo fazer isso.

Então, aqui estão as mercadorias, querido Leitor Fiel. Esta noite, estou vendendo um pouco de tudo: um monstro que parece um carro (tons de Christine), um homem que pode matar ao escrever seu obituário, um leitor digital que acessa mundos paralelos e o favorito de todos os tempos: o fim da raça humana. Gosto de vender meus produtos quando os outros vendedores já foram para casa faz tempo, quando as ruas estão desertas e a lua gelada flutua acima dos cânions da cidade. É nessa hora que gosto de abrir meu lençol e espalhar minha mercadoria.

Já chega de papo. Talvez você queira comprar algum dos meus produtos agora, não? Tudo que você vê foi feito à mão, e apesar de eu amar cada um deles, fico feliz em vendê-los, porque os fiz especialmente para você. Fique à vontade para examinar todos, mas tome cuidado, por favor.
Os melhores têm dentes.

6 de agosto de 2014

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